A fumaça

05/05/2019

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Era uma festa dessas, de rotina. Mais um lançamento de um livro, de mais um escritor importante, e mais uma edição da obra relevante para o mundo em que ele habitava. Cansada de ficar por ali, sorrindo sem prazer, Berta foi ao banheiro. Havia curta fila e alguma conversa entre as mulheres. Resolveu aderir. O tema era cigarro. A de aparência mais velha fuma com toda a libido possível, e ali, naquele local fechado e algo asséptico, ostenta o prazer de tragar longamente e ah.... a fumaça penetrando o vazio, e o exalar, como que tivesse ido ao encontro de uma particular felicidade, meio liberdade, ambas protegidas em antiga memória. Berta sorve a fumaça do ar. A fumante deve ter uns 60 anos para mais, sob uma maquiagem que pesa um pouco e cabelos arrumadinhos. É avó. Conta dos netos, e dos filhos e, enfim, chega ao marido, o homem que está sendo homenageado lá fora, na festa. É um velho sisudo, quieto, desembargador aposentado. Oh! Pessoa importante, jurista muito considerado, segundo outras, ao sabê-la a esposa dele. E a fumante destaca, bem rapidamente, que ele nunca soube que eu fumo, ele sempre foi assim, e eu nunca quis largar. Ele sempre foi rígido. Quando meus filhos eram pequenos eu tinha que impedir que eles passassem defronte à porta do escritório, enquanto ele escrevia. O silêncio era uma ordem e todos obedeciam. Agora, tudo mudou. Os dois pequenos netos fazem dele o que querem. Até sobem na mesa, abrem gavetas e riscam papéis, imaginem. Tragou de novo com olhar baço, e expeliu devagar a fumaça. Deu para ver na branca névoa pedaços de ódios dos poderosos netos que submeteram o velho juiz. Amassou o toco de cigarro e o dispensou na lixeira, conferindo antes se não restava sinal de fogo. Retocou o batom e saiu para retomar o seu lugar nenhum, na festa.

 

 

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