A discussão normativa, com o intuito de regular e estabelecer um standard adequado de proteção a violações de direitos humanos por empresas transnacionais é recente e, ainda, em grande medida, desconhecido, especialmente face à inexistência de um tratado internacional vinculante sobre o tema. Este tratado está, porém, em gestação, e já existe um corpo de soft-law capaz, inclusive, de gerar obrigações jurídicas para empresas e governos que com ele se comprometam, voluntariamente.
O tema – direitos humanos e empresas transnacionais – é candente, em especial pela alta capacidade destas entidades de buscar em governos e normas fracas, vantagens competitivas. Exemplos não faltam, e vão desde o setor de mineração, com o trágico caso de Mariana e a Samarco, controlada pela Vale e BHB Billiton, da moda, como a Zara e casos de trabalho escravo, e também no de serviços – a PricewaterhouseCoopers (PwC) foi proibida de auditar empresas de capital aberto em toda a Índia, após grande escândalo de uma das maiores empresas de TI indiana, por ela auditada, como noticiou o Valor Econômico[1], em 11 de janeiro de 2018.
Apesar da relação entre direitos humanos e empresas não ser novidade, é verdade que ela vinha sendo tratada de modo setorizado, a exemplo dos vários órgãos vinculados a ONU, como a OIT. Desde 1999, entretanto, iniciou-se um esforço regulatório da atuação de empresas transnacionais de modo mais abrangente, com a criação do chamado Compacto Global, cujo escopo busca abarcar os direitos humanos de modo amplo.
O objetivo do grupo de trabalho instituído no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU é a construção de um tratado internacional vinculante sobre o tema. Esta definição foi aprovada em 2014[2]. Foi apoiada por países em desenvolvimento, como Algeria, Benin, Congo, Etiópia, Índia, Indonésia, Quênia, Africa do Sul, dentre outros. Mas, contou também com o importante apoio de China, Rússia. O Brasil, junto com Argentina, México, Chile, Costa Rica e outros, absteve-se. Apesar da geopolítica envolvida, o grupo de trabalho produziu vários documentos, realizou visitas e elaborou relatórios – inclusive em relação ao Brasil[3] – e tudo leva a crer que, conforme o planejado, elaborará, agora em 2018, o texto do tratado.
Além do citado Compacto Global, há outras duas normas, com caráter de soft-law[4]: a) as Normas sobre responsabilidade de corporações transnacionais e outros negócios em referência aos direitos humanos, de 2003; e os b) Princípios Guia para empresas e direitos humanos (ou princípios orientadores[5]), de 2011.
Os Princípios Guia foram aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 16 de junho de 2011[6], conferindo-lhe a autoridade necessária ao seu reconhecimento e implementação. Constitui-se como instrumento de soft-law, amenizando as previsões mandamentais que se pretendera dar às Normas.
Os Princípios foram construídos no marco das Nações Unidas para “respeitar, proteger e remediar”, e suas disposições normativas divididas em três grandes pilares: a) “O dever dos Estados de proteger os direitos humanos”; b) “A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos”; e c) “Acesso a mecanismos de reparação”. Cada um destes pilares é informado por princípios fundacionais (fundational principles) e princípios operacionais (operational principles).
Há, dentre os princípios fundacionais, três princípios gerais e organizativos, que servem de fundamento aos demais. São eles o reconhecimento: 1) das obrigações existentes dos Estados de respeitar, proteger e implementar os direitos e liberdades fundamentais; 2) do papel das empresas como órgãos da sociedade que desempenham funções especializadas, sendo necessário a observar todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos; 3) da necessidade de direitos e obrigações estarem apropriadamente conectados a remédios efetivos, quando lesados.
No escopo do primeiro pilar – o dever dos Estados de respeitar os direitos humanos – há um total de dez princípios, dois fundacionais e os demais operativos. O ponto central (princípios fundacionais) é o dever do Estado em proteger os direitos humanos contra abusos quando cometido por terceiros, inclusive empresas, devendo tomar as medidas para prevenir, investigar, punir e reparar.
O segundo pilar refere-se à obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos. Possui cinco princípios fundacionais e outros nove princípios operativos. Os princípios fundacionais podem ser resumidos na obrigação direta das empresas em respeitar os direitos humanos e tomar providências em relação aos impactos que causar (princípio 11). O princípio 12, por sua vez, esclarece que as obrigações relativas aos direitos humanos se referem à Carta Internacional de Direitos Humanos (International Bill of Rights) – que compreende a Declaração Universal de Direitos do Homem, o Pacto Internacional para Direitos Civis e Políticos, e o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – e a Declaração sobre Princípios Fundamentais e Direitos do Trabalho da OIT.
O terceiro pilar, denominado “acesso a remédios”, busca estabelecer os mecanismos adequados quando houver impacto adverso a direitos humanos. É neste ponto que serão consolidados os standards mínimos relativos aos mecanismos de reparação.
Seus princípios operativos trazem importantes contribuições. Destacam a responsabilidade primária dos Estados em criar mecanismos de reparação eficazes, judiciais e extrajudiciais, bem como mecanismos de denúncia contra violações de direitos humanos cometidos por empresas, considerando ainda medidas que possam reduzir barreiras legais, e outras práticas relevantes que poderiam obstar o acesso aos mecanismos de reparação, como, por exemplo, custas elevadas, a exclusão de grupos indígenas ou estrangeiros, acesso à defensoria pública e treinamento dos agentes estatais (como juízes, promotores e advogados públicos) a respeito do tema.
O princípio 31 estabeleceu critérios de eficácia dos mecanismos não judiciais, e serve de baliza a respeito tanto em relação ao que fazer, como também de como fazer. Assim, preconiza que tais mecanismos devem ser: a) legítimos, e confiáveis; b) acessíveis; c) previsíveis, claros, com prazos estabelecidos, e monitorados d) equitativos, assegurando às vítimas informação, assessoramento especializado e respeito; e) transparente; f) compatíveis com os direitos; g) fonte de aprendizagem contínua; e h) basear-se na participação e diálogo.
A maior contribuição que pode haver, a nosso sentir, é exatamente a internalização de mecanismos de prevenção e reparação a violações de direitos humanos por parte das próprias empresas, como parte de sua Responsabilidade Social Corporativa, convertida em deveres jurídicos, inclusive de cooperação. Além de ser um mecanismo em que se privilegia a autocomposição, caso esta falhe já haverá uma instrução probatória prévia, bem como uma posição da empresa, o que pode facilitar a solução do litígio pelo Poder Judiciário.
Porém, para evitar que haja, na sociedade de risco contemporânea, a “irresponsabilidade” empresarial organizada, a obtenção de vantagens econômicas estratégicas em razão de normas e governos ineficientes, a ausência de internalização de externalidades, tudo isso às custas dos direitos humanos, a consolidação da proposta da ONU apresenta um importante passo para a constituição de Estados Socioambientais de Direito e, sobretudo, para uma Comunidade Internacional Socioambiental, isto é, social e ambientalmente responsável.
[1] http://www.valor.com.br/empresas/5253921/india-proibe-pwc-de-auditar-companhias-abertas-por-2-anos
[2] Documento da ONU A/HRC/RES/26/9, de 14 de julho de 2014.
[3] Documento da ONU A/HRC/32/45/Add.1.
[4] WEISSBRODT, David. Human Rights Standards Concerning Transnational Corporations and Other Business Entities, Minnesota Journal of International Law, 135, 2014, p. 140-1.
[5] CONECTAS. Empresas e Direitos Humanos: parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar – relatório final de John Ruggie – representante especial do Secretário-Geral, 2012.
[6] ONU. United Nations Human Rights Council. UN DOC A/HRC/RES/17/4. 16 june, 2011.
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