A fila anda… conforme o gosto do juiz - educador? E o Direito, entre Gnomos e Duendes

16/01/2016

Por Alfredo Copetti Neto e Alexandre Morais da Rosa - 16/01/2016

Na medida em que vamos lendo a sentença de um educador moral, queremos dizer, de um juiz que se coloca nessa posição, lembramo-nos de um diálogo, de há muito escrito, por um dos maiores filósofos morais da história moderna: Giacomo Leopardi. Leopardi, em sua vasta obra, que vem atravessada pelo pessimismo, descreve em um diálogo,desenvolvido entre um Doende e um Gnomo, o fim da humanidade… Lá pelas tantas, em meio ao rebuliço que se cria pela notícia, o Doende afirma ao Gnomo: …quero dizer que os homens estão todos mortos e que a raça desapareceu. Espantado, o Gnomo exclama: Isso é caso para os jornais! E logo após se resigna: … mas até os dias atuais nunca se viu os homens usarem a razão…

O dialogo vai adiante e o Gnomo se mostra preocupado em saber a causa que provocou o desaparecimento de todos os homens: Mas como desapareceram essas criaturas? Rapidamente, mais uma vez, o Doende responde: …Em parte morreram guerreando entre eles mesmos, em parte navegando; alimentando-se uns dos outros, matando-se com as próprias mãos… Morreram pelo ócio… Enfim, estudando todas as possibilidades de agirem contra sua própria natureza. De qualquer modo (ressalta o Gnomo) eu não posso compreender como toda uma espécie de animais possa desaparecer como uma planta…

A partir deste exemplo, bastante criativo e inquietante, Leopardi enaltece regras de conduta; regras morais ao homem, expondo, em contrapartida, as atitudes pelas quais a humanidade visa sua extinção. O autor italiano, de erudita formação, já no Século XIX antecipa de forma peculiar as mazelas quotidianas da sociedade atual, entretanto, contrariando o senso comum da época, não se vale de pressupostos abstratos/metafísicos para arraigar seu pensamento. Os fundamentos argumentativos de Leopardi, honestamente, atingem a todos aqueles que, pela condição humana, se avista no outro.

Não obstante isso, gostaríamos de indagar, com base no exemplo acima, se é possível um magistrado, legitimado pelos específicos fundamentos dos Estado de Direito Contemporâneo, cujo ordenamento assenta-se em uma constituição rígida com controle de constitucionalidade material, fundamentar sua decisão a partir de argumentos extra/meta jurídicos, mais especificamente religiosos? E não só isso, mas a partir de tais argumentos, avocar para si o papel de educador moral da sociedade? Se é possível um magistrado fundamentar sua decisão a partir de argumentos extra/meta jurídicos, mais especificamente religiosos?

Pois, por nossas andanças pelo país a fora, nos deparamos com uma sentença de primeiro grau, da comarca de Cascavel no Estado do Paraná, ainda do ano de 2011, em que um magistrado recorreu à bíblia para negar indenização ao autor da ação, que demandou contra instituição bancária.

Na situação, o autor teve de esperar mais do que o tempo determinado em lei para ser atendido pela instituição bancária, no caso a Lei Estadual n. 13.400/2001, que em seu Art. 1, §un. estabelece o atendimento em até 20 minutos em dias normais e 30 minutos em véspera de feriados, ou após feriados prolongados .

O magistrado, em sua fundamentação, para além da legitimidade que lhe é garantida constitucionalmente, toca em aspectos bastante subjetivos no decorrer da decisão, inclusive traçando argumentos pedagógicos à conduta do autor, como se fosse ele um educador moral.

Não obstante isso, o ponto ápice da sentença é quando o juiz se vale de uma passagem bíblica, Eclesiastes, capítulo 3, versos de 1 a 8, “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu…”. Indagamos: a tentativa do magistrado é passar uma carraspana no sujeito que visa a uma indenização ou trazer fundamentos jurídicos (sic.) que lhe possibilitem tomar a decisão adequada?

Aliás, é importante ressaltar que um magistrado não pode dizer o que lhe convém numa sentença judicial, pois está desenvolvendo função jurisdicional, eminentemente pública, e que, para tanto, tem limites estabelecidos no próprio texto da Constituição. Claro que podemos chegar facilmente ao mesmo resultado da sentença, qual seja, julgar improcedente o pedido, extinguindo o processo com resolução do mérito, com base no Art. 269 I do CPC, mas o percurso até o resultado deve ser e tem de ser outro!!! Ao passar em um concurso público o magistrado não é coroado como mais um Rei da Jurisdição em que pode decidir como quiser, nem por qualquer razão. Muito menos é nomeado Bispo de qualquer Igreja da Salvação. Sua função seria garantir a autonomia do Direito, para além de suas opiniões pessoais. Quando as opiniões, valores, religião, etc., são o fundamento da decisão, temos algo de inautenticidade. Seguimos. Lembramo-nos de uma síntese colocada corriqueiramente por Lenio Streck, um dos ferrenhos críticos da discricionariedade e da arbitrariedade judiciais, que afirma que o juiz não pode deixar de aplicar a lei por convicções pessoais…Mas então: quando o magistrado pode deixar de aplicar uma lei? E se, no mesmo caso, um outro magistrado fosse adepto do exegetismo, ateu e tecnicista, ele chegaria a mesma conclusão do magistrado valorador de condutas pessoais, religioso e moralista?

Bem, sob os amálgamas do Estado de Direito Contemporâneo, somente pela perspectiva do controle de constitucionalidade, difuso no caso em tela, o magistrado poderá deixar de aplicar a lei, ou em última análise, o magistrado poderá construir argumentos de princípio, levando em conta a vasta literatura construída por Dworkin, para que a regra jurídica ceda face um princípio constitucional, mas jamais face a concepção de justa medida do juiz…

Obviamente, não podemos aceitar que a personalidade do julgador determine a decisão tomada – mesmo que acertada em seu fim – e que ela deva ser aceita indiscriminadamente na administração da justiça. Não temos nenhuma aversão às escolhas pessoais dos juízes, suas crenças e hobbies, como despendem seu dinheiro ou o seu tempo livre, mas o que nos mantém ferrenhos na crítica é a transposição de suas pré-compreensões pessoais para dentro da atividade jurisdicional.

Inclusive, na citada decisão, em que pese o magistrado ressalte a impossibilidade de se colocar o Poder Judiciário como educador mor da nação, ele mesmo, valendo-se do gosto da chibata, age como, nas palavras de Igborg Maus, Superego da Sociedade. A autora alemã coloca de forma sublime a questão: “(…) por trás de generosas ideias de garantia judicial de liberdades (…) podem esconder-se a vontade de domínio, a irracionalidade, e o arbítrio cerceador da autonomia dos indivíduos (…)”.

Talvez – somente talvez – estejamos no mundo para desenvolver a paciência e tudo, na melhor das hipóteses, tem um sentido e um por que, mas este atributo não cabe ao juiz discorrer e indagar. Na nossa visão, deixaríamos a resposta ao Doende de Leopardi, que quando questionado pelo Gnomo a respeito do benefício aos homens dos mosquitos e das pulgas, responde: Sim tinham (benefício); quer dizer para exercitar-lhes a paciência, como se dizia…

Ps: Gostaríamos de deixar claro, que nossa discussão é eminentemente teórico-constitucional e não estamos aqui fazendo as vezes de justiceiros do direito, muito pelo contrario, queremos, verdadeiramente provocar discussões e reflexões que consigam construir uma perspectiva decisória apta a cumprir com os ditames da tradição jurídica atual.

Ps2: Vivemos as mazelas oriundas da crise atual do direito, que se estabelecem a partir de inúmeras frentes, partindo-se do problema do ensino jurídico, passando pelos cursos preparatórios para concursos públicos, sem esquecer dos concursos propriamente ditos, chegando-se até as práticas cotidianas dos tribunais, esta decisão, objeto do texto, serve de exemplo privilegiado desta crise, que, como o próprio termo já diz é, uma de-cisão. A cisão que assola os fundamentos, o DNA (Streck), e a formação do próprio Estado de Direito.


. Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS.) .

 


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  

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Imagem Ilustrativa do Post: PRSA SW District 10 Roaming Gnome // Foto de: Ed Schipul // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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