A FASE DA RESISTÊNCIA CONSTITUCIONAL

30/10/2021

Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro de Jesús Lora Alárcon

O trabalho e a reflexão jurídica são constantes. Porém, o desenho traçado e regularmente exposto, fruto dessa reflexão sobre a evolução do Direito e da efetividade dos direitos fundamentais num certo contexto, leva em conta as heranças culturais, as crenças e os valores que nele são reproduzidos. Igualmente recebe a influência dos enfoques que com sentido mais ou menos universal são construídos desde estas e outras latitudes. Tudo isso conduz a uma visão sobre o momento jurídico na qual se entrecruzam as pressões políticas, econômicas e de tantas outras ordens. Desde logo, aqui se identifica a própria dialética do Direito. 

Por isso na caracterização da época, que como temos dito em outros momentos constitui uma das nossas preocupações permanentes, é inescapável a referência ao interno e ao externo, ao endógeno e exógeno. Na tentativa de dar forma a um raciocínio a partir da coleta de elementos problemáticos da realidade, há alguns anos dizíamos que compreender as aventuras e desventuras do Constitucionalismo brasileiro supunha partir da sua confluência com outros dois movimentos igualmente importantes, o Internacionalismo e o Processualismo.   

De certo esse Constitucionalismo, em cuja base reside historicamente a proteção dos direitos fundamentais, parecia ser “desafiado” pelo Internacionalismo dos direitos humanos. A relação que se estabelecia, em lugar de ser horizontal entre tratados e constituições (ou vice-versa) era vertical e, portanto, o debate consistia em saber se haveria supremacia de um texto normativo sobre outro.

Isso significava estabelecer parâmetros de superioridade e argumentos não faltavam. Por um lado, algo assim como: “A Constituição é fruto do poder constituinte originário, soberano, plenamente independente, incondicionado e ilimitado”. Por outro lado, “os tratados são o resultado da vontade dos Estados soberanos e se dirigem a dar universalidade aos direitos de todos os homens em qualquer lugar do planeta, portanto, o que deveriam fazer as constituições, sem pestanejar, deveria ser criar as condições de incorporação dos seus textos superiores nos ordenamentos jurídicos de cada Estado”. El tal sentido as cláusulas de abertura, a brasileira, por exemplo, trouxe mais de uma dificuldade para sua interpretação.

O processualismo, por sua vez, era reforçado pelas técnicas de controle de constitucionalidade e convencionalidade. Demorou-se um tanto para se falar em “princípio pro-homine”, enquanto no “Brasil profundo” depositários “infiéis” eram presos ou soltos conforme o entendimento e aplicação do magistrado. Lembro de escutar falar do conhecido “mito do bom tratado” e em outros casos da iminência de quebrar a rigidez constitucional com a admissão das convenções de direitos humanos como equivalentes a normas constitucionais. A questão em particular, ao que parece, tem sido resolvida pela EC 45 de 2004. Entretanto, esta é apenas uma amostra da dimensão do problema.  

Passados alguns anos a palavra mais utilizada em congressos e publicações era “Neoconstitucionalismo”. Luís Roberto Barroso assumia a responsabilidade de se expor com coragem, manifestando que passamos a uma etapa diferenciada, caracterizada por três marcos: histórico, porque a Constituição teria sepultado a ditadura militar e se afirmado como texto normativo supremo, em que pese as dificuldades existentes; jusfilosófico, porque estaríamos diante da superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo. Assim, o Pós-positivismo se erguia como reflexão para um Direito mais arejado e reaproximado à Ética; finalmente, um novo marco da dogmática ou nova hermenêutica constitucional, pautada pelos princípios. [1]  

Aos poucos os marcos, que do ponto de vista metodológico constituem sem dúvida uma boa síntese, foram sendo suavizados pelas circunstâncias. De fato, houve um processo de afirmação da supremacia dos valores constitucionais em oportunidades especialmente ligadas aos direitos de minorias, grupos vulneráveis e para a solidificação de uma sociedade mais inclusiva. A democratização veio acompanhada de um respiro para o desenvolvimento da política. Porém, no 2016 a quebra das regras do jogo representaram o retorno a uma situação de questionamento da própria democracia conquistada que atinge hoje estágios extremamente preocupantes. A interpretação sobre a base de princípios significou avanços, mas no que se refere à efetividade dos direitos sociais as imposições neoliberais têm sido devastadoras, incluso para postulados como a “proibição de retrocesso”, afastada ao ritmo das reformas trabalhista e previdenciária e da EC 95.

Outra expressão fortemente publicizada foi a de “novo constitucionalismo latino-americano”, puxada especialmente pela necessidade de caracterizar o período compreendido entre a Constituição de 1988, a promulgação da Carta colombiana de 1991, e logo o aparecimento de constituições como a da República Bolivariana de Venezuela de 1999, a Constituição da República de Equador de 2008 y a Constituição do Estado plurinacional de Bolívia de 2009. 

Em que pese o fato de que houvesse uma preocupação por reconhecer a existência de novas manifestações do poder constituinte no pedaço, o que ficou constatado é que não existe no Brasil, de maneira geral senão bastante episódica e focalizada, uma análise do Constitucionalismo dos vizinhos. Há razões históricas que explicam este afastamento, assim como há as que permitem as aproximações. Contudo, o mais relevante consiste, em nosso juízo, em não compreender os laços de realidade que aproximam o Brasil dos outros estados periféricos e semiperiféricos, o que impede uma maior troca de experiencias, olhares e saberes científicos. Em tal sentido a compreensão do processo constituinte chileno, atualmente em curso, é certamente uma boa oportunidade para esse fim.

Dentro dessas visões, hoje resgatadas da história recente, a questão que deve nos ocupar consiste em tentar responder às indagações sobre as características da etapa atual? Nesse plano emerge a expressão “resistência constitucional” para significar um conjunto de esforços em vários planos, não só no jurídico, mas no econômico, cultural, político, social e ambiental, dentre outros, para poder manter as opções constitucionais de 1988 como algo vivo. As regras do jogo, desrespeitadas no 2016 e até o momento de escrever estas linhas, expostas no texto normativo da Constituição, como fórmulas que deveriam alicerçar uma concorrência minimamente civilizada entre diversos setores nos marcos de uma democracia liberal para o exercício do poder foram defendidas nas ruas.

Em tempos de pandemia, ficou claro que a opção constitucional por um sistema único de saúde, como se estabelece no artigos 196 e 197 foi essencial; que o federalismo cooperativo tem condições de funcionamento se existe vontade e ação política; que se conserva a capacidade de reação para defender uma pauta que coloque de presente as liberdades públicas e o princípio da igualdade; que é possível conter e recompor – ainda que com as sequelas mais graves que rasgaram a legitimidade democrática – as formas do devido processo como autênticas garantias diante do poder arbitrário do Estado.

A etapa de resistência é, destarte, uma etapa de “teste” na qual o melhor dos resultados é sepultar aquilo que alguns chamam do “entulho autoritário” e avançar a uma democracia mais aprofundada para construir elementos de unidade em torno à política em benefício da vida. No campo do direito, a resistência implica aprendizado e ação, o que, naturalmente, significa avançar numa ciência e uma prática para os direitos fundamentais, que contenha a experiência que hoje é adquirida, tanto sobre os perigos que eles correm, no campo da liberdade de expressão, de informação, para só me referir a dois dos mais notáveis, bem como, por supuesto, às formas ignóbeis que adquire o gerenciamento da coisa pública, que pelos indicadores sociais continua a ser utilizada em favor dos que vivem exclusivamente do desconhecimento e retrocesso dos direitos,  

 

Notas e Referências

[1] O Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Renovar. 2005

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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