A FAMÍLIA E O DIREITO NO MUNDO LÍQUIDO

17/03/2019

As velhas instituições como o Direito sofrem diversas transformações para adaptar-se ao mundo líquido. O Direito de Família é um dos campos que vem sofrendo mais a ação dos novos imperativos de gozo impostos aos indivíduos, mas que ainda sofre de claustrofobia dentro do Direito Civil que ainda resiste a iluminação dos princípios constitucionais desde 1988 pois são eles que estabelecem os limites que garantem a realização da liberdade, da justiça e da solidariedade.

As relações afetivas da sociedade contemporânea são líquidas, elas se estabelecem e se liquefazem apenas enquanto forem consideradas lucrativas. O lucro de uma relação afetiva é o nível de felicidade que ela proporciona ao indivíduo, cada vez mais narcisista no caráter. O modelo familiar típico da modernidade líquida é a família eudemonista, ou seja, a família feliz. O que quer dizer isto?

Que a família pode assumir qualquer configuração com vistas a felicidade de seus membros: heteroafetiva, homoafetiva, anaparental, monoparental, socioafetiva, poliamorista.

Então, eu lanço como hipótese o seguinte: Se ela pode possuir qualquer forma ou estrutura é porque ela também pode se desfazer tão rápido quanto se formou, o que mostra que ela possui um caráter instrumental, portanto seus membros têm também um caráter instrumental, podendo ser descartados se não cumprir o seu propósito de fazer o outro feliz.

Ademais, no contexto hiperindividualista em que vivemos, os sujeitos evolvidos numa relação afetiva também se envolvem numa relação consumerista, onde toda contrariedade ou prejuízo psicológico tende a ser superdimensionado a fim de encontrar compensação pecuniária do outro. Ou seja: aquele a quem se ama com amor profundo e verdadeiro hoje, pode ser aquele contra quem se exigirá indenização por abandono afetivo, amanhã, por exemplo.

Assim, se estabelece uma equivalência entre afeto e dinheiro, algo que Freud já havia descoberto na clínica com seus pacientes: dinheiro sempre está relacionado a amor, nem sempre de maneira positiva (FREUD, 1909).

É por isso que se faz necessário um Direito capaz de promover a qualidade dos relacionamentos familiares e garantir a dignidade da pessoa humana, exigindo que os doutrinadores estudem para não serem doutrinados pelos tribunais, mas um estudo sério, longe do legalismo e do estreitismo das escolas, rumo a uma transdisciplinaridade, a partir da interdisciplinaridade.

 

Amor líquido e religiosidade

Uma característica de todo grupo social é que ele é mais forte que o indivíduo que o compõe, de modo que se este desaparecer, nem por isso o grupo desaparece. No atual contexto de modernidade líquida a descartabilidade das mercadorias é aplicada também para o campo das relações afetivas, segundo a ética do custo/benefício como mostra Bauman (2004). Um grupo religioso nesse contexto tende a ter um caráter eudemonista e instrumental também, pois se ele não promove a felicidade e o bem- estar de seus membros, não há razão para continuar nele.

Este é um fato característico desses tempos: a religiosidade cresce juntamente com o narcisismo dos indivíduos; não se abre mão de admitir a dependência a um ser maior que os indivíduos, mas também não se abre mão dos deveres que esta hipostatização tem para com o crente: a mesma sociedade que cultua o eu, é a mesma que cultua DEUS.

Por outro lado, se um indivíduo não serve para ser "amado" por aumentar os custos socioafetivos de se conviver com ele, pode ser descartado sem provocar nenhuma culpa por parte do grupo. Claro que sobra também para "Deus". Se este não for o “Pai que nos falta” um Pai provedor que nos apazígua a insegurança e a angústia de viver sem certezas e nem estabilidades, então troca-se de "Deus", porque “FALTA ALGO A ESTE PAI!"

 

Notas e Referências

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

FREUD, Sigmund. “Observações sobre um caso de neurose obsessiva [‘O homem dos ratos’], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910). In: Obras completas, volume 9. Tradução Paulo César de Souza. — 1 a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ROUDINESCO. Elisabeth. A família em desordem. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

SPENGLER. Fabiana Marion. “O direito de família de encontro à constituição”. In: Direito em debate. Ano XII nº 22, jul. /dez. 2004, p. 101-122.

LUCAS. Doglas Cesar; GHISLENI, Pâmela Copetti. O amor e o direito pertencem a “idiomas” distintos: uma crítica à juridicização do afeto. In: Revista Brasileira de Sociologia do Direito. v. 4, n. 3, p. 106-131, set./dez. 2017.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/8035396680

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura