A falsa “sem partido” neutralidade, o STF – Por Léo Rosa de Andrade

26/04/2017

A controvérsia entre a razão neutra e a fala contaminada por afetos mais erudita de que se pode dispor na tradição filosófica ocidental é aquela que Nietzsche estabelece com Schopenhauer. Este propôs que a melhor apreensão da realidade seria a do observador desinteressado e desvestido de afetos. Aquele contraditou, seja porque descria em abstenção de interesse, seja porque não concebia o asseio afetivo.

Dada a nossa “natureza” interessada e afetiva, a melhor captura dos fatos nasceria da controvérsia. O embate com manifestações claras de interesses e a exposição apaixonada de ideias apura concepções e explica acontecimentos com muito mais objetividade do que as conclusões nascidas de uma idealizada pureza de posição.

A história do Ocidente comportou momentos de discussão e teve o milênio e meio de pensamento único instituído pelo catolicismo que se fez hegemônico com o imperador romano Constantino só sofrendo baque relevante na Revolução Francesa. Nos países de tradição ibérica, pouco alcançados pelo Iluminismo francês ou o Liberalismo estadunidense, perdurou a compreensão católica de mundo.

Nessas terras em que o catolicismo foi e ainda, em muitos cantos, perdura como obrigação constitucional, famílias patriarcais, escolas, sistemas de apoio social etc são aparelhos ideológicos reprodutores de seus interesses. O sistema educacional foi dominado por essa ideologia, ou, na linguagem que a direita política quer, por esse partido. Escolas públicas e privadas brasileiras incluem-se no sistema de reprodução do modo religioso de compreender os fatos, a história, a vida.

A coisa sofreu reveses importantes a partir do surgimento das Humanidades. Desde que as ciências humanas e sociais passaram a compor as grades das disciplinas universitárias, outras óticas explicativas da existência pessoal e da convivência pública passaram a circular entre nós.

Como a direita política brasileira é troglodita e, regra geral, ignora os pensadores (os filósofos, sobretudo), ficou sem discurso de sustentação do seu conservadorismo. A maior parte da juventude universitária, “vítima” do que os reacionários denominam “marxismo cultural” tornou-se tendente à esquerda.

Essa cultura adversa ao pensamento conservador e religioso cresceu nos anos da Ditadura de 1964. Lá quando as universidades contavam com professores e alunos aliados contra os milicos, plantavam-se no universo acadêmico concepções materialistas do mundo. O pensamento único foi controvertido.

A direita permaneceu o que sempre foi. À esquerda há lutas importantes, democracia, direitos sociais, mas também ingenuidade, demagogia, stalinismo, ladroagem, religiosidade etc. À esquerda estão professores críticos do que se chama difusamente de sistema. A direita quer neutralizar o discurso crítico, considera-se neutra e capaz de ditar conteúdos não ideológicos, como se pairasse acima do bem e do mal.

A direita tentou legalizar sua posição. Fez teste, fundando, por lei (Lei 7.800) no sistema educacional do estado de Alagoas, o programa Escola Livre. Em tese, ideias defensáveis. Extraio: “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; pluralismo de ideias no âmbito acadêmico; são vedadas, em sala de aula a prática de doutrinação política e ideológica; o professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária”.

Em abstrato, está bem. Agora, em concreto, quem seria o fiscal neutro para dizer sobre neutralidade? Claro, seria sempre o representante do titular do poder. Melhor a controvérsia. É verdade que há esquerdismo prosélito em salas de aula. Não é menos verdade que há direitismo militante. A condição de força do direitismo é mais perene e espraiada do que as pontas de esquerda tão denunciadas.

O STF, em sede de ADIn 5.537 proposta pela CONTEE e pela CNTE, por decisão do relator, Ministro Roberto Barroso, entendeu que, afora diversas questões formais, a lei alagoana é uma afronta à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias, princípios e diretrizes do sistema de ensino (CF, Art. 206, II E III). Destaco decisão:

“5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF, Arts. 205, 206 e 214); 6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF, Art. 5º, LIV, c/c art. 1º)”.

Nietzsche não fez mossa na História por acaso. Ele tem enorme contribuição com o desencantamento do mundo. Ora, somos movidos por interesses, paixões, lutas por poder. Mais própria a controvérsia. Espero que os embates jamais se findem, mas, se alcançarem termo, desejo que ninguém tenha razão. Nem mesmo eu.


 

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