Por Hugo Leonardo Rodrigues Santos - 10/07/2015
O senso comum costuma relacionar a pobreza com a criminalidade, especialmente aquela violenta, e que causa maior repúdio social. Segundo essa lógica, o empobrecimento das pessoas seria um fator determinante para o desenvolvimento de comportamentos delituosos. Em nossa opinião, esse saber cotidiano está intrinsecamente relacionado à legitimação de um excesso de poder punitivo com relação a esses grupos sociais. Como sabido, todo poder gera um saber (Foucault), e portanto faz-se necessária uma reflexão sobre os significados implícitos – para além das finalidades instrumentais exteriorizadas pela legislação criminal –, advindos de uma estruturação dessa justificação punitivista.
Anote-se que, desde os primeiros desenhos do sistema penal brasileiro, sempre houve uma preocupação – ora declarada, ora disfarçada – em direcionar o aparato punitivo para grupos sociais marginalizados, como é possível perceber com a criminalização pretérita da capoeiragem (negros ex-escravos), da mendicância (a ralé de desempregados e marginalizados), da greve (operários industriais) etc. Mas, além da legislação penal, importa falar na existência de práticas punitivas, as quais estão sedimentadas em uma conformação, entre a própria população, do filtro seletivo empregado no controle social rigoroso das classes perigosas. Essas manifestações de poder punitivo podem ser legais, ou ainda arbitrárias e ilegais, um direito penal subterrâneo (Zaffaroni). Por isso, ao falar em sistema punitivo, não podemos nos olvidar de todas aquelas práticas irregulares, como violência policial, tortura, desaparecimentos forçados, humilhações etc.
O poder não se concentra no Estado, não pode ser analisado apenas por um foco concentrado no estatismo – visão muito comum aos juristas, mas equivocada por ser incompleta. Na verdade, as práticas punitivas são exercidas de forma desconcentrada, no cotidiano das próprias pessoas, que são moldadas em sua subjetividade por esse poder, a partir desses saberes criminais do senso comum. Essa é a microfísica do poder (Foucault), o qual é exercitado por meio de relações microscópicas, e não somente pelo Estado punidor. Portanto, o poder de punir não existe somente em uma feição repressiva, estritamente falando, sendo também um poder simbólico (Bourdieu), na medida em que é aceito pelas pessoas, que o normalizam. Com efeito, percebe-se facilmente porque por vezes não existe tanta indignação da sociedade contra a exclusão social (reforçada pelo sistema punitivo), as técnicas de higienização social – de onde surgiu o ditado cruel: sou pobre, mas sou limpinho! –, e os excessos em geral: tudo parece natural se as medidas atingem os suspeitos de sempre, não há nada de novo no front...
Parece-nos que essas concepções vulgares (everyday theories) partem de um pressuposto absolutamente equivocado, o que resulta obviamente em conclusões absurdas. Primeiramente, porque afirmam que a violação da lei penal ocorre com mais frequência entre pessoas das camadas mais miseráveis da população, conforme demonstram os dados oficiais disponíveis (estatísticas policiais e de encarceramento). Desse modo, a desobediência das normas por indivíduos dos setores mais privilegiados da sociedade seria excepcional, um fenômeno contingencial. Ora, acreditar nessa suposição equivaleria a ignorar o fato incontestável de que o número de indivíduos que burlam as regras criminais não coincide com o quantitativo de condenados pelo sistema punitivo. Conforme a influência de uma série de fatores – natureza do crime, quem seria o infrator, eficácia da estrutura policial ou judiciária, repercussão do delito, entre muitos outros –, o número oculto de violações da legislação, que não é, efetivamente, conhecido ou mesmo sancionado pelo Direito Penal, pode ser enorme. Essa criminalidade, que sabemos que existe, mas não podemos visualizar nas estatísticas oficiais, é chamada de cifra ou criminalidade oculta (Sutherland). Para se ter uma ideia da dimensão desses números, imaginem a quantidade de furtos, estelionatos, estupros ou sonegações tributárias que permanecem na clandestinidade, e por isso não serão punidas. Por isso, pode-se afirmar: não é que sejam poucos os privilegiados que violam as leis penais, é que são poucos os que são investigados ou punidos...
Não é verdadeira essa afirmação do senso comum, e por isso podemos observar, nos mais recentes mapas da violência, que as taxas de vitimização não seguem uma lógica de níveis de pobreza, pois os Estados brasileiros mais violentos não são, necessariamente, os mais pobres (Waiselfisz). Isso para ficarmos somente em um exemplo [1]. Talvez seja mais interessante o questionamento sobre o problema da privação relativa (desigualdade social), que poderia gerar maiores conflitos sociais (Young). Assim, a privação relativa poderia ser considerada um fator criminógeno, potencializador da ocorrência de violências. Nesse sentido, políticas sociais são sempre mais eficazes na prevenção de delitos, sendo as políticas estritamente penais meros paliativos.
Não obstante, nem mesmo esse fator da privação relativa se constitui como causa única da criminalidade, visto que esta é criada socialmente, a partir de uma reação do controle punitivo, que faz com que alguém seja tratado como delinquente. Por isso, a criminologia mais contemporânea superou o paradigma etiológico, passando a preocupar-se, sobretudo, com a rotulação que é oferecida pelo sistema criminal. Em nossa opinião, isso não significa que o saber criminológico deve desapegar-se completamente da consideração de fatores criminógenos [2]. É necessário compreender a criminalidade como o produto complexo de uma equação social na qual, além de elementos de rotulação, também podem ter importância a presença de fatores sociais reais. Nesse sentido, a ideia de “quadrado do crime” (Young), com a indicação de quatro dados – infrator, vítima, controle social formal e informal – a serem analisados para a compreensão da infração criminal.
Ainda estamos aquém da superação dos filtros seletivos (Baratta) existentes no sistema criminal, que fazem com que ele funcione muito bem com relação aos grupos sociais marginalizados, e por outro lado não tenha eficácia alguma contra outros setores da população. Essa seleção punitiva parece corresponder às expectativas da população, que internalizou a lógica punitiva excludente, aceitando (ainda que inconscientemente) esse estado de coisas. É necessário perceber esse fenômeno, para que não se continue perpetuando esse comportamento ideológico. Somente desse modo, seria possível brecar a tendência de criminalização da pobreza (Wacquant), que é perceptível nesses tempos de grande encarceramento.
Notas e Referências:
[1] Para mais detalhes da não existência dessa correlação entre delito e pobreza, indicamos: Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da violência 2013: mortes matadas por arma de fogo. S.l.: Cebela, 2013. Disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/pdf2013/MapaViolencia2013_armas.pdf>. Acesso em: 1.º nov. 2014. E a interessante pesquisa: Ortega Sánchez, José Antonio. Pobreza = delito? Los factores socio-económicos del crimen y el derecho humano a la seguridad pública. Toluca: Comisión de derechos humanos del Estado de México, 2010. Disponível em: <http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/biblioteca/pobreza-delito/finish/3-pobreza-delito/173-pobreza-delito-libro-completo/0>. Acesso em: 1.º nov. 2014.
[2] Sobre o tema, e defendendo um modelo de criminologia crítica que busque considerar em seus preceitos elementos sociais potencialmente criminógenos, ver trabalho que brevemente será publicado, apresentado por Adrian Barbosa e Silva, no Seminário internacional Crítica e questão criminal na América Latina: balanço e perspectivas, realizado em dezembro passado no Rio de Janeiro, intitulado Superar o trauma e redefinir o causal: um desafio para as criminologias críticas do século XXI.
Hugo Leonardo Rodrigues Santos é Doutorando e Mestre em Direito Penal pela UFPE; Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela ESMAPE; Professor de Direito Penal e Criminologia em cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito em Maceió (AL); Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e Coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Alagoas. E-mail: hugoleosantos@yahoo.com.br.
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