Coluna Stasis
Entre os dias 29 e 30 de setembro de 2021 dois empresários depuseram na CPI da Covid-19 conduzida pelo Senado Federal. A Comissão Parlamentar de Inquérito em andamento no Senado da República Federativa do Brasil foi criada em 13 de abril e oficialmente instalada em 27 de abril de 2021. A referida CPI foi inicialmente instalada com o intuito de investigar as omissões e intransigências do governo federal em relação a implementação, majoritariamente via Ministério da Saúde, de medidas sanitárias no combate a pandemia da Covid-19.
Porém, no decorrer dos depoimentos e, sobretudo, de denúncias explicitas como a do Deputado Federal do PSL (partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente rompendo vinculo posteriormente) Luís Miranda e de seu irmão Luiz Roberto Miranda, funcionário público de carreira do Ministério da Saúde, chegou-se ao conhecimento de esquema de corrupção envolvendo representantes de empresas privadas e membros comissionadas do Ministério da Saúde para superfaturamento da vacina indiana Covaxin.
No decorrer das investigações sobre a compra da vacina Indiana Covaxin, sem registro na ANVISA, veio a público o envolvimento de militares comissionados no Ministério, de ex-militares e pastores representantes comerciais de supostas empresas intermediárias com sedes em países como Indonésia, ou Arábia Saudita para aquisição de milhões de doses junto ao laboratório produtor da referida vacina, entre outras, em supostas negociações. Neste episódio da CPI temos um primeiro aprendizado, muito caro aos brasileiros assalariados e, mesmo à classe média em geral majoritariamente reprodutora de discursos ideológicos de ineficiência do Estado, ou de corrupção pública. A corrupção pública advém de interesses privados sobre a coisa pública e não o inverso. O caso “Pandora Papers” é o último e mais atualizado exemplo da corrupção advinda dos interesses privados sobre aquilo que é público. Não é preciso desenhar! A corrupção existe! Age de forma deletéria sobre a coisa pública! Se constitui na sobreposição de interesses privados de indivíduos e de grupos sobre os bens públicos.
No decorrer dos meses e das investigações a CPI da Covid-19 deparou-se com outras frentes investigativas, entre elas: a propaganda governamental e privada para uso de medicamentes sem comprovação científica no tratamento precoce em pessoas contaminadas pela Covid-19. Entre estes medicamentos: a cloroquina, a ivermectina, a azitromicina, o ozônio, entre outros. Vieram a público, denúncias de disseminação de informações falsas sobre medidas de combate a pandemia por parte de agentes privados adeptos da orientação governamental de imunidade de rebanho propagada pelo “... Messias Bolsonaro”. A CPI também revelou um dos episódios mais pavorosos em solo nacional, após as experiências dos campos de concentração nazistas da 2ª Guerra Mundial, e das torturas e mortes de presos políticos conduzidas pelos militares durante a ditadura militar implantada no Brasil entre 1964 a 1984, as experiências com pessoas idosas internadas em rede de hospital privado. Na referida rede de hospital, médicos eram orientados a ministrar tratamentos e medicamentos sem eficácia comprovadamente científica no tratamento da Covid-19 aos idosos.
Mas, para além de todos estes fatos e argumentos, cuja única importância nesta reflexão é contextualizar os depoimentos dos ilustres empresários, realizados respectivamente entre os dias 29 e 30 de setembro é também demonstrar a expressão tácita de práticas fascistas cinicamente admitidas e reafirmadas pelos depoentes. Ambos são empresários bem sucedidos e partem do pressuposto de que a “liberdade individual”, de “mercado”, ou de “práticas econômicas” são a mesma coisa. Estão acima de qualquer suspeita. São portadoras da verdade. Devem ser aceitas e obedecidas em seus imperativos. Quais sejam: a manutenção da ordem social (do capital); a preservação da ordem econômica; da produção, do consumo, dos empregos e, dos baixos salários. Ou ainda, de que a liberdade individual é condição sine qua non da liberdade econômica. Sob tais premissas os depoentes partem do pressuposto de que em nome da preservação dos seus interesses privados de acumulação de capital tinham, ou tem o direito e o dever de disseminar publicamente informações e práticas inconsistentes cientificamente em relação a tratamentos precoces de combate a pandemia. Tinham, ou tem a liberdade de passar por cima das determinações e orientações de competentes autoridades sanitárias do país na orientação das estratégias de saúde pública do país. Ou ainda, tinham, ou tem a liberdade de colocar em risco de vida toda uma comunidade, toda uma sociedade, ou mesmo de toda uma população em defesa de interesses econômicos privados. Subjaz a esta racionalidade economicista o argumento de que a vida e as escolhas de indivíduos, comunidades e povos são exclusivamente orientadas pelos imperativos instrumentais da economia.
Como expressões e comportamentos clarividentes do fascismo, os referidos empresários não alcançam a crucial diferença entre interesses privados e interesses públicos. Tudo se confunde. Tudo se inverte. Os interesses públicos (senão os bens públicos) devem - para estes “homens de bem” - ser colocados a serviço dos interesses privados. A marca distintiva do fascismo, até o momento, é colocar o aparato estatal a serviço do capital. O Estado deve salvaguardar a qualquer custo a lógica de acumulação do capital. Tal condição significa: retirar direitos trabalhistas; enfraquecer ao máximo, mas se possível aniquilar sindicatos; reduzir o poder de compra dos salários; manter o controle sobre os refugos humanos (consumidores falhos); eliminar programas sociais; desconsiderar direitos individuais e sociais; incentivar o discurso do empreendedorismo; impor discurso responsabilizador sobre milhares de pequenos empreendedores fracassados; disseminação de ódio à democracia; eliminação do debate público pela deterioração das instituições e da agenda pública.
Mas, o fascismo não para por aí. Sua existência e reprodução social dependem da eleição de um inimigo “vital” da nação. Nacionalismo, racismo e violência são ingredientes do posicionamento do fascista. Para o nazismo o inimigo da nação alemã era o judeu. Para o fascismo italiano o inimigo eram os trabalhadores organizados em sindicatos. Para o fascismo dos “homens de bem” da elite perpetuadora do ethos oligárquico escravocrata nacional o inimigo é sorrateiro, pois ora se manifesta na forma do comunismo, do socialismo, do STF, ou mesmo para alguns, na forma do CPF e até do FGTS. Para os empresários depoentes de matiz fascista todos estes inimigos rondam cotidianamente a nação. Em nome da proteção da pátria, da família e da propriedade justifica-se fazer tudo aquilo que o capital tem condição de fazer para sua autopreservação.
O fascismo se instala com discursos e práticas autoritárias, não raro a pretexto de defesa da liberdade (como ocorreu com a versão neoliberal, no laboratório chileno dos Chicago boys, durante da ditadura de Pinochet). Despreza à política. Projeta no líder moralmente ilibado a verdade e a sabedoria para guiar os destinos da nação. Utiliza objetos militares e armas que representam a masculinidade, o falo, de modo a sempre sublimar o amor – e quiçá uma relação sexual enrustida entre líder e súditos[i]. O fascismo é o terreno propicio para a emergência de pensamentos, práticas e lideranças autoritárias. Quanto mais caricato e autoritário maior é a extensão da esfera de influência do líder sobre as massas que o seguem, mormente porque o líder precisa ser visto como representativo da massa (por exemplo, passeando de moto com os seguidores, como fazia Benito Mussolini). A horda, o rebanho se identifica com o autoritarismo do líder. A xenofobia, a misoginia, o preconceito, o racismo, o desprezo pela cultura, pelo conhecimento, pelas ciências, pelas instituições é marca registrada do líder e de seus liderados, os fascistas.
O fascismo e os fascistas são a expressão de uma contradição insofismável. Ao afirmarem o direito à liberdade individual acima de qualquer forma de controle, seja ele estatal, ou social se apresentam como antítese do liberalismo político, que reconhecem na observância da lei, da norma, da regra, que legaliza e justifica uma determinada ordem social, a condição por excelência do exercício da liberdade. Assim, para um liberal (e Kant era um liberal) a liberdade se expressa socialmente como reconhecimento de que o meu direito cessa na medida do direito do outro. Porém, é imperativo que o liberalismo político e econômico ao longo de sua trajetória reiteradamente flerta com os fascistas, e que esses, ao produzirem experimentos pavorosos como os campos de concentração, logo passam a reivindicar mais liberalismo – daí que, por exemplo, figuras como Eichmann reivindicaram direitos e quiseram se defender perante o Tribunal Penal Internacional. Todas as vezes que os expropriados do sistema avançam na participação política no interior das democracias representativas, ou alcançam maior número de direitos individuais e sociais, a ordem liberal na preservação de seus interesses suspende o ordenamento jurídico (estado de exceção) aflorando suas tendências fascistas e totalitárias. Nazismo e fascismo são sub-produtos das democracias liberais representativas de final do século XIX e primeira metade do século XX, incessantemente atualizados e adaptados às inúmeras transformações sociais de modo que até hoje não foi possível – e talvez nunca seja – dar cabo deles.
Neste contexto é sintomático o fato de os depoentes se comportarem de forma contundente, espalhafatosa durante o depoimento na CPI. Estavam combatendo o bom combate fascista, a preservação dos interesses do capital em meio as ameaças advindas do afastamento social motivado pela pandemia. Suas ações de financiamento de sites produtores e divulgadores de fake news sobre a pandemia, suas propagandas contra o uso de máscaras, de disseminação de tratamentos precoces com medicamentos ineficazes tinha como objetivo a defesa da propriedade, do capital, da família, de deus e, talvez até do diabo. Opa, o diabo não! É vermelho! Tudo indica que é comunista! Caramba, até o diabo ... o mundo está perdido... chama o messias ... só ele poderá nos afundar... Ah digo salvar!
Notas e Referências
[i] “Freud está atento a outro aspecto da imagem do líder que aparentemente contradiz o primeiro. Mostrando-se como um super-homem, o líder deve ao mesmo tempo realizar o milagre de aparecer como uma pessoa comum, da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio. Também isso Freud explica em sua teoria do narcisismo. […] Mesmo os impressionantes sintomas de inferioridade do líder fascista, sua semelhança com atores canastrões e psicopatas insociais são assim antecipados pela teoria de Freud. Por causa daquelas partes da libido narcisista do seguidor que não foram investidas na imagem do líder, mas permanecem ligadas ao próprio eu do seguidor, o super-homem deve ainda se assemelhar ao seguidor e aparecer como sua ‘ampliação’. Em acordo com isso, um dos dispositivos básicos da propaganda fascista personalizada é o conceito do ‘grande homem comum’ (great little man), alguém que sugere tanto onipotência quanto a idéia de que é apenas um de nós, um americano simples, saudável, não conspurcado por riqueza material ou espiritual. A ambivalência psicológica ajuda um milagre social a se realizar. A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor de se submeter à autoridade e de ser ele próprio a autoridade. Isso corresponde a um mundo no qual o controle irracional é exercido, apesar de ter perdido sua convicção interna em função do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.” ADORNO, Theodor W.. A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. Trad. Gustavo Pedroso. Blog da Boitempo, São Paulo, 25 out. 2018. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/. Acesso em: 06 out. 2021.
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