A extinção da coisa soberanamente julgada em matéria tributária no Brasil – Por Henrique Franceschetto

31/05/2017

Com o intuito de garantir a aplicação do Direito conforme os ditames e valores da Constituição Federal e de solucionar os conflitos de forma definitiva, nosso ordenamento jurídico deveria prezar pela Segurança Jurídica, valor que deveria assegurar que a Lei não retroagisse para violar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (Cláusula Pétrea - Art. 5º, inciso XXXVI, da CRFB/88).

A coisa julgada, especificamente, é instituto que torna imutável e indiscutível as decisões transitadas em julgado, impossibilitando que haja nova demanda sobre o mesmo caso. Além de garantia constitucional, ela também está prevista no Novo Código de Processo Civil (Art. 502 do NCPC).

Ocorre que, por vezes, são proferidas decisões com vícios de legalidade e/ou constitucionalidade que, se perpetuadas, colocam em risco a estabilidade jurídica nacional. Neste contexto, ganha destaque a Ação Rescisória, via processual que flexibiliza o rigor da coisa julgada, permitindo a excepcional revisão da decisão outrora proferida.

O manuseio desta espécie processual ganhou força com o advento da Lei n. 13.105/2015, tendo em vista que a nova sistemática processual inclusive elenca como passível de Ação Rescisória a decisão cujo teor violou manifestamente norma jurídica (Artigo 966, V).

Neste sentido, pela amplitude semântica do termo norma jurídica, no presente artigo será (brevemente) abordada a possibilidade de utilização da Ação Rescisória em face de decisão transitada em julgado contrária a precedente judicial vinculante proferido posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (a “Coisa Julgada Inconstitucional”).

Inicialmente é importante destacar a distinção doutrinária entre a “Coisa Julgada” e a “Coisa Soberanamente Julgada”. Nas palavras de Humberto Theodoro Junior[1]:

Há, outrossim, diante da possibilidade de ação rescisória da sentença (art. 963) (sic), dois graus de coisa julgada, conforme a lição de Frederico Marques: a coisa julgada e a coisa soberanamente julgada, ocorrendo esta última quando se escoe o prazo decadencial de propositura da rescisória (art. 975), ou quando seja ela julgada improcedente. (Grifou-se)

Neste texto, em que adentramos a análise da hipótese de rescisão de coisa julgada inconstitucional em face de manifestação ulterior da Suprema Corte, vale trazer à baila os ensinamentos clássicos de Pontes de Miranda[2]:

Na ação rescisória há julgamento de julgamento. É, pois, processo sobre outro processo. Nela, e por ela, não se examina o direito de alguém, mas a sentença passada em julgado, a prestação jurisdicional, não apenas apresentada (seria recurso), mas já entregue. É remédio processual jurídico autônomo. O seu objeto é a própria sentença rescindenda – porque ataca a coisa julgada formal de tal sentença – a sententia lata et data (Grifou-se).

Importante destacar que o Autor tratava da Coisa Julgada Formal por ser um imperativo lógico do cabimento da Ação Rescisória (se não houver Coisa Julgada Formal, caberia recurso e não rescisão da decisão). Portanto, sua visão não excluía do alcance da Ação Rescisória a Coisa Julgada Material, apenas destacava que o mínimo necessário para tal era a existência da Coisa Julgada Formal.

As únicas e superficiais referências constitucionais ao instituto da Ação Rescisória encontram-se previstas nos Artigos 102, inciso I, alínea “j”, 105, inciso I, alínea “e” e 108, inciso I, alínea “b”, da CRFB/88, sem previsão de quaisquer parâmetros ou limitações ao legislador ordinário/complementar.

Com o advento do novo CPC, restou explícita a intenção de buscar a uniformização da jurisprudência e a manutenção de sua estabilidade, integridade e coerência (Art. 926, Art. 927 e Art. 489, § 1.º, V e VI; Art. 985, I e II; Art. 1.039 etc.). O Código concedeu, por isso, grande força às decisões proferidas nos Recursos Especiais representativos de controvérsia e Recursos Extraordinários com repercussão geral, além dos incidentes de resolução de demandas repetitivas (Art. 985, § 1.º c/c Art. 928; 947, § 3.º; 988, IV).

Iremos nos concentrar especificamente nas previsões do Art. 525, §15º e Art. 535, §8º, em face dos princípios e garantias constitucionais.

Estes artigos preveem que, no caso de decisão vinculante do STF proferida após o trânsito em julgado de uma ação individual sobre a mesma matéria, caberá Ação Rescisória em até dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. Destaca-se: o prazo da Rescisória da ação individual nestes casos deixaria de ser contado do trânsito em julgado desta, para buscar sua referência temporal em uma decisão proferida pela Suprema Corte em outro julgado, absolutamente independente, mesmo que já transcorrido período superior a dois anos da decisão individual!

Importante destacar que, desde já, qualquer decisão a ser proferida na Rescisória estará violando a Coisa Julgada em seu sentido clássico, conforme conceito de Liebman[3]:

A coisa julgada torna impossível ou inoperante a demonstração da injustiça da sentença, a saber, torna incondicionada a sua eficácia, e garante assim a segurança, a permanência e a imutabilidade dos efeitos produzidos. (Grifou-se)

A explicação para tal possibilidade estaria no fato de que a nova norma vinculante, veiculada pela Suprema Corte, estaria inovando o sistema jurídico pátrio, e uma vez que as relações jurídicas tributárias são de trato continuado, a parte tem direito a pedir a revisão do que foi estatuído na decisão (Art. 505 do NCPC), havendo quem defenda inclusive que não haveria nem mesmo a necessidade de ajuizamento de Ação Rescisória para rescindir agora a Coisa Julgada (agora considerada) Inconstitucional[4]-[5]. Entretanto, há controvérsia quanto a esta possibilidade em matéria tributária em razão do Art. 105 e 156, X do CTN, porém não há espaço neste texto para explorar estes dispositivos na profundidade necessária.

Pelo NCPC, portanto, podemos concluir que jamais ocorrerá a “Coisa Soberanamente Julgada” (conceito de Humberto Theodoro Junior[6] citado no início deste trabalho), posto que a decisão estará eternamente sujeita à rescisão por eventual decisão ulterior da Suprema Corte em Controle Concentrado ou Difuso, por mudança em sua composição ou qualquer outro motivo, mesmo que a Corte já tenha se pronunciado com força vinculante anteriormente. É que os pronunciamentos do STF não vinculam o próprio Tribunal, que portanto pode rever seus posicionamentos a qualquer tempo. Neste sentido[7]:

O Tribunal, embora salientando a necessidade de motivação idônea, crítica e consciente para justificar eventual reapreciação de uma questão já tratada pela Corte, concluiu no sentido de admitir o julgamento das ações diretas, por considerar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.

Deste modo, e com base em todo o exposto, pode-se perceber que, pela redação do NCPC, uma vez que a Suprema Corte sempre pode revisitar uma discussão já encerrada em caráter vinculante, reabrindo o prazo da Ação Rescisória, o instituto da Coisa Julgada no Brasil em seu sentido clássico (a “Coisa Soberanamente Julgada”), apesar de uma garantia constitucional pétrea (Art. 60, §4º, III da CRFB/88) foi pretensamente extinto, levando consigo um dos sobreprincípios constitucionais: a Segurança Jurídica!


Notas e Referências:

[1] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. I. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1081.

[2] MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória das sentenças e de outras decisões. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 499.

[3] LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 182.

[4] PACIORNIK, José Ilan. Ação Rescisória em Matéria Tributária: aspectos controvertidos. 108 folhas. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/143978/000905698.pdf?sequence=1>. Acesso em 26 mar. 2017. p. 87.

[5] BRASIL. Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. EMENTA: DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO QUE DISCIPLINA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA CONTINUATIVA. MODIFICAÇÃO DOS SUPORTES FÁTICO/JURÍDICO. LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA. SUPERVENIÊNCIA DE PRECEDENTE OBJETIVO/DEFINITIVO DO STF. CESSAÇÃO AUTOMÁTICA DA EFICÁCIA VINCULANTE DA DECISÃO TRIBUTÁRIA TRANSITADA EM JULGADO. POSSIBILIDADE DE VOLTAR A COBRAR O TRIBUTO, OU DE DEIXAR DE PAGÁ-LO, EM RELAÇÃO A FATOS GERADORES FUTUROS. Parecer PGFN/CRJ/nº 492/2011. Relatora Luana Vargas Macedo. Disponível em: <http://publicador.jota.info/wp-content/uploads/2016/07/CSLL-parecer-PGFN.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2017.

[6] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. I. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1081.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 2675/PE, rel. Min. Carlos Velloso e ADI nº 2777/SP, rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento na Sessão do Plenário de 19 out. 2016.


 

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