Por Luiz Ferri de Barros - 08/09/2015
“A exceção de verdade é um bom título”. Foi o que pensei ao pinçar dos alfarrábios esse nebuloso conceito jurídico para imprimi-lo na capa de um livro que pretendia escrever.
Como era meu objetivo tratar tão somente da verdade, a mais pura verdade, nada mais que a verdade, e como é sabido que a verdade pode desagradar e ofender, pensei comigo ser melhor me prevenir frente àqueles que porventura viessem a sentir-se desonrados.
Preparei para tal livro um prefácio visando a informar, a quem interessar pudesse, que não haveria desonra ou crime em que me enquadrassem pelas coisas de que eu falaria, pois nada mais seriam do que a mera expressão da verdade. Mas, que seria a verdade, essa musa tão bela e fugidia? Passei a refletir.
A verdade, como todos sabem – e quem não sabe deveria saber – é que nem o-diabo-no-meio-do-redemoinho. O demo existe ou não existe?
Pergunte-se a Riobaldo. Em Grande Sertão: Veredas, ao fim de tudo e tanto, que é por onde Guimarães Rosa começa a história – pelo final – Riobaldo não sabia a resposta. Mais ainda: diferentemente de Fausto, sequer sabia se havia o diabo, certa feita, se apresentado a ele, num átimo, à noite, no meio de um redemoinho de vento rasteiro.
Talvez que sim, pois ele o invocara de leve. Se no escuro fosse o sem- nome apresentando-se a seu pedido, teria Tatarana empenhado a alma ao cão? Seria de tal pacto derivada sua gloriosa invencibilidade e seu trágico destino, prenhe de trama de quilate inominável tanto quanto o demônio?
Ao drama existencial de Riobaldo soma-se a angústia metafísica pela impossibilidade da verdade. Sua tragédia fora coisa de homem de carne e osso ou maquinação demoníaca? Essa única dúvida o levaria ao inferno mais que mil pecados empilhados pelos cantos da memória.
Riobaldo não cogita da inutilidade da verdade. A sede de verdade aprisiona-o num falso dilema teológico e metafísico. Qualquer que fosse a verdade, teria sido menor a tragédia?
A verdade salva?
Tire-se o diabo de cena e ponha-se deus, a justiça e o direito, ou a ciência – essa nova religião que ressuscita o politeísmo – e o dilema permanece. A glória das vitórias e a tragédia dos erros serão menores?
Porventura ao vislumbrar a verdade-no-meio-da escuridão, com ela um homem pactuaria, pagando o preço? Para fazer o pacto com a verdade não se paga menos do que a deus ou ao diabo. Também há de se empenhar a alma. Mas eles aceitam receber a prazo, tomando posse da alma no futuro, enquanto a verdade... ora, ela exige pagamento à vista, sem a ilusão do faturamento diferido.
Segundo dizem, a verdade sempre acompanha o homem honesto. Daí ser impossível encontrá-la. Diógenes perambulava pelas ruas de Atenas levando uma lanterna à mão. Indagado sobre o que fazia, o filósofo escravo e rude retrucava que vagava à procura de um homem honesto. Não encontrou.
Tal qual deus ou o diabo, a verdade é uma abstração. Um conceito explicativo. Pode-se crer nele, ou duvidar. Mas, para o homem que não acredita em deus e no diabo eles deixam de existir, o que não acontece com a verdade.
A verdade não é maniqueísta como supõem os incautos. A dicotomia do verdadeiro-ou-falso melhor se aplica a gincanas de televisão ou a certas questões matemáticas elementares. Fosse simples assim a questão da verdade, não teria sido ela alçada a um dos pilares primordiais da filosofia, curiosa disciplina impossível e paradoxal, que busca entendimento para os problemas insolúveis.
Antes do verbo era a verdade. A idéia de verdade é necessária até mesmo para que se afirme a existência de deus ou do diabo – ou sua inexistência. O demo existe ou não existe?
Riobaldo não sabia em que acreditar ou duvidar. Ficou sem saber sua própria verdade. Ao ler Goethe, sabemos que Fausto não duvidou. Em hora, local e data certas, encontrou-se com Mefistófoles, com ele pactuando.
Era um sujeito prático esse doutor, e, tal qual um positivista avant la lèttre, iniciou sua perdição ao abarcar o saber – a fonte original de todo o poder. A primeira benesse auferida das mãos do demônio foi a verdade, o conhecimento universal, o domínio das ciências, das artes e de todos os artifícios, inclusive tendo o cão lhe ensinado como se deu a invenção da moeda e como se faz sua emissão desde a antiguidade. O demônio franqueou a seu cliente toda a farta plêiade de frutos daquela árvore que antes só produzia maçãs.
Afora as mágicas de Mefistófeles para atender às ambições de Fausto, ocasião em que este emitia derivativos sobre sua alma já hipotecada e vendia-os ao diabo para ulterior pagamento no inferno, a verdade tóxica instilada pelo demônio no doutor foi a da própria produção humana. Um infinito caleidoscópio de conhecimentos e informações, desconexos e irreconciliáveis entre si, de tal sorte que uns invalidam os outros!... Uma miscelânea que apenas insanos – a maioria, portanto – podem crer que da verdade derivará esperança. Eis a verdade como salvação.
Diz-se que existiu no século 16 um certo doutor cujo nome eventualmente seria Fausto – outros nomes de doutores lhe assentariam igualmente bem – que perambulou pelas cidades européias. Esse personagem, real ou mitológico, teria inspirado Goethe a escrever a obra que lhe demandou 60 anos – tempo maior do que Móises levou do Egito a Canaã para atravessar o deserto com os hebreus.
Esse doutor teria surgido cerca de trezentos anos após a fundação das primeiras universidades, alguns advogam que construídas pela igreja para recuperar os conhecimentos helênicos que se encontravam cativos dos mouros, ocultos dos europeus em línguas árabes desde o incêndio de Alexandria até a reconquista de Constantinopla pelos cruzados.
Talvez o saber dos gregos fosse divino: afinal seus demônios também eram deuses. Mas, ao menos parte das luzes renascentistas foi primeiramente acesa por letras de terceira mão. Tradutores e calígrafos copistas passavam para o latim obras gregas vertidas do árabe. Se o demo existe, terá ardilosamente surrupiado muitos pingos dos ii daqueles santos professores. Não será por outra razão que desde então os tradutores são malditos.
À época em que esse mitológico doutor Fausto vinculou-se ao demônio, a ciência, a arte e o empreendimento humano multiplicaram-se. Para a glória e a riqueza da igreja, sua verdade foi defendida pelo fogo dos inquisidores enquanto Colombo punha um ovo em pé para descobrir a América; uma calmaria descobria o Brasil para Cabral – fato muito auspicioso, pois assim ele encontrou milhares de índias, não só uma –; Shakespeare decretou em versos que nossa filosofia é vã e que o amor floresce no seio do ódio entre inimigos; e, não bastasse isto tudo e muitas outras revolucionárias formulações humanas daqueles tempos, um polonês de nome Copérnico deslocou a Terra do centro do universo.
Neste ponto do pacto, no Vaticano os cardeais parecem ter-se apercebido que Fausto, como embaixador da humanidade, poderia chegar longe demais, sem depois dispor de cacife para bancar as apostas no cassino das verdades eternas que o demônio celeremente demonstrava serem passageiras.
O papa convocou os sábios para restaurar a verdadeira verdade: deus não destinou seu filho a morar na periferia do universo. Surgiu então Descartes, um narigudo francês de longa cabeleira, que, valendo-se ao que consta dos fundos de uma princesa sueca, Cristina, não descartou a oportunidade de servir-se à glória de deus, pondo-se assim a meditar numa confortável poltrona em frente à lareira.
Desfrutando destarte dos confortos da existência, imaginou que ele próprio não existia. Note-se que a verdade cartesiana origina-se de uma divagação que ele denomina meditação, extravasada por meio de calculadas palavras que lhe ocorrem em pleno estado de conforto. Sabe-se que o sofrimento condiciona outras naturezas de meditação e verdades diversas.
Assim, no século faustiano, em que o sol deixou de girar em torno da Terra e a verdade chacoalhou para cá e para lá nas universidades, nos tribunais e nas fogueiras dos inquisidores, astuciosamente Descartes duvidou de tudo. De tudo, exceto da bondade de deus e de seu próprio bom senso, a que, como bom francês, modestamente, denominou razão.
Esse filósofo-geômetra imaginou um novo ponto de fuga para o desenho do universo, colocando-se a si mesmo no centro. Ao duvidar da existência de todas as coisas, inclusive de si mesmo – fato que até hoje depõe contra o bom senso que ele advogava possuir – ele afirmou que isto era um pensamento; reivindicou para si a autoria de tal pensar; e, a partir de um brado ou suspiro de alívio – penso, logo existo – reconstruiu a sua existência e a de todas as coisas.
Eis a verdade subjetiva, a serviço da restauração do ponto de vista ptolomaico, aquele anteriormente enunciado por Ptolomeu, que, como depois apontou Hannah Arendt, mantinha o homem no centro do universo, como era necessário para a fé.
Servindo a deus por convocação do papa, e ao diabo que atraiu por sua própria astúcia, esse Fausto francês apercebeu-se que para restaurar a posição do homem como filho preferido de deus, feito à sua imagem e semelhança, não era necessário defender Ptolomeu – mantendo o sol na periferia, girando em torno da Terra. Nem contestar a verdade assustadora de Copérnico, com a Terra a girar em torno do sol.
Tal qual Luís XIV faria alguns séculos depois na esfera política, ao bradar “O Estado sou eu”, Descartes declarou-se a si mesmo como sendo o centro do mundo – concepção faustiana mais-que-perfeita. Uma vez que a cogitação cartesiana pode ser repetida por cada homem, todos costumam iludir-se pela presunção de que a verdade do mundo se constrói exclusivamente a partir de sua própria consciência.
A consciência humana não se presta de substrato para a verdade. Trata-se de uma substância fluida e porosa, em constante mutação. A memória dos homens reinterpreta-se continuamente e a limpidez de sua razão turva-se diante do presente ainda não decantado que se apresenta no turbilhão dos acontecimentos mundanos do momento.
A racionalidade de cada homem se colocará, instintivamente, primeiro a serviço de sua autopreservação. Se isto resultar numa aproximação com a verdade, terá sido por mero acaso.
Estas são algumas limitações na busca da verdade a partir da filosofia e das ciências derivadas do subjetivismo cartesiano.
De outro lado, não são menores os problemas para encontrar-se a verdade – se é que ela existe – ao meio das teorias originadas do que se considera conhecimento objetivo. Aquele que é fruto da observação e, modernamente, do experimentalismo, inspirados originalmente nas idéias de Locke e Bacon.
Sem alongar o arrazoado neste ponto, porque não é o caso nem vale a pena, basta dizer que, desta ótica, a verdade somente existe a propósito daquilo que se possa observar ou realizar experimentos.
Essa é uma restrição de tão grande magnitude que muito pequeno alcance tem a verdade objetiva em relação à infinita complexidade e dimensão da realidade humana e universal.
Pois, em todas as esferas da vida humana, a verdade não é evidente por si mesma e, ao contrário do que reza a peroração mística e retórica, o passado demonstra que a verdade não prevalece. O que prevalece é a realidade.
A realidade existe por si mesma, tal como uma essência, a coisa-em-si. A verdade é apenas uma tentativa humana de apreender e representar a realidade. Tentativa nem sempre sensata ou honesta, diga-se.
Seja a busca pela verdade sincera e dedicada, ainda assim as limitações do homem impedem a apreensão perfeita da realidade de si mesmo e do mundo, razão por que suas verdades são prenhes de falsidades.
Entre os homens de boa vontade, o falso não é necessariamente mentira: pode ser apenas a enganosa apreensão do real, que se apresenta desvirtuado. Ou fruto de uma consciência que pela subjetividade deturpou o real.
Descartes julgava que somente os sentidos eram enganosos, jamais cogitou seriamente a propósito do quanto a razão também pode ser.
A ciência moderna, desdenhado do conhecimento intuitivo ou racionalista, venera a experimentação tecnológica, sequer se apercebendo que seus métodos, afinal, são concebidos a partir da racionalidade dos próprios experimentadores, sempre uma razão subjetiva.
Diante da dificuldade de definir-se limpidamente o que é conhecimento objetivo, houveram por bem alguns autores propor que se considerasse objetiva uma certa apreensão da realidade, ou a proposição de métodos para captá-la, quando endossados por diversos membros de uma comunidade acadêmica, a universidade, por exemplo: aquele exato local em que Goethe instalou Fausto em seu encontro com Mefistófoles.
Trata-se de uma falácia enunciar que a soma de várias percepções subjetivas equivale à objetividade. É o mesmo que dizer que muitas maçãs, pelo fato de estarem juntas, mudam de natureza e transformam-se em bananas. O máximo que se poderia afirmar, nesses casos, é que há um consenso, ou relativo consenso, sobre tais assuntos; jamais que tal percepção comum seja taxativamente de natureza objetiva.
A verdade nunca é absoluta. Não existe por si mesma. Trata-se de mera tentativa de representação, sob certo ângulo de visão, de outra coisa que não é ela mesma. Alguns afirmam que a verdade seria uma propriedade de ordem matemática, por assim dizer. Como pode se dar no caso da lógica.
Mas a matemática, deveriam saber os que não sabem, somente é exata como abstração, quando nenhuma coerência deve à realidade. O mesmo se dá com a lógica. É possível construirmos silogismos formalmente perfeitos cujas conclusões, no entanto, podem ser falsas se cotejadas com a realidade.
A lógica, portanto, apenas trata da coerência interna dos enunciados. E a matemática, no momento em que é utilizada para representação de uma realidade externa a ela... a matemática deixa de ser uma ciência pura, uma ciência exata na plena acepção epistemológica do termo.
Aqui terminava o prefácio a tal livro que, por oportuno, informo ter temporariamente, ou para sempre, desistido de escrever, haja vista que ao redigir tal apresentação fiquei em dúvida quanto à verdade das coisas sobre as quais escreveria.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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