A ESTÓRIA

05/07/2024

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Yasmin chegou à praia, caminhou entre os barcos encalhados na areia. Com a ponta do pé sentiu a temperatura cálida, o mar transparente. Não via ninguém por ali. Desfez se da canga, colocou os óculos de natação, respirou fundo, alongou-se. O mar aplacaria o turbilhão de sentimentos que lhe atravessava o peito. 

O pequeno forte do lado esquerdo da praia, seu ponto de localização. Ao nadar observava no fundo pequeninos peixes azuis a brincar sob a areia ondulada. Desenho feito pelo balançar das águas. A cada braçada, Yasmin inspirava, expirava, o corpo resvalava comodamente como se o mar fosse o seu elemento. O sol se dissolvia no horizonte formando tons de rosa e dourado. 

Após longo tempo, Yasmin resolveu flutuar suavemente. Se esticasse o braço poderia alcançar o céu. Fechou os olhos. Nada a acalmava mais que a canção vinda do mar. 

Uma onda a sacolejou, outra maior lhe fez engasgar.  Voltou à posição de alerta. O mar tornara-se agitado, turvo, o céu cor de chumbo. Yasmin estava sendo arrastada para longe da costa. Começou a nadar ferozmente, mas não saía do lugar. 

— Ei! Pode parar, pode parar... 

— Ela não está falando comigo. Tô ficando maluco...

—Eu vim nadar no mar tranquilo para relaxar. Quase consegui. Pirou? Tá tentando me afogar?

— Não. Queria provocar uma ruptura, dar suspense à narrativa.

— Tá! Dá pra me colocar na areia e continuamos a conversa? 

Yasmin consegue sair do mar, deita-se na areia, enquanto a brisa fresca seca o seu corpo exausto.

— Você acredita mesmo que alguém vai querer ler isto?

— Pra mim, chega.

— Escuta aqui... 

Vicente fecha o notebook no qual escrevia esta estória.  Estaria alucinando ou seria o efeito por não ter se alimenta do? Isso é o que acontece quando se mergulha demais nos personagens.

                                                            ...

O estúdio minúsculo onde mora não é limpo há dias.  Liga o som para desanuviar as ideias e esquenta o resto do almoço do dia anterior.

Descansado, reabre o computador na página onde interrompeu. 

— Alimentou-se bem? Relaxou bastante? Me deixou aqui nesta praia deserta. Já é noite, estou passando fome e frio! 

— Eu não escrevi isso. 

— Esperava o que no desenrolar do episódio?  — Vou deletar...

— Então começa deletando o nome que escolheu pra mim: Yasmin. Isso é nome de mulher poderosa que enfrenta o mar? 

— Posso trocar por... 

— Atena, Ísis... podemos escolher.

— Deusas de civilizações antigas? Falta veracidade.

 — Para de perder tempo com esse negócio de veracidade! Aqui, vale tudo.

— Como assim?

— Por falar em vale tudo, me tira logo desta praia deserta, vai que aparece um psicopata nesta escuridão. 

Yasmin, quero dizer, Ísis, apressa o passo em direção ao estacionamento, àquela hora deserto. Ao colocar a chave na porta do veículo, sente um vulto se aproximar.

—Quando você escreveu vulto, se referiu a um cara baixinho de óculos, meio raquítico, né?

— Nada disso. Gosto da ideia de um serial killer, pensei num cara forte, mal-encarado. 

— Essa estória tá manjada! Tá faltando criatividade.

— Quer que eu crie um serial killer raquítico?!

— E eu lá pensei em serial killer? O rapaz raquítico é o cobrador do estacionamento que, por sinal, ainda não paguei. Eu pago por mês, ele me conhece. Faz tempo que frequento esta praia.

— Dona Ísis, tá falando com quem? 

— Dona? Tenho vinte e cinco anos, rapaz. 

— Bem, Isinha, você vai pagar a mensalidade atrasa da? O chefe disse que se não pagar vai descontar do meu salário.

— Não te dei intimidade pra me chamar de Isinha.  Toma, cem reais, guarda o troco, desconta do mês que vem.

— Mas tá faltando cinquenta.

— Ah! Vai pro inferno!

Ela entra, bate a porta do carro, arranca furiosa. Chega ao edifício onde mora. Mal cumprimenta o porteiro, apressada.

— Apressada ou apertada?

—Como assim? Se estiver apertada pra ir ao banheiro, chegaria apressada, não? 

— Que seja. Não vou me apegar aos detalhes.

 

Ao entrar no apartamento, Ísis se dá conta: esquecera-se de comprar comida. O apartamento, um pardieiro, tamanha desorganização. Ela, uma jovem confusa, um tanto perturbada. Reflexo de uma família tóxica

— Tá de sacanagem! O leitor já percebeu aqui sua projeção. Não põe em mim o que é seu! Você, sim, um cara aéreo, vive num muquifo bagunçado. Quer dizer que EU sou assim? Vai fazer análise!

— Tudo bem, altero isso.

Ísis entra em casa. O marido alcoólatra, abatido, a es pera. O pobre gagueja apreensivo. Ouve-se os berros de um bebê. Ele tentou localizá-la, gaguejando diz que foi demitido da empresa. A empregada pediu as contas e foi embora. O filho está com febre alta e vomit...

—Sério? Você está fazendo isso comigo? Eu tenho cara de quem casou com um bêbado e teve filho? Sou uma mulher de vida livre!

— O que?

— Garota de programa, bem-sucedida.

— Esquece. Essa estória não tá dando certo. 

— Quem não dá certo é você como escritor.

-Pode deixar, eu assumo daqui em diante.

— Puta que pariu...

Vicente desliga o notebook.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Capture 2017-04-06T13_56_54 // Foto de: blob rana // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143045315@N03/33030523904

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura