Longe de mim reivindicar-me exemplo ou símbolo de qualquer coisa, mas... se um dia, por ventura, isso vier a acontecer, podem me prender!

Sucede, todavia, que há coisas que simbolizam coisas. A obra Angelus Novus, de Paul Klee, por exemplo, é a representação de um anjo que parece querer se afastar, a todo custo, de algo que está diante de si. Para Walter Benjamin, os olhos escancarados, a boca dilatada e as asas abertas, fazem com que a pintura se assemelhe ao que seria, segundo seu entendimento, a simbolização do anjo da história. Segundo Benjamin, um rosto voltado para o passado, onde enquanto nós veríamos apenas uma cadeia de acontecimentos, o anjo só veria a catástrofe. O anjo da história gostaria de voltar ao passado, mas há uma tempestade que submete suas asas e não o deixa retornar. Essa tempestade o empurra para o futuro, ao qual vira as costas, e o “amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.

Todos sabem, é claro, que o simbolismo não se restringe a manifestações artísticas. Algumas pessoas, instituições e países, por vezes reivindicam para sis o simbolismo em relação às mais variadas expressões e valores da humanidade. É recorrente na tradição estadunidense, por exemplo, a reclamação da ideia de liberdade. É comum que a população daquele país associe a sua pátria a própria representação da liberdade, uma espécie de baluarte ou bastião da liberdade. Não por acaso, um dos grandes símbolos nacionais é o monumento que tem lugar em uma de suas principais cidades: a Estátua da Liberdade.

Estátua. Tudo que a liberdade não pode ser jamais.

Por outro lado, vejam o Brasil, por exemplo. Não chega a ser nem ao menos necessário reivindicar a liberdade a partir de um símbolo que carregue esse valor, as grandes representações nacionais são justamente figuras em movimento. Basta pensar no samba ou no futebol. Não quero com isso simplificar e nem estereotipar um país com uma riqueza cultural tão grande como o nosso, mas os caracteres me limitam e por isso deixo, desde já, o mea culpa.

A Bossa Nova, por sua vez, é talvez uma das maiores representações da sofisticação e da miscigenação intercultural brasileira. Agregando aquilo que poderia parecer inagregável. O jazz, estilo criado e aperfeiçoado por aqueles que talvez mais sofram com restrições de liberdade nos Estados Unidos; e o samba, manifestação cultural que também já foi duramente perseguida por estes rincões. Não quero, também, entrar no mérito que contorna o tema da apropriação cultural, até porque me faltaria espaço, em que pese eu reconheça a importância da temática. Quero apenas chamar a atenção para o fato de que se trata de uma das expressões que mais simbolizaram país em meados do século XX. Até nossa estátua mais popular parece se mover ao som de Tom Jobim, “Cristo Redentor/Braços abertos sobre a Guanabara...”.

A Bossa Nova representa o cuidado com a forma e com o conteúdo, além da habilidade de congregar gêneros diversos. Cada palavra, cada nota musical, cada tonalidade. Oxalá pudesse o direito incorporar o espírito da Bossa, sobretudo o cuidado com os detalhes, sobretudo em relação à liberdade. Porque a liberdade não é descuido, desprendimento, selvageria. Liberdade é cuidado, responsabilidade, harmonia. Bossa Nova é poesia em movimento.

Poesia. Tudo que a liberdade deve sempre ser.

As palavras dizem coisas. Talvez a popularização da nomenclatura do monumento como Estátua da Liberdade seja sintomática. Os estadunidenses dão pistas, há tempos, de estarem se afastando dos ideais republicanos que orientaram a construção daquele país. Aquele símbolo, à época em que fora presenteado pelos franceses tinha outro nome: A Liberdade Iluminando o Mundo. Um nome, convenhamos, absolutamente inapropriado diante da postura e das políticas migratórias adotadas desde a orientação que vem da Casa Branca. Talvez o anjo da história já consiga visualizar a ruína estadunidense que cresce em nome do progresso.

Quando crianças são separadas de seus genitores e presas como animais enjaulados, não se está diante de um país no qual a liberdade ilumina o mundo, mas de um país onde a liberdade está nas sombras. A saída dos Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, após as críticas recebidas pela irresponsável política migratória, é a manifestação simbólica de que o país pelo menos há muito não se preocupa com a liberdade o tanto quanto brada.

Também o Brasil está a cada dia mais distante de um ideal de liberdade. A cultura punitivista que assola as mais diversas esferas da burocracia estatal faz com que as masmorras que eufemisticamente chamamos de presídios estejam abarrotadas, para muito além das capacidades. E nós seguimos prendendo mais. Não há impunidade no país, como pensam alguns desavisados. Muito pelo contrário, é possível observar a um massivo encarceramento que faz com que o país esteja próximo dos Estados Unidos nos rankings de populações carcerárias. As funções declaradas da pena se afastam sistematicamente, restando apenas o gozo da punição pela punição. E o paulatino abandono das garantias.

Neste ano se celebra os 60 anos de Chega de Saudade, um dos grandes marcos da Bossa Nova. Bom seria celebrar o retorno do vício da liberdade que um dia moveu cada criminalista neste país. E que todos sentissem a poesia em movimento, e dela recebessem a força para quebrar as correntes simbólicas que molestam o nosso povo, bradando aos quatro ventos: da liberdade, chega de saudade! Assim seria o Brasil lembrado, sem que preciso fosse se autoproclamar, um reduto de liberdade.

Para que não digam que sou um defensor incondicional da liberdade e que não admito a prisão em hipótese alguma, faço duas ressalvas em relação a mim mesmo. Se algum dia me quiserem prender, prendam-me com o grande amor nas Praias Desertas cantadas por Elizeth Cardoso. Ou em uma casa com televisão, em um desses meses de junho que acontecem a cada quatro anos, para que eu assista a todos os jogos com o cartaz de Galeano na fachada: “cerrado por fútbol”.

Não sejam as praias e nem a casa, entretanto, situadas em alguma banda onde a liberdade seja apenas uma estátua incapaz de iluminar o mundo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Liberty - NYC, Set2011 // Foto de: Ana Paula Hirama // Sem alterações

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