A essência moral da verdade jurídica

03/07/2016

Por Claudio Melim - 03/07/2016

A palavra moral reside em solo conceitual movediço, mormente quando vista ao lado do direito. Há várias possibilidades de significação e é preciso firmar uma visão prévia quando se fala sobre ela. Debates acalorados são desenvolvidos acerca da relação entre moral e direito sem que haja o devido cuidado com o sentido pretendido. O objetivo deste texto é propor uma outra percepção possível acerca dessa relação, destacando aspectos introdutórios do que pode ser chamado de a essência moral da verdade jurídica.

Moral e direito são unidades funcionais constitutivas da existencialidade ética do ser humano. Sentidos de pretensão diretiva de conduta própria e ou alheia que permitem a delimitação de modelos distintos de abordagem interpretativa, mas que não se prestam a um isolamento compreensivo. O seccionamento asséptico entre os sentidos morais e jurídicos é um mito. Não se compreende o direito sem a influência da moral.

Essa afirmação de uma inapelável relação compreensiva entre moral e direito é algo que precisa ser abordado com cuidado, pois está fundada nas complexas construções da fenomenologia hermenêutica heideggeriana. A compreensão é o fenômeno que possibilita e, ao mesmo tempo, condiciona a existência do ser humano. As coisas do mundo só existem para o ser humano porque podem ser compreendidas de alguma forma. A possibilidade de compreensão das coisas é resultado da facticidade, do efeito das experiências de vida. Não há controle sobre a compreensão. Não se pode olhar para uma maçã e ver um abacaxi, porque as vivências ensinam que uma maçã é uma maçã e não um abacaxi.

Mas tudo que é compreendido pode ser manifestado através da fala ou da escrita. Na perspectiva hermenêutica de Martin Heidegger, a manifestação do compreendido é denominada interpretação. A interpretação está depois da compreensão. Há um espaço possível de controle entre a compreensão e a interpretação enquanto manifestação do compreendido. É possível olhar uma maçã, compreender que se trata de uma maçã e, por qualquer motivo, dizer que se está diante de um abacaxi. O que não significa que o interlocutor aceitará a manifestação como verdadeira, mas apenas que ela pode ser dita. Há uma discricionariedade possível na consciência perceptiva que se dá entre compreensão e interpretação.

A verdade produz indícios pela linguagem tanto em relação à compreensão quanto à interpretação. No livro Ensaio sobre a Cura do Direito[1], foram apontados dois desses possíveis indícios: a legitimidade e a autenticidade. A legitimidade diz respeito à consistência compreensiva, enquanto a autenticidade está relacionada à sinceridade interpretativa. A consistência compreensiva é a densidade de vivências do intérprete acerca do tema sobre o qual ele fala. Uma pessoa não pode dizer algo consistente sobre uma maçã se nunca teve contato com a fruta ou com algo sobre ela. Essa consistência é o que empresta legitimidade a uma manifestação sobre algo.

Por outro lado, alguém pode saber muito sobre maçãs, mas esconder e ou deturpar seu conhecimento ao falar ou escrever sobre a fruta. Uma pessoa pode não ser sincera por motivos diversos quando fala ou escreve sobre algo que compreende perfeitamente. Isso diz respeito à autenticidade interpretativa. Como dito acima, é possível ver uma maçã, compreender que se trata de uma maçã e dizer que é um abacaxi, ainda que seja algo não verdadeiro, pois a verdade sempre pressupõe a não verdade. A autenticidade diz respeito à sinceridade da pessoa ao manifestar aquilo que compreendeu.

A moral está relacionada com o direito tanto no âmbito da compreensão quanto da interpretação. Pode influenciar tanto a legitimidade quanto a autenticidade da manifestação jurídica. As experiências morais de vida condicionam a compreensão de fatos jurídicos independentemente da vontade do intérprete. Não há controle sobre isso. Alguém que tenha sido formado sob a égide da moralidade católica compreenderá mais facilmente o direito em desfavor do reconhecimento da união homoafetiva do que o contrário. Isso não significa que esse alguém tenha consciência disso. Sua vivência moral influenciará a compreensão do fenômeno sem que ele perceba. A moral exerce, nesse caso, uma função de natureza ideológica, condicionando a compreensão para produzir sentidos possivelmente ilegítimos do ponto de vista jurídico.

Mas a influência mais significativa da moral sobre a verdade jurídica está relacionada à questão da autenticidade, que diz respeito à sinceridade do intérprete em relação aos fatos por ele compreendidos. Em palavras simples, trata-se da mentira interpretativa deliberada, que ocorre quando um profissional do direito compreende uma coisa e deturpa inescrupulosamente essa coisa com objetivos determinados. Não se trata necessariamente do extremo das mentiras ou omissões fáticas passíveis de tipificação criminal. O que se está dizendo é que um julgador pode, por exemplo, manipular sua manifestação jurídica por motivos íntimos sem que essa manipulação seja necessariamente ilegal. Ele pode compreender que o autor tem razão e decidir conscientemente em favor do réu, sendo que a única proteção ao direito nesse caso será a coação da própria consciência moral do julgador em relação à sua mentira.

Esse tipo de não-verdade jurídica não se dá necessariamente em favor do “mal”. Um julgador poderá deturpar a manifestação do que compreendeu apenas para defender o que acha mais justo, ainda que tenha consciência de que o ordenamento jurídico aponte para outra resposta. O problema é que qualquer tipo de não-verdade jurídica vai sempre de encontro ao ideal de Estado Democrático de Direito. A verdade jurídica é o fundamento maior desse modelo de Estado e o seu contrário deve ser combatido a todo custo.

Nessa luta, as perspectivas meramente metodológicas favorecem tanto as manifestações juridicamente verdadeiras quanto as não verdadeiras, servindo, por vezes, como ferramentas para a construção de ficções de racionalidade legitimadora da não-verdade jurídica. A negação ingênua da essência moral da verdade jurídica em prol de uma razão procedimentalista asséptica pode ser um dos erros mais graves que a comunidade jurídica esteja cometendo atualmente. Talvez a melhor solução não seja buscar o inalcançável expurgo da moral e sim aprimorar a compreensão acerca da sua natureza.

Trata-se de algo complexo que possui inúmeros desdobramentos temáticos possíveis. O que está neste texto é apenas a pretensão de introduzir uma outra possibilidade de reflexão acerca da inescapável relação existencial havida entre moral e direito. De forma muito superficial, busca-se provocar um debate sobre a real necessidade de isolamento da moral em relação o direito. Talvez a efetividade do direito dependa mais do acolhimento compreensivo da moral do que o contrário.


[1]    MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do direito: indícios de uma verdade jurídica possível. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. Compre aqui
claudio-melim2 Claudio Melim é Mestre e Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Possui graduação em Direito e Ciência da Computação pela mesma instituição. Advogado.  E-mail: claudio@melim.com  
Imagem Ilustrativa do Post: Paris/ Autor: Moyan Brenn/ Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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