Por Lucas e Silva Batista Pilau – 11/11/2016
A catarse que caracteriza os ordenamentos da modernidade está identificada por Agamben quando o plano da exceção tende a sobrepor-se constantemente, tornando ambos paradoxalmente indistinguíveis, a partir da relação de exceção imposta entre o que é regra e o que é fato, interno e externo, zoé e bíos, exclusão e inclusão, direito e fato[1]. Os homini sacri se multiplicam para além do que pretendeu qualquer monarca mais ferrenho algum dia na história ao suspender imediatamente os direitos de seus súditos – afinal, haveriam alguns incautos que, por nobreza ou ofício religioso, poderiam manter-se dentro da lógica do ordenamento. Hoje, mesmo com o regime democrático sendo regularmente adotado pelos países do Ocidente, a exceção, vai apontar Agamben, vira a regra quando o ordenamento suspende a si próprio permanentemente, vindo a criar verdadeiras terras de ninguém[2].
Desde 1940 que Walter Benjamin, na Oitava Tese de suas teses Sobre o conceito de história, alertou: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” (“Ausnahmezustand”) em que vivemos é a regra”[3]. Quer dizer, enquanto a vida de alguns mantém-se politicamente qualificadas, e assim acobertadas pelo ordenamento jurídico e suas garantias elementares, a outros esse mesmo ordenamento suspende-se a si próprio, deixando-os despidos (ou abandonados) de qualquer força que impeça a violação de seus direitos e não comumente a própria eliminação física – vida nua por excelência. Com isso, assiste-se à construção de um mundo inumano onde a violência reina para todos os lados e o in-suportável passa a ser suportado[4].
Nesse caminho, a figura do soberano pode ser vista na figura da polícia moderna, vez que essa, para muito além de uma função meramente administrativa, vai carregar consigo, dentro dos espaços de exceção, a troca constitutiva entre violência e direito (que caracteriza a soberania[5]), principalmente pela zona de indistinção posta pelas sempre lembradas palavras-chave – as quais fazem as pessoas aceitarem medidas que não teriam motivos para aceitar[6] –ordem pública e segurança[7]. A sacralidade com que a polícia une em sua figura tanto o soberano (quem decide) quanto o carrasco (quem cumpre) não pode ser esquecida, tanto mais quando se lembra que as atrocidades do Terceiro Reich ao fim trataram-se exclusivamente de uma operação de polícia – com o extermínio de milhões de judeus em campos de concentração[8].
Esse papel decisivo da polícia já foi colocado à exposição por Walter Benjamin em seu famoso Zur kritik der gewalt, ou Crítica da violência – crítica do poder, momento em que assinala a existência de duas violências: a que funda e a que conserva. A primeira tem seus traços no direito de greve concedido pelo Estado, assim como no direito bélico (ou da guerra). Em ambas essas situações, um direito originário é criado, ameaçando o poder instituído desde seu interior. Seus requisitos seriam a vitória através do estabelecimento de uma paz, a qual consiste em que as novas relações reconheçam um novo direito[9]. Violência que funda um direito, portanto, e ameaça a própria sobrevivência dele constantemente. Por seu turno, Benjamin ressalta que o serviço militar obrigatório demonstrará existir outra violência. A violência que conserva. Ao direito, não basta somente impor novas relações, mas mantê-las. A coação que impõe o serviço obrigatório consiste exatamente na imposição de violência como meio para fins jurídicos.
Com foco na polícia, Benjamin vai trazer que essa é portadora, quase de forma espectral, dessas duas violências, na medida em que é tanto um poder com fins jurídicos (podendo dispor), mas ainda carrega a possibilidade de estabelecer para si própria, dentro de vastos limites, os fins (poder para ordenar). Porém, o que mais produz horror na autoridade policial é que essa suprimiu a divisão entre violência que funda e violência que conserva a lei: se na primeira é exigido que se mostra a vitória (e instauração de um novo direito, portanto) e na segunda que não proponham novos fins (para além dos já estabelecidos pelo direito fundado), a polícia encontra-se emancipada de ambos. Isso porque a polícia é um poder que funda – na medida em que se operacionaliza não pela lei legislada, mas por decretos e regulamentos com força de lei – ao mesmo tempo que conserva o direito, pondo-se à disposição de seus fins[10].
Frente a isso, Benjamin irá afirmar que os fins da polícia nem sempre são idênticos aos do direito estabelecido, o que faz dela uma instituição que se utiliza de um poder informe, espectral, difuso e de difícil localização. Assim, seu espírito é menos destrutivo onde encarnava, na monarquia absoluta, o poder do soberano, onde se reunia legislativo e executivo na mesma figura, do que nas democracias, onde sua presença testemunha o máximo de degeneração possível da violência[11]. Recordando-se da pergunta de Derrida acima colocada: polícia não poderia ser o nome daquilo que degenera a democracia?[12] Em outros termos, pode-se arriscar a colocar da seguinte maneira a questão trazida por Benjamin: a polícia, ao não estar totalmente vinculada ao direito anteriormente fundado e calcado em leis provenientes do Poder Legislativo (e, dessa maneira, da vontade do povo (e sua soberania), elemento que funda as democracias modernas) acaba por, através de decretos e regulamentos, fundando constantemente – como dirá Foucault, em golpes de estado permanentes[13]– um novo direito através da violência. Não se sabe a que direito a polícia está vinculada, se àquele vinculado a um poder central ou à sua própria regulação interna. Soberania latente: violência e direito se confundem, tornando-se indistinguível ao mover-se dentro do campo da exceção.
Jacques Derrida, nos rastros deixados pelo referido texto de Benjamin, vai tentar aprofundar algumas questões acerca da espectralidade da polícia, a qual, segundo o pensador francês, decorre do fato de ser um corpo que nunca está presente para ele mesmo, para aquilo que ele é, ou seja, ele aparece desaparecendo ou fazendo desaparecer aquilo que representa: um pelo outro. No fundo, nunca se sabe com quem se está lidando, na medida em que os limites da polícia de Estado são indetermináveis: ao fim e ao cabo, imunda por essência, em razão de sua hipocrisia constitutiva. Essa ausência, continua Derrida, de limite provém não só pelo fato de a polícia ser uma tecnologia de vigilância e repressão, mas também por ser o espectro do Estado, de modo que, rigorosamente, não se pode atacá-la sem declarar guerra à res publica[14].
Entrelaçando com as violências de Benjamin e com os espaços de exceção de Agamben, Derrida pontua: a polícia não se contenta em seguir a lei, pois ela a inventa, ela publica decretos, ela opera com a noção de segurança – aclamada contemporaneamente no Ocidente – toda vez que a situação jurídica não é suficiente, ou seja, “hoje, quase o tempo todo”[15], afinal ela é força de lei, ela tem força de lei. Ela inventa o direito toda vez que esse é insuficientemente indeterminado para lhe dar essa possibilidade, quer dizer, “a polícia se comporta como um legislador nos tempos modernos, para não dizer como o legislador dos tempos modernos”[16].
No fundo, vai dizer Derrida, o que ocorre é o paradoxo da iterabilidade: a polícia não se contenta em aplicar leis que antes dela não possuíam qualquer força, afinal o paradoxo consiste exatamente que a origem deva originariamente repetir-se e alterar-se, para então valer como origem e se conservar. Tal iterabilidade impede que haja fundadores puros, legisladores, iniciadores. Assim é que a polícia, como violência fantasmagórica – figura sem figura – torna-se, ao captar as duas violências (fundação e conservação), ainda mais violenta.
Pois bem, a polícia que assim capitaliza a violência não é apenas a polícia. Ela não consiste somente em agentes policiais fardados, às vezes com capacetes, armados e organizados numa estrutura civil de modelo militar, à qual é recusado o direito de greve etc. Por definição, a polícia está presente ou representada em toda parte onde há força de lei. Ela está presente, às vezes invisível mas sempre eficaz, em toda parte onde há conservação da ordem social[17].
Assim, um mal de polícia é o fato de essa ser uma figura sem rosto, uma violência sem forma, não sendo apreensível como tal em nenhum lugar, sendo que nos Estados civilizados o espectro de sua aparição se estende por toda parte, pontua Derrida[18]. Por isso, e na esteira de Benjamin, pode-se arguir que o espírito da polícia faz menos estragos em uma monarquia absoluta do que propriamente nas democracias modernas, onde sua violência a degenera. Quer dizer, enquanto nas monarquias absolutas os poderes executivo e legislativo então unidos, sendo a violência da autoridade do poder normal nesse caso, conforme seu espírito declarado, por outro lado nas democracias a violência não está à disposição da polícia (e ao seu espírito), na medida em que há a presumida separação dos poderes, exercendo-se aquela de maneira ilegítima, sobretudo quando, ao invés de aplicar a lei, ela a faz[19]. Degenerescência, portanto, que corrói por dentro a democracia.
Nesse sentido, como espectro que é, a polícia se torna de difícil localização. Ela está e não está ao mesmo tempo, tornando-se extremamente dificultoso defini-la ainda que haja figuras em sua representação. Mas como espectro que assombra, ela olha para todos por trás de sua armadura, ao mesmo tempo que não é vista – Derrida sublinhará tal fenômeno como efeito de viseira[20]. Por trás de uma armadura, o espectro enxerga sem ser enxergado. Proteção problemática, na medida em que não permite que a percepção de quem a olha decida sobre a identidade que se encontra encerrada ali. A armadura – ou, no caso da polícia, seus contemporâneos trajes de robocop que contam com escudos, coletes a prova de balas, capacetes e viseiras – seria, portanto, uma espécie de corpo de um artefato real, um corpo estranho ao corpo espectral que ela veste, dissimula e protege, mascarando sua identidade[21].
Tal armadura funciona para que o espectro veja sem ser visto, fale e seja ouvido. A viseira possibilita esse funcionamento. A correlação com o espectro da polícia, então, fica bastante claro e abre para novas perspectivas. Como já referido, é difícil de se estabelecer a identidade da polícia, por essa ao mesmo tempo carregar as violências que fundam e conversam e, não menos importante, operacionalizar-se a partir da exceção – como soberana que é. O efeito de viseira é o que dá possibilidades de em algum momento enxergar-se o corpo espectral da polícia, não por trás da armadura, mas superficialmente. Apenas saber que ali se encontra uma figura fantasmagórica, porém sem possibilidade de descobrir a que veio – através da violência, fundar ou conservar o direito?
Notas e Referências:
[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, pp. 25-27.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti – 2. ed. – São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.
[3] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1), p. 245.
[4] SOUZA, Ricardo Timm. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016, p. 77.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla política. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 83.
[6] AGAMBEN, Giorgio. L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2014, pp. 333-352.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine, p. 84.
[8] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. 2ª Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 107.
[9] BENJAMIN, Walter. Por una crítica de la violencia. Edición eletrônica disponível em: www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidade ARCIS. Acesso em: 02.11.2016.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 107.
[13] FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 457.
[14] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, p. 99.
[15] Idem, p. 99.
[16] Idem, p. 99.
[17] Idem, p. 102.
[18] Idem, p. 103.
[19] Idem, p. 107.
[20] DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 23.
[21] Idem, p. 23.
. Lucas e Silva Batista Pilau é Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (PUCRS). Co-coordenador do Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Advogado voluntário do G10 (PIPA/SAJU/UFRGS). .
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