A espada de Dâmocles na reparação de danos no sursis processual

25/02/2016

Por Marcos Peixoto[1] - 25/02/2016

“Renda anual de vinte libras, despesa de dezenove libras, dezenove xelins e seis pence, resultado: felicidade. Renda anual de vinte libras, despesa anual de vinte libras e seis pence, resultado: desespero”.

Charles Dickens

Segundo a lenda (relatada originalmente por Timeu de Tauromênio e, depois, eternizada por Cícero em suas  Tusculan Disputationes), Dâmocles, um dos melhores amigos e conselheiro de Dionísio tirano de Siracusa, costumava sempre dizer a este que o monarca possuía uma vida invejável e plena de fortuna. Certo dia, Dionísio convidou Dâmocles a assumir seu trono por um dia. Sentado no trono, Dâmocles desfrutava de todos os prazeres da corte de Dionísio quando, ao olhar para cima, viu que pendia exatamente sobre sua cabeça uma pesada espada suspensa por um único fio de rabo de cavalo. Assustado, de pronto Dâmocles se levantou e se afastou do trono. Dionísio, então, explicou-lhe que via aquela espada todos os dias pendente sobre sua cabeça, pois sempre haveria a possibilidade de alguém ou alguma coisa partir o fio.[2]

Assim pode ser entendida a chamada justiça penal negocial. Onde alguns veem, sem maiores reticências e muitas vezes com louvores, “consenso”, o que existe na verdade é um “acordo” celebrado de um lado pelo Estado e de outro por um cidadão que tem sob sua cabeça a pesada Espada de Dâmocles, ali posicionada pelo próprio Estado, representativa da ameaça de condenação. Assim, diuturnamente avenças que seriam consideradas inválidas por qualquer civilista por vício de vontade são homologadas acriticamente pelos penalistas ao argumento de que a alternativa de correr o risco da condenação criminal seria pior – quando este é justamente o fundamento a viciar o “acordo”.

Tal fator leva este magistrado a considerar a chamada justiça penal negocial (que – é bom lembrar – dispõe de assento constitucional no artigo 98, I, da Carta Maior) não menos do que com redobrada cautela, e a admitir que seja celebrada somente nas hipóteses legais e diante de suficiente justa causa, respeitados todos os ditames fundamentais, sobretudo a ampla defesa, realizando pessoalmente as audiências pertinentes de modo a garantir um mínimo de independência, segurança e liberdade transacional ao indiciado ou acusado – sem perder de vista a Espada de Dâmocles sobre a cabeça destes, presente bem ali, na sala de audiências.

Ocorre que, ainda assim, há um grave problema a ser enfrentado, o qual concerne à chamada reparação do dano nas suspensões condicionais do processo.

Prevê o artigo 89 da Lei 9099/95, que “Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências” (grifei):

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - proibição de frequentar determinados lugares;

III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

Seria legítimo que, em audiência, ofertada proposta de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público inserindo a condição de reparação do dano, havendo controvérsia quer no que toca à existência do dano ou montante da reparação, não seja possível ao acusado usufruir de tal benefício despenalizador?

À toda evidência a resposta é: sim, plenamente possível.

Primeiramente porque o Ministério Público não é cobrador da parte lesada (não pode e não deve se rebaixar a tal função!), nem dispõe de legitimidade processual para falar em nome dela – da mesma forma que não o tem para formular pedidos indenizatórios em ação criminais, não pode exigir, como condição inafastável de um benefício de natureza penal, o adimplemento de uma eventual dívida cível que, pior, não é líquida, nem certa e, portanto, não é exigível. Tal forma de atuação violaria o rol de funções institucionais do Ministério Público previsto no artigo 129 da Constituição Federal, e estaria maculada pelo vício da falta de legitimidade.

Da mesma forma, seguir em direção a uma condenação ao negar um benefício despenalizador por força de controvérsia de natureza cível e, em específico, patrimonial, viola de forma transversa o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos)  que, em seu artigo 7.7 estatui que “ninguém deve ser detido por dívidas”.

Na esfera penal, a obrigação de reparar o dano é fruto da sentença penal condenatória transitada em julgado (artigo 63 do Código de Processo Penal). Não pode, numa completa e absurda inversão de valores, a obrigação de reparar o dano gerar uma condenação pois, no fundo e afinal, esta seria uma condenação originária de uma dívida, que geraria uma prisão por dívida, o que é claramente vedado, como visto, pela Convenção Interamericana.

O estabelecimento da reparação de dano como condição sine qua non de um benefício despenalizador coloca de pernas para o ar o direito e o processo penal ao conduzir a causa penal para um debate que lhe é, a princípio, estranho e, no contexto da aplicabilidade do sursis  processual, absolutamente extemporâneo uma vez que a reparação civil, como visto, será mero efeito reflexo de uma eventual sentença criminal condenatória (isto quando não foi formulado, por quem de direito – e assim não o é o Ministério Público –, o pedido de reparação). Por outras palavras: o processo penal não pode colocar a questão patrimonial como norte, nem o direito penal pode ser aplicado porque assim demanda o direito civil.

Forçar um indiciado ou réu, com o uso da espada de Dâmocles, a celebrar um acordo de natureza cível implicaria em forçá-lo, com base em meros indícios de um Inquérito Policial (Bernd Schünemann, segundo Vinicius Gomes de Vasconcellos[3], chama a isto, junto a outros exemplos de hipervalorização dos indícios coligidos na fase pré-processual, de “apoteose do inquérito”), a abrir mão da jurisdição cível, em abrir mão de contestar ou discutir em Juízo a dívida em si ou seu valor, violando desta feita a cláusula pétrea de inafastabilidade do controle jurisdicional de um lado, e por outro o princípio da dignidade humana, já que não se afigura minimamente legítimo sob este prisma compactuar com algo similar a “ou paga ou vai preso”, algo que remonta à Era Vitoriana, como bem retratado em obras primas de Charles Dickens, tal como em “As Aventuras do Sr. Pickwick” ou em “David Copperfield”, época em que uma dívida poderia redundar no desespero da prisão, como aponta a epígrafe.

Como sustenta Geraldo Prado, em obra capital:

Nem todos os objetos estão no mercado e podem ser validamente negociados. É até possível, na ótica da tese e com as ressalvas consignadas no próximo item, abrir mão do devido processo legal, desde que o interesse em jogo seja de índole patrimonial ou equivalente. As liberdades públicas não têm essa característica.

A restrição ao exercício de direitos fundamentais, na hipótese de colisão de interesses, é solucionada pela aplicação do critério da proporcionalidade e leva em conta a preservação do núcleo inflexível dos direitos fundamentais e o interesse que, embora no caso concreto seja também o de um indivíduo, coincide com o interesse público de tutela das condições de se assegurar a dignidade da pessoa humana.

A irrenunciabilidade do direito fundamental, pelo particular, é o antecedente lógico da indisponibilidade e no campo jurídico invalida, por contradição com a Constituição, qualquer ato tendente à abdicação dos direitos individuais”.[4]

E, mais à frente, Prado arremata:

A ameaça de sanção inerente a todo processo acusatório é, queiram ou não os defensores da transação, um elemento de coação que desequilibra a posição jurídica dos contratantes e tende a ser tomado como limitador do consenso como livre manifestação da vontade. Se isso é certo, em termos de transação sobre pena restritiva de direitos, com a transação em torno da prisão acentua-se esse caráter coativo, e a forma com que se reveste o processo é apenas uma aparência, irreal como a roupa do rei da fábula, pois não há consenso de fato, somente imposição da vontade de quem detém o monopólio do exercício legítimo da força sobre aquele que se apresenta na qualidade de imputado, suspeito da prática de uma infração

todavia tutelado pelo princípio constitucional da presunção de inocência”. [5]

No mesmo sentido as palavras de Vinicius Gomes de Vasconcellos, em magnífico livro sobre a temática da justiça criminal negocial:

“(...) o requisito da voluntariedade na aceitação da barganha é falacioso, pois o funcionamento dos mecanismos se dá por ameaça, que causa a impossibilidade de qualquer escolha livre da defesa, atestando problemática que, por certo, intensifica-se diante do panorama de desigualdade social brasileiro, o qual já é permeado por insuficiências na assistência jurídica penal. Além disso, a escusa de que a posição do acusado na persecução penal é intrinsicamente coativa e desconfortável resta fragilizada e caracterizada como "redução ao absurdo", uma vez que a coerção imposta pela ameaça de punição mais grave se for recusado o acordo é ilegítima e ilegal, ao passo que a realização de investigação ou processo é legítima e legal, se presentes os requisitos mínimos, como a justa causa”.[6]

Justamente por isto o processo civilizatório (exceção feita aos débitos alimentares, por seu essencial valor humanitário) se afastou desta noção, i.e., da vinculação entre prisão e dívida, geradora de profundos sofrimentos ao ser humano em passado remoto (na época de Dickens – é sempre bom lembrar o mal que já foi feito, para que não seja repetido –  não só o devedor era aprisionado, como junto também ia para trás das grades toda a sua família), que não podem subsistir no presente, em plena vigência do princípio da dignidade humana.

Daí porque, enfim, é imperioso que se faça uma leitura do inciso I do artigo 89 da Lei 9099/95 sob a ótica constitucional e convencional aqui sustentada, não para considerar o dispositivo inconstitucional mas, numa interpretação conforme, entender que a reparação civil do dano não pode ser estabelecida como condição sine qua non do sursis processual para, não havendo acordo neste ponto, poder a proposta de suspensão ser homologada parcialmente pelo Poder Judiciário.


Notas e Referências:

[1] Artigo escrito em modesta homenagem ao amigo e mestre Geraldo Prado, que desde o primeiro momento em terra brasilis se opôs peremptoriamente ao acolhimento pela legislação penal pátria de estratégias de justiça negocial;

[2] Informações retiradas da internet em http://www.brasilescola.com/biografia/damocles.htm, consultado aos 03 de setembro de 2015;

[3] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de, Barganha e Justiça Criminal Negocial, São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 179;

[4] PRADO, Geraldo, Transação Penal, Coimbra: Almedina, 2015, p. 305;

[5] PRADO, Geraldo, op. cit., p. 329;

[6] Vasconcellos, Vinicius Gomes de, op. cit., p. 168.


250406_630419327069987_6379200007586818484_n2. . Marcos Augusto Ramos Peixoto é Juiz de Direito – TJRJ. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Dark Baird Point // Foto de: Chad Cooper // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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