Politizar um evento catastrófico como o que acomete o Rio Grande do Sul é de uma canalhice sem precedentes!
No mesmo diapasão, promover uma disseminação sistêmica de Fake News sobre essa tragédia, expõe algo muito próximo à nulidade humana; tanto moral, quanto espiritual... pra quem as tem.
Infelizmente, não é de hoje que o assunto Fake News ganha repercussão. Basta acessar os escaninhos da memória para rememorar os recentes (e nocivos) acontecimentos nos palcos da pandemia, operação lava jato e eleições, por exemplo.
Nessa esteira, há mais de dois anos já contextualizávamos no artigo “A censura democrática imposta pelas Fake News”, que:
“Também foi objeto de ampla veiculação, uma Fake News propagando que os efeitos da vacina contra a Covid-19 teriam provocado a morte de 4 mil pessoas no Brasil. Assustadoramente, por conta também desse fator, o Jornal O Globo divulgou na segunda (24), que há cidades no país cujo esquema vacinal só foi efetivo em 20% da população!”[1]
Invariavelmente, há intenções por trás do véu da notícia falsa ou manipulada. Manipulação que também é encarada como Fake News, pois falseia a verdade, induz a erro e, quase sempre, culmina em consequências desastrosas; e como no episódio caótico do Rio Grande do Sul, desumanas.
Perde-se um tempo precioso “desmentindo a mentira”. Sim, é redundante! É preciso reiterar – sem redundâncias desta vez –, que maquiar acontecimentos, forjar notícias ou potencializar fatos já superados como se atuais fossem, é repugnante! Ah se todo esse empenho fosse destinado a fazer o bem ao próximo ou a superar dificuldades impostas pela atipicidade vivida?!
Trazendo o mesmo texto já citado e publicado em 2022:
“Sabe-se que o combate às Fake News é muito difícil e complexo. Conforme o artigo ‘The psychological drivers of misinformation belief and its resistance to correction’ (Os estímulos psicológicos da crença na desinformação e sua resistência à correção), publicado na revista de artigos científicos sobre psicologia chamada Nature, há algo intrinsicamente ligado a fatores psicológicos no tocante às Fake News.
[...] Os pesquisadores apontaram que acreditar em falsas notícias ao ponto de defendê-las e propagá-las, pode ter ligação com fatores cognitivos, sociais e afetivos; mais do que meramente ligado à escolaridade. De acordo com o estudo, isso ocorre porque o indivíduo interpreta as notícias a partir de referências periféricas (familiaridade com o assunto, clareza da mensagem e coesão com memórias já experienciadas).
[...] “Outro ponto sublinhado tem relação ao fato daquela informação falsa ir ao encontro de alguma visão particular. Ou seja, as Fake News são mais críveis quando complementam algo que o leitor já toma como verídico; o que se chama de ‘viés de confirmação’. Assim, tanto o posicionamento político como a visão de mundo que cada pessoa já carrega consigo, provavelmente irá interferir na formação do pensamento intuitivo automático; um ‘prato cheio’ em tempos de polarização política tão ‘apimentada’ no país!”[2]
Assim, no tocante à tragédia climática do estado gaúcho, paira no ar a reflexão acerca da real intenção (dolo) de quem retransmite uma notícia falsa.
Por isso, há que se considerar os disseminadores culposos, ou seja, aqueles que também foram enganados pela Fake News e repassam a desinformação por pura “negligência, imprudência ou imperícia”. Afinal, deveriam ter o discernimento e a responsabilidade de consultar os canais oficiais antes de compartilhar o que “se ouviu dizer”.
Já por outro prisma, haveria a difusão de Fake News por “dolo eventual” ou “culpa consciente”, onde cidadãos comuns são alçados a “assessores de imprensa” da mentira, espalhando inverdades adiante.
No ponto, cabe expor a interessante diferença entre dolo eventual e culpa consciente (ou imprudência consciente). Sendo assim, na visão acurada do doutrinador Juarez Cirino dos Santos:
“A literatura contemporânea trabalha, no setor dos efeitos secundários (colaterais ou paralelos) típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos-pares para definir dolo eventual e imprudência consciente: a) o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado – às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita; b) a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação.”[3]
A diferença é sutil. Observa-se que, enquanto no dolo eventual – embora haja um resultado previsível –, o disseminador de mentiras assume o risco de produzi-lo. Já na culpa consciente, o mentiroso digital tem uma previsibilidade de resultado negativo, porém tem a plena certeza de que nada de mau ocorrerá ao encaminhar aquela notícia “exclusiva” e “bombástica” no grupo de mensagens da sua família.
Seriam espécies de inclinações àquilo que seu subconsciente desejaria ter como verdade. Lamentavelmente, mesmo que isso represente torcer contra ações solidárias particulares ou governamentais; e, automaticamente, contra as milhares de vítimas.
Por fim, e o que pensar daqueles que criam uma falsa imagem com o uso de inteligência artificial para tentar construir um “herói”?
E o que dizer daqueles que gravam vídeos exalando uma suposta preocupação, mas que permanecem nas partes secas e seguras da cidade sem, literalmente, colocar os pés na água? Tem, também, os que “se colocam no lugar” das inúmeras famílias dilaceradas quando comparam essa catástrofe ao furto das suas joias no Natal.
Mas e aqueles que doam peças de roupas sujas ou rasgadas? E alimentos vencidos? E sapatos de salto alto e vestidos de festa para quem perdeu tudo o que tinha?
E os que estão no “front” em busca de likes, curtidas e engajamento visando um mandato futuro? E os que nada fazem? São muitos os questionamentos... pensamentos... lamentos e sofrimento! Mais do mesmo: Fake News.
Resta-nos a confiança em dias melhores e um poema de Cecília Meireles:
“Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota...”[4]
Notas e referências
COUTINHO, Thiago de Miranda. Artigo: “A censura democrática imposta pelas Fake News; os riscos e ameaças ao Estado Democrático de Direito em pleno 2022”. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/358669/a-censura-democratica-imposta-pelas-fake-news>
MEIRELES, Cecília. Poema “Romance das Palavras Aéreas”. Rio de Janeiro. Nova Aguilar. 1985.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3. ed. rev. e ampl. Curitiba: ICPC, Lumen Juris: 2008, p.142-143.
[1] COUTINHO, Thiago de Miranda. Artigo: “A censura democrática imposta pelas Fake News; os riscos e ameaças ao Estado Democrático de Direito em pleno 2022”. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/358669/a-censura-democratica-imposta-pelas-fake-news>
[2] COUTINHO, Thiago de Miranda. Artigo: “A censura democrática imposta pelas Fake News; os riscos e ameaças ao Estado Democrático de Direito em pleno 2022”. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/358669/a-censura-democratica-imposta-pelas-fake-news>
[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3. ed. rev. e ampl. Curitiba: ICPC, Lumen Juris: 2008, p.142-143.
[4] MEIRELES, Cecília. Poema “Romance das Palavras Aéreas”. Rio de Janeiro. Nova Aguilar. 1985.
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