A elite voadora e o paradoxo de Wacquant – Entre o cavalo de tróia da indústria carcerária e as cifras omitidas: Ainda sobre fragmentos libertadores de Barrabás e aprisionadores de adolescentes – Por Maurilio Casas Maia

11/06/2015

Não gasto argumentos com quem decidiu não querer entender”.

Pe. Fábio de Melo

Hoje em dia, as pessoas sabem o preço de tudo e o valor de nada”.

Oscar Wilde

O deputado Laerte Bessa – com longa experiência no Estado Policial brasileiro –, é hoje o relator da comissão que analisa a PEC n. 171/1993 (sobre a redução da idade de imputabilidade penal) e apresentou no dia 9/6/2015 seu parecer sobre o tema com um recheio muito comum nas entrelinhas: expansão do punitivismo, ideais de limpeza social e um forte apelo emocional em relação aos vitimados.

Porém – antes mesmo do sobredito relatório e menos de uma semana após o texto “Entre a libertação de Barrabás e a redução da idade para maioridade penal: Por que temer os cidadãos de bem?” (veja aqui) –, divulgou-se nova estratégia argumentativa por aqueles que se dizem amantes dos números: há uma grande cifra negra dos atos infracionais praticados pelos adolescentes. É preciso dialogar sobre o argumento, como requer a boa e velha Democracia – com “d” maiúsculo mesmo.

Pois bem, se o texto antecedente possuía argumentos direcionados aos “cidadãos de bem” e seus “formadores de opinião” – os ansiosos pela libertação de “Barrabás”[2] e pela respectiva crucificação dos adolescentes (não, não se está decretando que adolescentes infratores sejam “santos”, todavia pagar o preço desejado pelos amantes do “espetáculo da punição” pode representar um “tiro no pé da sociedade”, conforme se busca demonstrar) –, o articulado presente é voltado somente a quem possui mente aberta ao debate democrático e sem preconceito argumentativo, até porque não é recomendável gastar argumentos “com quem decidiu não querer entender” (Pe. Fábio de Melo).

Retornado ao foco, recentemente foi divulgado texto apresentando novo argumento libertador de Barrabás. Segue resumido: “a criminalidade na adolescência é muito maior do que se imagina. Há uma vasta cifra negra juvenil e não é insignificante. Remetam-se os adolescentes para os presídios!” O cinismo argumentativo beira o sadismo punitivista.

A vontade de não oferecer medidas socioeducativas é tão grande que omitem outra cifra negra: a cifra negra da criminalidade “adulta”. Sim. O argumento da cifra negra é bilateral – serve tanto aos atos infracionais, quanto aos crimes dos imputáveis penalmente. Não se sabe se a omissão é proposital ou consequência de uma “cegueira emotiva” causada pelo “analfabetismo emocional-jurídico” (veja aqui). É preciso estudar também as emoções dos atores legislativos, assim também do povo vitimado e de seus eventuais agressores – evitando-se que a cegueira emotiva prejudique o tal “projeto de bem-estar comum”.

Ah, deve-se falar da busca de instauração de uma generalizada “cegueira emotiva” e de reforço do “analfabetismo emocional” quando se trata de debater as propostas da EC nº. 171/1993. Consta na tramitação da multicitada PEC, a tentativa de conduzir famílias de vitimados pela violência juvenil à oitiva pública, em um claro apelo à expansão penal midiática e emotiva.

Por favor, amantes dos números e da racionalidade, busquem por pesquisas sobre a reincidência entre os dois grupos de egressos[3]: (1) egressos do sistema prisional; (2) egressos do sistema socioeducativo. O resultado poderá elucidar qual a medida mais salutar para a saúde social dos adolescentes e juventude do Brasil. De modo elucidativo, esclarece-se que é altíssimo o índice de reincidência entre os egressos do famigerado sistema prisional brasileiro e bem menor em relação aos egressos do sistema socioeducativo.

A partir do relatório exarado pelo relator da comissão, percebe-se nítido o intento de gerar uma simbiose prisional entre o gueto segregador e a prisão que aparta (WACQUANT, 2011, p. 106). É a “doutrina da guetificação jurídica[4] almejando separar os “indesejados” dos espaços em que causam incômodo social ou jurídico. Há trechos no relatório denunciadores desse intento – ali, quando se trata do direito penal, afirma-se: “representa uma ferramenta do Estado para conter os indivíduos incapazes de conviver em sociedade”. Assim, fica claro: o direito penal e seu tentáculo aprisionador servem para conter, para guetificar, os indesejados. O histórico militar-ditatorial traz clima favorável à recepção de ideias de “defesa social” com realização “autoritária e seletiva” para punição dos indesejáveis (SANTOS, 2015, p. 106) – sobre o tema, leciona Loïc Wacquant (2011, p. 12) que a cultura política brasileira permanece marcada pelo autoritarismo.

O Brasil não possui prisões – possui campos de concentração. Essa é outra visão do professor de Sociologia Loïc Wacquant (Universidade da Califórnia) que deve ser avaliada atentamente, com seu complemento: “O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do terceiro mundo” (2011, p. 13).

A prisão de direito não é mesma prisão de fato” (VALOIS, 2015, p. 52). Assim, a PEC 171/1993 – por trás da “bondade dos bons” –, na verdade pretende criar guetos carcerários para adolescentes, excluindo o segmento indesejável pela sociedade. O discurso oficial é um, o extraoficial outro (SANTOS, 2015, p. 106) – todos conhecem este último segmento, tudo em nome da defesa social, até mesmo a violação ou relativização da Constituição e dos direitos humanos para saciar a canha punitivista.

Aí novo esclarecimento: “Um gueto não é um viveiro de sentimentos comunitários. É, ao contrário, um laboratório de desintegração social, de atomização e anomia” (BAUMAN, 2003, p. 111). No fundo, o sociólogo bem denuncia o futuro sombrio que pode pairar sobre a juventude pobre brasileira...

A essa altura o leitor pode estar indagando: onde estaria a elite voadora referenciada no título? Bem, Zygmunt Bauman (2003, p. 106) relembra Richard Sennet afirmando que “as demandas por lei e ordem atingem o máximo quando as comunidades estão mais isoladas das outras pessoas da cidade”. É nesse ponto que surgem as elites voadoras – referenciadas por Bauman (2003, p. 102) –, essa que é “capaz de olhar todos os lugares com distanciamento e sem envolvimento, como já se considerou privilégio dos pássaros”. Com efeito, as elites voadoras vivem em suas próprias comunidades repletas de segurança e distanciamento desses tais jovens que serão alvo da sede de apartheid infanto-juvenil.

Não se sabe se por “cinismo jurídico”, inocência ou ignorância, o relatório faz um voo (sim, o “olhar por cima” das “elites voadoras”) sobre as comunidades carentes e conclui que a vontade de aprisionar os adolescentes seria notadamente de “parcela da população menos favorecida economicamente e que sofre com mais intensidade a insegurança que predomina em nossa comunidade”. Curioso. É exatamente essa mesma parcela populacional que mais sofrerá a perda de seus jovens para os guetos prisionais se a PEC 171/1993 for aprovada pelo processo de “criminalização da pobreza” e “limpeza social”.

A sobredita luta de certas castas sociais por guetificação de determinados seguimentos sociais “é paralela e complementar à criminalização da pobreza” (BAUMAN, 2003, p. 109).

A 171 – ou melhor, a PEC n. 171, esse cavalo de troia –, é, juventude pobre brasileira, um gueto para você chamar de seu – é isso o que desejam para você. Essas prisões são “guetos com muro” (BAUMAN, 2003, p. 109) e de imenso potencial criminógeno e degenerador da humanidade (FERRAJOLI, 2014, p. 253). A prisão é a substituta do gueto (WACQUANT, 2003, p. 107).

Soa contraditório: se, por um lado, fala-se em reforço do estado-encarcerador, por outro, é ressaltada a insuficiência das políticas sociais. Observe-se o discurso do relator da PEC n. 171/1993 ao se referir às populações pobres como vítima: “Vítimas mais vulneráveis do total descaso do Estado brasileiro e da falta de políticas públicas nas áreas sociais, a população que mora nos bairros mais periféricos das grandes cidades brasileiras não aguentam mais sofrer com o problema da delinquência juvenil, e para eles não funciona o discurso ideológico de que o encarceramento não é a solução para esses menores, os quais devem ser, antes, educados”.

Dois pontos a ressaltar: (1) falta de política social; (2) o não funcionamento do discurso educativo (e não aprisionador) em relação à maior parte do eleitorado. O segundo ponto revela a preocupação eleitoral sobrepujando a técnica racional que deveria ser inerente à elite eleita. O primeiro argumento demonstra a raiz do problema – falta de atenção em política social hábil. Ainda assim, quer-se investir em Estado-Policial e Encarcerador, desviando verbas da causa da origem social da problemática...

Eis o paradoxo de Wacquant totalmente aplicável ao Brasil: “pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa generalizada insegurança objetiva e subjetiva em todos os países” (2011, p. 9).

Ora, “[d]iagnosticar a doença não é o mesmo que curá-la” (BAUMAN, 2001, p. 245). Maiores investimentos em Estado Policial e Encarcerador gerará o quê? Retirada de verba para anular a origem do mal que, segundo o próprio relator da PEC n. 171/1993, seria a falta de política pública na área social ... Não é contraditório?

Nesse contexto, uma notícia ainda ressoa: “Suécia fecha 4 prisões e prova: a questão é social” (veja aqui). Seria o abismo espaço-geográfico entre Brasil e Suécia tão grande a ponto de anular a pretensa resposta adequada ao problema social indicado pelo país nórdico-europeu?

Em frente, procedendo-se à análise do andamento da PEC n. 171/1993, percebe-se o anseio por uma “erosão da especificidade do tratamento da delinquência juvenil” (WACQUANT, 2001, p. 144), com lastro no dogma da eficiência do binômio formado por “crime e castigo”. Em verdade, incide na PEC o denominado “cavalo de troia da ‘americanização’ do penal” (WACQUANT, 2011, p. 144). Bem, nesse contexto, o mercado penitenciário brasileiro deve muito se animar com as perspectivas de aumento da população carcerária. “A prisão virou mercadoria” (ROSA; AMARAL, 2014, p. 108).

A sobredita tentativa de “americanização” não se trata de mera elucubração: O deputado delegado Waldir (PSDB-GO) realizou requerimento em 1/6/2015 – no âmbito da Comissão Especial –, postulando “a constituição de Comissão Externa com vistas a realizar visita 'in locu' nos países da Inglaterra e Estados Unidos da América no sentido de estudar os modelos de responsabilização, combate, repressão, punição e medidas socioeducativas contra os menores de 18 anos que praticam crimes e são considerados imputáveis". É importante ressaltar que mesmo a Inglaterra sofreu os efeitos da americanização e da nefasta política de tolerância zero (WACQUANT, 2011, p. 47).

No dia 10/6/2015, na sala da Comissão de análise da PEC n. 171/1993, um voto em separado brilha como luz no fim do túnel. De autoria do deputado Sérgio Vidigal (veja aqui), o retrocitado documento conclui: “(...) a discussão da redução da maioridade penal deve passar antes pela resolução dessas mazelas, temas recorrentes na segurança pública e que fazem do Brasil um dos países com os maiores índices de criminalidade do mundo. Por isso, o Congresso Nacional, por sua vez, deve mostrar a altivez necessária para debater os temas relacionados à segurança pública, por meio de dados confiáveis e argumentos sólidos e racionais, sob pena de se cometerem injustiças que trarão um custo social demasiadamente elevado para a sociedade. Diante do             exposto, esse é o voto em separado que apresentamos aos ilustres pares, pela rejeição da Proposta de Emenda à Constituição nº 171, de 1993.”

Haveria muito a ser dito e ao mesmo tempo também não há mais o que falar. Isso porque, reitere-se, o presente artigo é dirigido para quem o deseja ler com mente aberta ao debate Democrático e não aos que já decidiram, definitivamente, por libertar Barrabás – “[n]ão gasto argumentos com quem decidiu não querer entender” (Pe. Fábio de Melo).

VOTO EM SEPARADO - Ségio Vidigal - PEC 171-1993


Notas e Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

______. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2014.

MAIA, Maurilio Casas. Entre a libertação de Barrabás e a redução da idade para maioridade penal: Por que temer os cidadãos de bem?”. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/entre-a-libertacao-de-barrabas-e-a-reducao-da-idade-para-maioridade-penal-por-que-temer-os-cidadaos-de-bem-por-maurilio-casas-maia/>.  Acesso em: 10 Jun. 2015.

______.        Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-risco-da-guetificacao-no-processo-coletivo-breve-reflexao-sobre-a-legitimidade-defensorial-coletiva-o-ncpc-e-a-adi-n-3943-por-maurilio-casas-maia/>. Acesso em: 10 Jun. 2015.

______. Por que tenho medo dos cidadãos de bem? a tentativa de expansão punitiva, a redução da imputabilidade penal e a libertação de barrabás. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 438, p. 62-63, 15 Abr. 2015.

ROSA, Alexandre Morais da. Injusta provocação ao jurista sob violenta emoção. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/limite-penal-injusta-provocacao-jurista-violenta-emocao>. Acesso em: 10 Jun. 2015.

______. Precisamos conversar sobre gastar, no mínimo, 20 mil reais com cada preso. Vale a pena? Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/precisamos-conversar-sobre-gastar-no-minimo-20-mil-reais-com-cada-preso-vale-a-pena-por-alexandre-morais-da-rosa/>. Acesso em: 10 Jun. 2015.

SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. Defesa Social: uma visão crítica. São Paulo: Estúdio editores, 2015. [Coleção para entender direito. Organizadores: Marcelo Semer e Márcio Sotelo Felippe].

VALOIS, Luiz Carlos. Conflito entre ressocialização e o princípio da legalidade na execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

______. Execução Penal e ressocialização. São Paulo: Estúdio Editores, 2015. [Coleção para entender direito. Organizadores: Marcelo Semer e Márcio Sotelo Felippe].

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2ª ed. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

______. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

[1] O presente texto é também uma singela homenagem e incentivo aos trabalhos do “Grupo de Estudo em Teoria da Justiça e Constituição” (GETEJ), coletividade formada por estudantes idealizadores de um futuro mais justo para o Brasil e fundado por um professor digno dessa mesma vontade, Daniel Gerhard. Em seu primeiro sábado matinal de Seminário, o GETEJ trouxe o direito ao contexto tridimensional do fato, valor e norma entre Bauman e Wacquant – foi inspirador.

[2] Um esclarecimento aos críticos: o apelo às figuras bíblico-cristãs – de Barrabás, da cruz ou do omissivo lavar as mãos de Pilatos –, não é despropositado. São símbolos enraizados na cultura cristã (ainda majoritária no Brasil) e que servem à analogia. Se os “cidadãos de bem” e os “guardiões da moral” não ouvem a “velha boa nova”, dificilmente irão ouvir o articulista por mais racionais ou apaixonantes argumentos que se possam trazer.

[3] Já se afirmou no texto anterior: “O índice de reincidência é muito menor entre os adolescentes egressos do sistema socioeducativo em relação aos egressos do sistema penitenciário dos adultos.  Essa conclusão é retirada de pesquisa apresentada na revista “The Economist” (abr. 2015), indicando que adolescentes punidos como adultos tem quase 35% a mais de chance de reincidir. Lógico que mais dados comparativos devem surgir na realidade brasileira, mas é possível localizar índices de reincidência em torno de 70% entre os egressos do superlotado sistema carcerário e, por outro lado, de 13 % entre os adolescentes egressos do sistema socioeducativo – vide o caso da Fundação de Atendimento Socioeducativo (CASE), em Pernambuco. Aliás, a revista Veja (27/5/2015) realizou pesquisa buscando comprovar que “os bandidos no Brasil saem da cadeia muito mais perigosos do que quando entraram” (p. 62-69). Ou seja, sem qualquer ironia ou jogo de palavras, a PEC n. 171/1993 é um potencial ‘estelionato social’, representando ‘um tiro no pé’ da sociedade que somente verá o agravamento do problema da reincidência criminal, caso aprovada seja”.

[4] Nessa linha de raciocínio foi debatida a tese extirpadora ou limitadora da legitimidade defensorial coletiva (veja aqui: http://emporiododireito.com.br/o-risco-da-guetificacao-no-processo-coletivo-breve-reflexao-sobre-a-legitimidade-defensorial-coletiva-o-ncpc-e-a-adi-n-3943-por-maurilio-casas-maia/). 


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