A EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA PELA MEDIAÇÃO FAMILIAR: A AÇÃO COMUNICATIVA HABERMASIANA EM DETRIMENTO DA LÓGICA ADVERSARIAL  

15/12/2020

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

A dinamicidade das relações familiares na modernidade líquida[1] tem impelido o surgimento de novos dilemas para o Direito de Família. Em face das novas configurações,  novos conflitos são diuturnamente levados à apreciação do Poder Judiciário. Com intuito de garantir a prestação jurisdicional mais adequada ao caso concreto, ressignificando o acesso à Justiça, tem-se a mediação familiar.

 Na mediação, a solução acordada provém de decisão das próprias partes e não de um terceiro, como nos procedimentos contenciosos. Para tal, faz-se necessário construir uma perspectiva que valorize a ação comunicativa na construção dos consensos. Historicamente, o processo de acesso à Justiça era tido como um movimento de viabilidade e democratização do acesso de litigantes de baixa renda à prestação jurisdicional[2]. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 elevou o acesso à Justiça a direito fundamental consubstanciado no artigo 5°, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Entretanto, não basta ter acesso ao Poder Judiciário, por meio, por exemplo de advogados dativos ou justiça gratuita, almeja-se um acesso à Justiça que consista em garantir o acesso à ordem jurídica justa, a prestação jurisdicional adequada ao caso concreto dentro de um prazo razoável. Neste sentido, tem-se dois modelos paradigmáticos de acesso à Justiça: o modelo adversarial vinculado à via contenciosa, e o modelo comunicativo, alicerçado, sobretudo, na mediação e na conciliação enquanto métodos alternativos de resolução de conflitos.

A via contenciosa é aquela em que as partes levam um caso à apreciação jurisdicional, almejando a resolução da lide a partir da contestação, da disputa e do conflito de interesses. O problema entorno do procedimento jurisdicional consiste na sobrecarga do Poder Judiciário e a consequente morosidade. Dados mostram que a taxa de congestionamento chega a 63% (sessenta e três por cento) nas varas exclusivas da área de direito de família, segundo informação do relatório Justiça em Números de 2019, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça anualmente[3]. Além do fato de que a decisão judicial, muitas vezes, põe fim ao procedimento, mas não ao conflito. Haja vista que o agente julgador não é capaz de perscrutar as nuances da situação fática, tanto quanto são as partes para fixarem os termos que colocam fim a contenda.

A fim de contribuir para o processo de desjudicialização das relações sociais, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de utilização de métodos alternativos ou métodos adequados de resolução de conflitos. Dentre eles, destacam-se a mediação e a conciliação como mecanismos que se enquadram na perspectiva da ação comunicativa, além da arbitragem e da negociação.

A medição é um método autocompositivo que possui, entre outras peculiaridades, a exigência da presença de “um terceiro, imparcial e neutro, sem o poder de decisão, que assiste às partes, para que a comunicação seja estabelecida e os interesses preservados, visando ao estabelecimento de um acordo”[4]. Enquanto que na conciliação, um terceiro imparcial realiza sugestões e participa proativamente do procedimento com vistas a resolução da contenda.

No âmbito familiarista, a mediação é um procedimento em que um terceiro auxiliará as partes a reconstruírem os canais de comunicação com vistas a estabelecerem os termos mais adequados para a resolução do conflito atinente à seara familiar. Por tratar de matérias específicas que versam sobre memórias, sentimentos e psique dos indivíduos, a mediação familiar parece ser o caminho mais adequado. Entretanto, havendo situação urgente e a necessidade de providências judiciais, a fim de “evitar o perecimento do direito, estas deverão ocorrer de pronto, como, por exemplo, uma liminar para fixação de alimentos”[5].

Neste sentido, a mediação familiar se consagra como o modelo comunicativo de resolução de conflitos em detrimento do paradigma adversarial da via contenciosa. Nota-se que a “implantação das práticas discursivas e narrativas da mediação convergem diretamente ao pensamento de Habermas”[6].

Efetivando o procedimento proposto pela teoria habermasiana, seria possível exigir o cumprimento de determinada norma na medida em que os indivíduos, de maneira autônoma e livre de coerções estabeleceram, por meio do discurso e do melhor argumento, a vontade coletiva que os impele a cumprir tal determinação, na medida em que estes reconhecem a manifestação legítima de sua vontade neste modelo democrático discursivo[7]. Nisto consiste a fonte da legitimidade do direito para Jürgen Habermas.

Os requisitos para a concretização do discurso na teoria do agir comunicativo consistem na possibilidade de todos poderem participar dos discursos; “todos podem problematizar qualquer asserção; todos podem introduzir qualquer asserção no discurso; todos podem manifestar suas atitudes, desejos e necessidades e todos podem exercer os direitos acima”[8].

Em que pese contribuir significativamente para a desjudicialização das relações familiares, não se pode admitir que a mediação familiar seja vista tão somente como um método para dirimir o volumoso número de processos nas varas de família em uma perspectiva de ação estratégica na lógica instrumental, mas, ao contrário, busca-se um “resgate das instâncias de deliberação intersubjetivas do mundo da vida e da promoção de uma cidadania eticamente balizada em procedimentos democráticos”[9], que parte das relações particulares na autonomia privada e alcança a autonomia pública na consolidação do acesso à Justiça e no fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Sendo assim, a partir da teoria do agir comunicativo proposta por Habermas, tem-se um pressuposto teórico que possibilita a ruptura paradigmática do modelo adversarial de resolução de conflitos vinculado a via contenciosa na valorização da ação comunicativa em que as partes deliberam sobre o conflito na construção da cultura de paz que fortalece os laços afetivos e solidários no âmbito do direito de família.

A teoria do agir comunicativo habermasiana permite a compreensão da função da comunicação na construção de diálogos permanentes que atribuem legitimidade para o acordo estabelecido entre os litigantes. Nesta perspectiva, a mediação familiar não pode ser concebida somente como uma função estratégica de redução de processos judiciais, mas uma forma legítima, adequada e assertiva de construir canais de comunicação e de resgate do protagonismo dos indivíduos na condução da resolução dos conflitos, fortalecendo e consolidando o acesso à justiça e a funcionalização do Estado Democrático de Direito.

 

Notas e Referências

[1]              Conceito cunhado por Zygmunt Bauman (2001) para designar a atual conjuntura histórica-social da civilização, tem possibilitado o desenvolvimento de novos modelos de relacionamentos afetivos, vinculados à superficialidade e instantaneidade, características da contemporaneidade, que impactam em modificações sociais com consequências na interpretação do direito positivo. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

[2]              MASCARENHAS, Fabiana Alves. Mediação de conflitos: dilemas e desafios à descentralização das estruturas jurisdicionais no contexto do movimento de acesso à justiça no Brasil. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 23, n. 47, nov.19/fev.20, p. 110-134, 2020.

[3]                                                                                                                                                                                           CNJ. Justiça em números 2019/Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2019, p. 166. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 10 ago. 2020.

[4]              DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: execução. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 50.

[5]              MARTINS, Márcia Cristina Mileski; CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Da efetividade do acesso à justiça no direito de família após o código de processo civil de 2015. In: CACHAPUZ, Rozane da Rosa; EUGENIO, Alexia Domene; GARBELINI, Heloisa Honesko Medeiros. Do acesso à justiça no direito das famílias e sucessões. Londrina: Thoth, 2020, p. 198.

[6]              MASCARENHAS, Fabiana Alves. Mediação de conflitos: dilemas e desafios à descentralização das estruturas jurisdicionais no contexto do movimento de acesso à justiça no Brasil. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 23, n. 47, nov.19/fev.20, p. 110-134, 2020, p. 126.

[7]              ALFAYA, Natalia Maria Ventura da Silva. O constitucionalismo latino-americano na Bolívia: Uma análise crítica utilizando o ferramental habermasiano. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.

[8]              ALEXY, R. A Theory of Practical Discourse. In: BENHABIB, S. & DALLMAYR, F. The communicative ethics controversy. Cambridge/Massachusetts/London: MIT, 1990. p. 166-67 apud DUTRA, Delamar Volpato. A teoria discursiva do direito. In Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. UFSC: Florianópolis, 2005, p. 226.

[9]              MASCARENHAS, Fabiana Alves. Mediação de conflitos: dilemas e desafios à descentralização das estruturas jurisdicionais no contexto do movimento de acesso à justiça no Brasil. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 23, n. 47, nov.19/fev.20, p. 110-134, 2020, p. 127.

 

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