Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Criança-luz
Tua luz
pacifica minha alma
Encanta meu ser
faz renascer a criança
que andava adormecida.
Desencantos
Partidas
Ausências
Maculam a criança interior
Aviltam o seu ser.
Tempestades
Conflitos
Assustam esta criança
Ela se torna arredia,
esconde-se,
fica isolada
Teme as sombras.
Chegam os guardiões da ternura
Seus olhos afugentam todo mal.
A criança se tranquiliza
Adormece segura
Nos braços ternos
Braços de Morfeu[1].
(Josiane Rose Petry Veronese)
Na nossa concepção, uma das grandes inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, foi a de cortar com uma prática secular de que todo erro é suscetível de punição, de modo exclusivo, sem nenhuma outra alternativa. A Lei n. 8.069/1990 rompe com este paradigma e, de forma insurgente, estabelece que, presente o erro, este é possível de ser trabalhado socioeducativamente.
Enquanto seres em processo de formação – estamos diante de crianças e adolescentes – reconhece-se, pois, a sua maior vulnerabilidade. Assim, a transformadora Lei n. 8069/1990 propôs a modificação de padrões fechados, situando-se como uma norma que se opõe frontalmente à ideia de fazer sofrer, purgar, de “pagar” pelo “mal” cometido. Atentemos ao fato de que criança, ou seja, a pessoa com menos de 12 anos de idade, não será submetida a nenhum processo, antes, toda e qualquer intervenção, será na órbita do Conselho Tutelar. Somente o adolescente, ou seja, a pessoa com idade entre 12 e 18 anos é que poderá ser submetido às medidas socioeducativas, bem como, às medidas específicas de proteção[2].
O Estatuto ao assentar-se nas medidas previstas no artigo 112 – frente ao ato infracional – firma a sua crença no ser humano, na sua capacidade de descobrir valores autênticos a partir do contato direto com práticas educativas que evidenciem tais valores, e desse modo, está comprometido e conectado com a capacidade/possibilidade real deste ser em se transformar, resgatar de modo concreto a sua cidadania.
Assim, todas as medidas presentes na Lei têm este caráter: educar para um novo agir.
Poderíamos situar o Estatuto, dentro de uma visão macro, como um grande projeto social educativo.
Em alguns momentos esta característica passa a ter algumas especificidades, por exemplo no artigo 94, ao enfocar as obrigações das entidades de atendimento de adolescentes autores de ato infracional, determina que elas tenham, entre outras obrigações, as seguintes:
Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:
I - observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes;
II - não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão de internação;
III - oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos;
IV - preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente;
V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares;
VI - comunicar à autoridade judiciária, periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento dos vínculos familiares;
VII - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal;
VIII - oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos;
IX - oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos;
X - propiciar escolarização e profissionalização;
XI - propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XII - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;
XIII - proceder a estudo social e pessoal de cada caso;
XIV - reavaliar periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade competente;
XV - informar, periodicamente, o adolescente internado sobre sua situação processual;
XVI - comunicar às autoridades competentes todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infecto-contagiosas;
XVII - fornecer comprovante de depósito dos pertences dos adolescentes;
XVIII - manter programas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos;
XIX - providenciar os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem;
XX - manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do adolescente, seus pais ou responsável, parentes, endereços, sexo, idade, acompanhamento da sua formação, relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento.
§ 1 o Aplicam-se, no que couber, as obrigações constantes deste artigo às entidades que mantêm programas de acolhimento institucional e familiar. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 2º No cumprimento das obrigações a que alude este artigo as entidades utilizarão preferencialmente os recursos da comunidade.
Constata-se, nesses dispositivos, toda uma efetiva preocupação com o adolescente, na garantia de seus direitos, que vão da preservação da sua identidade à imprescindibilidade da sua formação escolar e profissional, com a manutenção dos vínculos familiares e comunitário. Tudo isso, portanto, na compreensão deste ser em sua totalidade, com vistas à sua edificação enquanto sujeito.
Se analisarmos, agora, de modo pontual, a medida socioeducativa da liberdade assistida, a qual se afigura como a que tem por finalidade acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, descobriremos que no artigo 119 a Lei incumbe ao orientador, entre suas tarefas, a de “supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula”.
Na medida do regime de semiliberdade, determina o artigo 120, § 1º, do Estatuto, que é “obrigatória a escolarização e a profissionalização, devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade”.
No que concerne à medida de internação, em função de suas singularidades, entendemos que seja necessária uma análise mais detalhada.
Dentre as medidas socioeducativas presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, encontramos a internação, que consiste em medida privativa de liberdade, a qual deveria ser aplicada tendo por princípios a brevidade e a excepcionalidade, e fez questão a Lei, neste momento, de novamente ratificar o respeito à adolescência, enquanto período do processo de desenvolvimento do ser humano.
A Constituição Federal de 1988, sempre necessário destacar, avoca o princípio da prioridade absoluta, quando determina em seu artigo 227 que à criança e ao adolescente devam ser assegurados uma série de direitos. Vale destacar que a lei não prescreve uma exceção: os autores de ato infracional devem ser excluídos dessa proteção, basta conferirmos que o artigo 228, também da Constituição, recepciona tal prioridade, quando determina a inimputabilidade dos menores de 18 anos de idade. Vejamos o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
§ 7 o A determinação judicial mencionada no § 1 o poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade judiciária. (Incluído pela Lei nº 12.594, de 2012)
Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
§ 1 o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo ser decretada judicialmente após o devido processo legal. (Redação dada pela Lei nº 12.594, de 2012)
§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.
Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.
Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas.
Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:
I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público;
II - peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III - avistar-se reservadamente com seu defensor;
IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada;
V - ser tratado com respeito e dignidade;
VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável;
VII - receber visitas, ao menos, semanalmente;
VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos;
IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal;
X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade;
XI - receber escolarização e profissionalização;
XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer:
XIII - ter acesso aos meios de comunicação social;
XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje;
XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade;
XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade.
§ 1º Em nenhum caso haverá incomunicabilidade.
§ 2º A autoridade judiciária poderá suspender temporariamente a visita, inclusive de pais ou responsável, se existirem motivos sérios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente.
Art. 125. É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança.
No entanto, não podemos desconsiderar a fria e muitas vezes horrenda realidade em que se encontram nossos adolescentes. Adolescentes, em sua grande maioria, marcados pela sua origem na miséria, inseridos num sistema socioeconômico no qual lhes é subtraída a dignidade de seres humanos. E, uma vez autores de atos infracionais, são lançados em instituições que pouco diferem dos presídios para os maiores de idade; em alguns casos, as violações são até maiores dos que as praticadas contra os adultos. Aí questionamos: Como resgatar este ser humano? De que modo será possível, uma vez submetido a condições animalizantes, concorrer para a formação de um ser autônomo, sujeito social?
As entidades de atendimento que desenvolvem programas de semiliberdade e de internação, longe estão de um sistema educacional, e de igual forma, sua infraestrutura. O “modelo” educacional e profissionalizante implantados, quando implantados, são marcados por um descompromisso com a realidade e aptidões do adolescente, além do que, no mais das vezes, ocorre uma verdadeira distância entre a administração e os adolescentes, o que vem a denotar que tais instituições não estão atingindo o âmago da questão.
Antônio Carlos Gomes da Costa ao analisar a importância da presença do educador nesse processo, chama a atenção para algumas questões fundamentais, à procura de um modelo interativo – ciclo de intervenção e vida –, pautado na reciprocidade, no respeito, na liberdade. “Considerar os adolescentes em dificuldade como universos fechados e justapostos, negligenciando os laços que os organizam como pessoas seria como conceber o meio social na base de simples relações de coexistência que bastaria moderar, ou seja, fazer da vida social um agregado de solidões”[3].
Enfim, sustentamos que somente um espaço assemelhado a uma escola, uma escola dinâmica, criativa, como núcleo formador do ser humano, respeitadas e valorizadas as características de cada um, seria um espaço no qual se concretizaria a tolerância, a dignidade, a pluralidade, elementos imprescindíveis à vida em sociedade. Pode até parecer utopia, mas é daquelas utopias realizáveis, dependendo tão somente de um investimento, de uma real política de Estado.
Notas e referências
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Pedagogia da presença: da solidão ao encontro. Belo Horizone: Modus Faciendi, 1997.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Jurís, 2021.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito Penal Juvenil e Responsabilização Estatutária. Rio de Janeiro: Lumen Jurís, 2015.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Tocata de uma alma: poemas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[1] VERONESE, Josiane Rose Petry. Tocata de uma alma: poemas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p.67.
[2] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito Penal Juvenil e Responsabilização Estatutária. Rio de Janeiro: Lumen Jurís, 2015.
[3] COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Pedagogia da presença: da solidão ao encontro. Belo Horizone: Modus Faciendi, 1997, p. 56.
Imagem Ilustrativa do Post: Sala de Aula // Foto de: Samory Pereira Santos // Sem alterações
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