Por Jorge Coutinho Paschoal – 02/06/2016
É de conhecimento geral que direito fundamental, pela própria terminologia do termo, é aquele que tanto vale para um indivíduo quanto para outro (ou seja, para mim e para você, caro leitor), tendo em vista a mesma situação jurídica[1]. Embora o exercício do direito acabe sendo particular, no caso concreto, a sua justificação, em abstrato, pauta-se pelo interesse geral de todo o “corpo social”[2], estando à disposição de todos os indivíduos.
A esse respeito, Antonio Scarance Fernandes ensina, ao discorrer sobre o direito de defesa, que a visão constitucional dos direitos fundamentais não implica analisá-lo apenas sob uma ótica mais individual, mas também “como garantia fundamental da própria sociedade”[3]. O exposto serve para o contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação, publicidade e qualquer outro direito dessa natureza, que, apesar de constituírem direitos das partes, devem ser interpretados como predicativos de um processo penal justo, em prol do correto exercício da jurisdição[4].
Trata-se da moderna concepção dos direitos fundamentais, que procura ressaltar os fatores de ordem pública, a justificar a proteção dos direitos e as garantias de primeira geração.
Não se pode olvidar, contudo, que a teoria dos direitos fundamentais (especialmente em Robert Alexy), em prol da justificação social e pública de todos os direitos (mormente os de 1.ª geração), vem nublando a tensão existente entre o direito à liberdade do indivíduo, de um lado, e o direito “social” (por exemplo, mais ligado à segurança pública), por outro, ao pregar uma imaginária e completa harmonização entre tais antagonismos. Ocorre que essa conciliação raramente se dá na prática[5], o que finda, por enfraquecer, a nosso ver, ainda mais, os direitos fundamentais de liberdade do indivíduo (1ª geração), já que se confere uma demasiada primazia apenas à sua função social, fortalecendo, nesse sentido, as ingerências estatais na esfera desses direitos[6].
Defender uma visão mais individualista dos direitos fundamentais não implica menosprezar a importância desses direitos, muito menos negar a sua justificação social, já que, de fato, eles são postos em prol do interesse geral maior, bem como da realização da justiça.
Ao abraçar um ponto de vista liberal, quer-se alertar para os perigos da fundamentação capciosa quanto à decantada concepção social de todo e qualquer direito. Ora, sempre que se quis dar primazia para o social em detrimento do individual - do indivíduo “de carne e osso”, como bem diria Luigi Ferrajoli[7] - o que se viu, na prática, é que os direitos das pessoas foram engolidos pelo interesse intangível desse ente abstrato “maior”, ora identificado pela locução Estado, ora pela designação por “sociedade”: as ações individuais passaram a ser analisadas e valoradas com base apenas no interesse social, o que é perigoso, tendo fundado, não raras vezes, diversos tipos de totalitarismos, cabendo recordar do “Estado Social”[8] de Hitler, Mussolini ou de Stálin.
Um argumento forte em prol da justificação pública e social de todos os direitos é que se acabaria com a falsa dicotomia existente entre interesse público/privado em alguns dos direitos fundamentais. Acabar-se-ia com a suposta máxima de que o interesse público (pressuposto por alguns apenas em apenas determinados direitos fundamentais, geralmente a favor da ingerência do Estado) sempre prevaleceria sobre o interesse privado, da liberdade do cidadão. Afinal, ficando claro que públicos são todos os direitos fundamentais, não haveria como continuar a se sustentar a sobreposição de alguns direitos sobre outros (da ampla ingerência estatal sobre a liberdade), cabendo ponderar, entretanto, no caso concreto, qual direito se sobrepõe.
Cabe discorrer, contudo, que esta constatação, acerca da fundamentação pública e social de todos os direitos fundamentais, não é algo novo, nem nunca foi desconhecida entre nós.
João Mendes de Almeida Júnior, à sua época, final do século XIX, já ensinava que “o primeiro interêsse individual é a segurança da ordem social, porque o indivíduo não pode conservar-se e aperfeiçoar-se fora da sociedade; o primeiro interêsse da sociedade é a segurança da liberdade individual, porque a sociedade nada mais é do que a coexistência dos indivíduos. Êstes dois interesses igualmente sagrados, igualmente poderosos, exigem garantias formais: o interesse da sociedade, que quer a justa e pronta repressão dos delitos; e o interesse dos acusados, que é também um interêsse social e que exige a plenitude de defesa”[9].
Antes do predomínio da doutrina de Alexy, no direito e processo penal, sempre houve consenso de que a proteção deveria recair, como regra, em benefício do débil[10], isto é, do mais fraco[11], identificado, no processo penal, com o indivíduo submetido à persecução. Por essa vertente, sabia-se, com uma maior precisão, até onde o Leviatã poderia ir, havendo maiores pudores na fundamentação da ingerência estatal.
Hoje, com o primado da fundamentação pública e social de todos os direitos (sejam individuais ou coletivos), e da sua resolução sempre por meio do dogma (usado aqui no sentido pejorativo) da proporcionalidade, verifica-se que, em vez de restarem fortalecidos os direitos individuais de primeira geração, tem havido ainda uma maior primazia aos direitos tradicionalmente lidos como públicos ou coletivos: o direito à segurança pública, o “direito” à criminalização de condutas, às práticas e investigações criminais cada vez mais invasivas.
Como fala Gustavo Henrique R. I. Badaró, a proporcionalidade se tornou “a chave mágica capaz de abrir as portas de todas as garantias constitucionais do acusado, relativizando-as. Hoje, chega a ser um desgastado chavão dizer que ‘não existem garantias processuais absolutas’”[12].
Mais e mais, a resolução de qualquer caso tem dependido (sempre) de condições fáticas e (para nossa surpresa, até mesmo jurídicas!), sempre solucionadas pela proporcionalidade.
É a consagração do que se poderia bem chamar da “nova” “doutrina do cada caso é um caso”[13].
Enfim, para verificação do direito aplicável, o fato é que absolutamente tudo tem dependido das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto, o que se mostra perigoso, pois, como ensina o Professor Eros Roberto Grau, asserções que valem a pena ser transcritas, e em destaque: “juízes, especialmente os chamados juízes constitucionais, lançam mão intensamente da técnica de ponderação entre princípios quando diante do que a doutrina qualifica como conflito entre direitos fundamentais. Como, contudo, inexiste no sistema jurídico qualquer regra ou princípio a orientá-los a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles, deve ser privilegiado, essa técnica é praticada à margem do sistema, subjetivamente, de modo discricionário, perigosamente. A opção por um ou outro é determinada subjetivamente, a partir das pré-compreensões de cada juiz, no quadro de determinadas ideologias. Ou adotam conscientemente certa posição jurídico-teórica, ou atuam à mercê dos que detêm o poder e do espírito do seu tempo, inconscientes dos efeitos de suas decisões, em uma espécie de ‘vôo cego’, na expressão de Rüthers. Em ambos os casos essas escolhas são perigosas. 11. O que há em tudo de mais grave é, no entanto, a incerteza jurídica aportada ao sistema pela ponderação entre princípios. É bem verdade que a certeza jurídica é sempre relativa, dado que a interpretação do direito é uma prudência, uma única interpretação correta sendo inviável, a norma sendo produzida pelo intérprete. Mas a vinculação do intérprete ao texto – o que excluiria a discricionariedade judicial – instala no sistema um horizonte de relativa certeza jurídica que nitidamente se esvai quando as opções do juiz entre princípios são praticadas à margem do sistema jurídico. Então, a previsibilidade e a calculabilidade dos comportamentos sociais tornam-se inviáveis e a racionalidade jurídica desaparece”[14].
Com a crítica, não se quer dizer que as peculiaridades do caso concreto não sejam relevantes, ao contrário. O que causa perplexidade é que, com essa fundamentação, tem-se legitimado um nível de insegurança tamanho a ponto de não haver mais meios seguros de prever como cada caso será tratado juridicamente, pois o julgador sempre pode vislumbrar alguma peculiaridade que mude os rumos da decisão esperada. Ora, há situações concretas, por certo, em que a proporcionalidade pode ser suscitada, mas nem sempre assim deve se dar, ocorrendo um abuso (ou melhor) arbítrio no uso da razoabilidade!
O cenário descrito é preocupante, chegando-se ao ponto de se cogitar que a própria dignidade humana poderia ser relativizada, dependendo das circunstâncias... (?)
O mais curioso é que os doutrinadores aplaudam o exposto, por meio de importações, em geral, acríticas do direito estrangeiro (no caso, de uma vertente do direito alemão, vendida como única e intocável entre nós, embora vista com muitas reservas em seu país de origem), abusando-se do recurso à proporcionalidade. Trata-se, com todas as vênias, de construções que, em realidade, nada trazem de novo (ou útil) ao nosso sistema, considerando as confusões que trazem consigo.
Muito embora, hoje, ninguém, em sã consciência, defenda um Estado totalitário, tem sido muito recorrente a menção à função social dos direitos, avaliada por meio da proporcionalidade, que, como dito, de forma indireta, ensejou diversos tipos de autoritarismos. Imaginar que, nos dias de hoje, não podemos retroceder, além de constituir arrogância, vai contra a experiência histórica.
Não se quer com isso defender que a vertente pública e social dos direitos e a sua resolução por meio da proporcionalidade devam ser banidas do direito (absolutamente!), mas só alertar que a sua utilização (mormente quando exagerada) deve ser realizada com alguma cautela.
A fundamentação social dos direitos, aliada à recepção da teoria dos princípios de Robert Alexy, tem levado a uma preocupante e maior legitimação do direito penal (para searas às quais não deveria intervir), e, por consequência, de ainda mais processo penal, cada dia mais espetacular; contudo, os problemas na resolução das mesmas velhas questões continuam iguais, ou quiçá, até mais complexos, pois, como pontua Jürgen Habermas, a tendência a uma supervalorização dos princípios leva-os a um grau tal de abstração, reduzindo a resolução do caso sempre à luz das circunstâncias concretas: o que, segundo o próprio Habermas, longe de fortalecer os direitos fundamentais, acarreta o seu enfraquecimento (sua liquefação), propiciando fundamentações discutíveis, não raro de cunho totalmente irracional[15].
Criou-se uma teoria com o fim (louvável) de combater o arbítrio; contudo, a sua aplicação, não raro, pode levar a uma situação ainda pior. No processo penal (a rigor, em todo o direito), a dicotomia entre interesse individual e público sempre esteve presente e estará. Hoje, a resolução dessa dualidade está mais complexa, pois antes, de certa forma, havia maiores pudores ao se admitirem ingerências em detrimento do cidadão, seja porque é a parte mais fraca, seja por seus direitos fundamentais, já que a intervenção estatal era sempre lida como uma ameaça.
Contudo, sob a recente ênfase conferida de que essas mesmas ingerências e intervenções tutelam, igualmente, direitos fundamentais, pela moderna teoria da proporcionalidade, fica, de fato, ainda mais difícil resolver os dilemas, já que tudo acaba sendo debatido no plano do bom senso (embora travestidos de argumentos jurídicos sobre a proporcionalidade/razoabilidade).
O problema é que o que é bom senso para mim, caro leitor, pode não ser para você, residindo aí o grande dilema quanto à abstração que as técnicas de resolução de conflitos relacionadas ao abuso da proporcionalidade têm proporcionado. Embora haja críticas ao positivismo jurídico, não há nada pior que a liquefação de suas diretivas normativas (entre elas, os direitos e garantias fundamentais), como comprova o abuso ao recurso à proporcionalidade.
Notas e Referências:
[1] DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo, RT, 2009, p. 70.
[2] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11.ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 22.
[3] FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 25.
[4] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal, p. 22.
[5] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 277-278.
[6] Mesmo em Autores de outras disciplinas se pode verificar a tendência em sobrepor, de forma excessiva, o social na frente do individual. É preocupante a fala de Caio Mário da Silva Pereira ao dizer que “a regra de ouro a ser observada é a seguinte: à pessoa humana serão reconhecidos direitos, poderes, faculdades, entre outras situações jurídicas, na medida em que contribua para o bem-estar social da coletividade sob o prisma da utilidade social” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. II. Revisão e atualização: Guilherme Calmon Nogueira da Gama. 22.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 14).
[7] Segundo Luigi Ferrajoli: “... nosso princípio de lesividade permite considerar ‘bens’ somente aqueles cuja lesão se concretiza em um ataque lesivo a outras pessoas de carne e osso. O grupo de normas que chama mais atenção, por injustificado, tem sido, na Itália, produzido largamente pela codificação fascista e pela recente legislação de emergência sob a etiqueta de ‘delitos contra a personalidade do Estado’” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 382-383).
[8] D’URSO, Flavia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 07-08.
[9] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Vol. I. 4.ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 12.
[10] Sugestivo, nesse sentido, é o título da obra de Luigi Ferrajoli, citada aqui: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Traducción: Andrea Greppi y Perfecto Ibañez. Madrid: Trotta, 1999.
[11] “Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 270).
[12] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 43.
[13] PASCHOAL, Janaina Conceição. “Verdadeiras repúblicas não convivem com dois pesos e duas medidas”. In: Janaina Conceição Paschoal e Renato de Mello Jorge Silveira. Livro Homenagem a Miguel Reale Júnior. Rio de Janeiro: GZ, 2014.
[14] GRAU, Eros Roberto. Sobre a prestação jurisdicional: Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 40-41.
[15] “Hoje em dia, a constituição se apresenta como uma totalidade dinâmica, onde os conflitos entre bem particular e bem comum têm que ser solucionados sempre ad hoc, à luz de princípios constitucionais superiores e à luz de uma compreensão holística da constituição. Dissolveu-se a hierarquia que havia entre norma básica e simples lei, do mesmo modo que o caráter regulador dos direitos fundamentais. Não existe nenhum direito que não possa ser limitado a partir de considerações de princípios. Por isso, o Tribunal Constitucional Federal estabeleceu o ‘princípio do efeito recíproco’: dependendo do contexto, qualquer elemento particular da ordem jurídica pode ser interpretado de modo diferente a partir da compreensão da ‘ordem de valores da Lei Fundamental’; Esta antecipação do sentido do todo, guiada por princípios, instaura um escalonamento entre ordem legal e princípios legitimadores, trazendo uma grande insegurança para o direito. (...) esse apelo à ‘indisponibilidade’ de uma ordem concreta de valores, extraídos do direito natural cristão, de uma ética material de valores, ou do ethos cotidiano neo-aristotélico, confirma as suspeitas de Weber, segundo as quais a desformalização do direito abre a porta para orientações materiais discutíveis, cujo núcleo é irracional” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 211-212). A respeito das críticas de Jürgen Habermas, é interessante consultar a versão, em língua portuguesa, do livro de Robert Alexy, em que são disponibilizados alguns escritos posteriores do Autor tentando rebater essas entre outras críticas. Consulte-se: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 575 e ss.
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
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