A dogmática jurídica a partir de uma nova visão da filosofia do direito

22/03/2015

Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - 22/03/2015

 

“Ninguém aprende se não se renova a linguagem. É preciso romper a linguagem para tocar a vida.”

“Devemos minar a linguagem jurídica para aprender que o Direito também é o espelho da irracionalidade humana. A Justiça também é o teatro do absurdo.”

“Estou farto do ensino tradicional. Sua linguagem instituída nos coloca na pior das prisões.”[3]

 

O estado da arte da dogmática jurídica

O Direito não sobrevive sem a dogmática jurídica. Pelo menos um Direito que se queira democrático e que dependa de um magistério não só efetivado sobre a descrição das regras em vigor e suas consequências como, também, em relação à vida vivida.

Não tem sido fácil, porém, fazer-se uma dogmática democrática, isto é, vinculada à transformação e, portanto, crítica. No caminho dela continua havendo uma enorme resistência marcada tanto pela ignorância como por fatores ideológicos, quiçá, no Brasil, mais aquela que estes.

A resistência à dogmática crítica tem, em primeiro lugar, levado em consideração as batalhas ideológicas, marcadas, ainda, por velhas categorias como esquerda e direita, norte e sul, ricos e pobres, incluídos e excluídos – e assim por diante –, sem que se possa colocar fim à disputa, tudo pelos mesmos fundamentos que já antes isso não foi possível. A força das posições ideológicas, porém, não é desprezível e, por certo, não se trata de assunto a ser superado como meramente ultrapassado, como têm feito certos setores do conhecimento. Pelo menos quando se trata do magistério jurídico de países periféricos. Por evidente, o tempo, por si só, não faz desaparecer os problemas e os comportamentos humanos diante deles, bastando pensar que em alguns aspectos se está, hoje, diante de situações verdadeiramente similares àquelas passadas pelos europeus na Idade Média.

Tudo isso deixa a marca indelével de um saber carente e necessariamente comprometido com a assunção de uma postura ideológica. Ela pode, portanto – e isso sabe-se bem –, não ter grande importância no atual momento histórico, mas não pode ser desprezada se em jogo está o ensino do Direito.

Em segundo lugar, o maior problema da dogmática crítica e seu magistério (pelo menos no Brasil) tem sido a ignorância, a falta de conhecimento adequado. E isso se coloca, na vida das academias, de duas maneiras complementares.

Na primeira maneira há de se levar em consideração que se tem hoje, no Brasil, 1.162 Faculdades de Direito[4] e, por evidente, não se tem professores com nível minimamente adequado para todas, ou seja, aquele da pós-graduação stricto sensu – tomando-se em conta o padrão de avaliação –, isto é, mestrado e doutorado, sendo certo, desde logo, que nenhum dos dois garante, por si só, a qualidade mínima necessária, razão por que se outorga às unidades educacionais o controle e a responsabilidade pela contratação dos titulados. Não obstante, a falta de tais professores (titulados) obriga a contratação de professores bacharéis e, assim, simplesmente formados em Direito. Alguns desses, como sabem todos, são excelentes, e sempre estiveram presentes na história do ensino jurídico brasileiro como grandes professores. São, porém, exceções. A grande massa dos professores que não passou pela pós-graduação strictro sensu com frequência atua com extrema boa vontade e dedicação, mas se ressente não só de um conhecimento mais apurado da própria dogmática como, também, dos fundamentos dela; e dos fundamentos dos fundamentos. Aqui, o busílis da questão.

A segunda maneira diz com o resultado disso, dessa falta de conhecimento: ela constituiu um exército de professores de Direito vinculados à dogmática tradicional, a qual – tudo indica – não é sequer aquela clássica e, portanto, aparentemente sólida quanto aos fundamentos e engajada em relação às posturas adotadas, inclusive ideológicas.

A referida dogmática tradicional dos dias de hoje tem, como sua grande expressão a ignorância, a falta de um saber. E é por tal que se presta, no jogo ideológico, à defesa da manutenção do status quo. O principal meio para tanto é uma manualística pobre, paupérrima, meramente descritiva e que absurdamente se pensa “neutra”, na qual com frequência sequer as imprescindíveis noções elementares estão presentes e, quando aparecem, não se prestam a indicar os fundamentos necessários, muito menos os fundamentos dos fundamentos. Enfim, uma dogmática que sequer se livrou do dogmatismo e que, não raro, confunde ambos.

Natural, portanto, que não esteja aberta ao novo; a se reler constantemente; a se inventar e reinventar. Uma dogmática que se não presta para armar; que não arma nada; mas também não quer que se arme. Uma dogmática na qual o mundo é cor-de-rosa; quase perfeito. E que carrega consigo um grave problema: descreve um mundo que não existe e, assim, expressa no magistério jurídico, não forma, deforma. Chega-se, pois, exatamente ao lugar que se não pretende.

Alguns professores metidos nela, por sinal, nem imaginam isso ser possível, isto é, estarem enleados por algo similar àquilo que Marshall McLuahn chamou, tratando da relação do homem com a mídia, de “narcose de Narciso”[5]: como um peixe que nada em um aquário e não se dá conta da água, o humano está metido na mídia e não se dá conta dela.

Uma das piores consequências dessa situação é o trato deficiente – se e quando existente – com os campos que suportam o Direito na sua interdisciplinaridade[6] e transdisciplinaridade.

Deles, como se sabe, a Filosofia não é o único mas, sem dúvida, é o mais significativo, pela extensão dos pontos de contato e aproximação. Mas qual Filosofia?

Por uma dogmática jurídica crítica atrelada à Filosofia da Linguagem

A dogmática, hoje, para ser crítica, precisa estar fundada na Filosofia da Linguagem, embora não só nela.

Conscientizar os juristas de que tal vínculo se trata de uma necessidade tem sido tarefa hercúlea. Seria de estranhar, sem dúvida, se algo do gênero se efetivasse sem maiores resistências.

Afinal, o Direito atual é aquele da modernidade ou, pelo menos, um descendente daquele, com a mesma “carga genética”. Estruturado principalmente após a Revolução Francesa, era natural que respondesse aos postulados da Filosofia da Consciência a qual, no campo jurídico, lutava – e em certos pontos luta até hoje – contra uma Filosofia do Ser que havia ajudado ao Direito Romano ser o que foi, além de ter servido sobremaneira à sociedade feudal e, por fim, ao ancien régime.

O domínio da Filosofia da Consciência, portanto, no Direito, foi arrebatador e quase completo. Por sinal, é difícil vislumbrar outro campo onde a força das suas ideias tenham tido um império tão vasto, não se podendo esquecer o papel decisivo das codificações em tal espaço. Eis por que se fez um esforço descomunal para se dar ao Direito coerência, completude e unidade.[7] Alguns mais otimistas ou simplesmente ousados quiseram lhe atribuir, inclusive, o status de ciência. O sujeito do Direito, consciente e “assujeitador”, em ultima ratio, pretensamente fala a Verdade.

Por elementar, a dogmática jurídica enleou-se de tal forma nessa teia que só lhe restou a arrogância de um pretenso saber, no qual “eu falo a Verdade”, donde falar é simplesmente transformar a palavra em intermediária. Tal momento, aparentemente glorioso e de uma potência inimaginável do Direito, na realidade é trágico: é justo nele que começa a se desvelar o absurdo.

Vem à tona, como parecia sintomático, a impossibilidade de “eu” falar a Verdade. E aqui o jurista está diante de um problema que, por óbvio, não consegue resolver, a não ser pela crença. Falta-lhe a solução, como sempre se pode notar e não se quis; e sobram dificuldades. No lugar dessa falta, como não poderia deixar de ser, o jurista construiu, pelo imaginário, um imenso número de remendos, em geral falsos, ligados, dentre outros, às presunções; aos conceitos vagos, opacos, indeterminados; aos argumentos auxiliares da lógica (a fortiori; a contrario, a simili, a maiori a minori, etc), dos quais imperam, hoje, talvez por ser mais fácil ou estar na moda, a razoabilidade e a proporcionalidade, logo erigidas absurdamente à categoria dos princípios para, no jogo hermenêutico, cada um poder seguir dizendo qualquer coisa sobre qualquer coisa.[8]

As maiores dificuldades do Direito começam, então, por aquilo que é o problema do mundo desde sempre: a questão da Verdade! E gente segue morrendo por ele, em que pese os avanços do conhecimento.

Não é tão simples, porém, o fiat lux. Afinal, a escuridão não é resultado tão só de um não saber e sim também de um outro saber. Portanto, não se trata de uma simples batalha, como se fora uma catequização; e sim uma perene superação de um saber equivocado, mas resistente; e nele o bastião mais difícil de se lidar é o do lugar da Verdade.

Giordano Bruno não foi o único mártir de uma tal cruzada contra a ignorância; mas talvez tenha sido o mais significativo. Queimado vivo no Campo dei Fiori, em Roma (“dove il rogo arse”, isto é, “onde na fogueira ardeu”)[9], pela ignorância ou pelo resultado dela feito interesse e poder, sobrevive em bronze, para ser lembrado nestas horas. Melhor ele, impoluto na sua túnica longa, com o pé para frente como que esmagando a todos e sua ignorância, ou Galileu, vivo após abjurar? Veritas est...?

Um pouco da História da Filosofia não faz mal a ninguém e, portanto, não se é permitido ignorar o ponto central da questão, aparentemente tão simples: o sol gira em torno da terra ou a terra gira em torno do sol? Pois até Copérnico (e não se esquecer de computar os gregos; e alemães também para alguns menos avisados de hoje em dia!), como se sabe, era o sol que girava em torno da terra, ou melhor, até muito depois (Giordano Bruno que o diga!) para, de repente, sobre a escuridão se fazer luz e ninguém mais duvidar que a verdade é justamente o contrário. E Bruno lá, em bronze mas morto, por não ter abjurado aquilo que a mais inofensiva criança sustenta hoje sem qualquer dúvida.

Eis que se coloca, então, a questão do rompimento.

Foi-se a um ponto – sabem todos – no qual a linguagem deixou de ser intermediária para ser protagonista e, assim, constitutiva. E não tanto por ter sido em vão o esforço de se dar conta dos objetos mas porque a Verdade que se pretendia (ou se pensava ser possível) nunca apareceu. Ou melhor, ela sempre veio incompleta, em parte (ou partes) e, portanto, como se fosse uma meia-verdade. Mas esta (uma meia-verdade) pode ser considerada a Verdade?

Aqui, a questão não é tão difícil: a verdade é a verdade; e a meia-verdade é a meia-verdade. Logo, não se trata de saber se um relógio é um relógio (está-se de acordo sobre tal objeto, ou pelo menos se pensa assim), mas de ser impossível saber todas as respostas sobre ele. E isto porque serão sempre meias-respostas; como se fossem meios-relógios; ou apenas partes-de-um-relógio. E meios-relógios não são os relógios. Em suma, não se demorou muito para perceber que se não tem linguagem para dar conta dos objetos; e que eles só podem ser na medida em que se constituem linguisticamente; e ainda que possam conservar algumas de suas características como, por exemplo, lembrou William Shakespeare na frase célebre de Romeu e Julieta[10] (e que pode confundir): mesmo que você dê à rosa outro nome ela continuará com seu perfume; sempre imaginando ser ela mesma e não uma sua representação.

Diante deste quadro resta à dogmática jurídica tão só tratar de construir e ensinar um Direito que se rende à palavra protagonista, constitutiva e que possa ser entendida como a casa do ser; e do Outro lacaniano.

Para tanto faz-se necessário um esforço extra, de constante adaptação ou mesmo recriação de cada elemento constitutivo das disciplinas jurídicas; e isso não é nada fácil. Mas é o trabalho a ser feito, sob pena de se ter sempre mais do mesmo. Como disse Warat certa vez e com extrema beleza, “A ética e as verdades ensinadas na escola nos escravizam àquilo que é eternamente ontem.”[11]

Esse esforço não deve ser diferente ao filósofo do Direito. Sendo ele demais importante (poder-se-ia dizer: quase imprescindível!) no fornecimento dos fundamentos, não há como restar fora da faina. Antes, no campo do Direito seria a ele, em primeiro lugar, que algo do gênero deveria ser cobrado. Muitos, porém, seguem em um lugar hoje inadmissível, ou seja, aquele de um “grande orgulho” (como mostrou Nietzsche usando o exemplo de Heráclito[12]), por certo inaceitável em um tempo de homens cindidos, clivados.

A linguagem, seja ela qual for, é sempre furada ou, pelo menos, passível de um furo tal que se não pode pensar completa, razão por que expressões como verdade, certeza, segurança e outras ganham, necessariamente, uma nova dimensão.

Por uma dogmática jurídica crítica atrelada à Filosofia da Linguagem (incompleta) mas além dela

Que a Filosofia não é o único campo que suporta o Direito, na sua interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, já se disse antes.[13] E assim o é não só porque se não dá conta do objeto, na sua plenitude (Verdade), como, também, porque a linguagem é furada ou passível de furo de modo a recomendar um outro saber para aquilo que fura, que falta, ou mesmo para o possível do todo. Aqui, fala mais alto a Psicanálise, a qual, por isso mesmo – porque diz sobre o que fala quando falta –, não se pode dispensar, como insistentemente querem alguns dos mais notáveis filósofos (dentre outros) para, obviamente, poderem dizer; ou seguir dizendo sem muitos percalços.

Como poucos, Žižek percebeu a questão (o que não significa concordar com ele em um sentido mais amplo): “O problema, naturalmente, é que, numa época de crise e ruptura, a própria sabedoria empírica cética, restrita ao horizonte da forma dominante de senso comum, não pode dar respostas, e é preciso arriscar o Salto da Fé. Essa mudança é a mudança de ‘falo a verdade’ para ‘a própria verdade fala (em/através de mim)’ (como no ‘matema’ de Lacan sobre o discurso do analista, em que o agente fala na posição da verdade), até o ponto em que posso dizer, como Meister Eckhart: ‘É verdade, e a própria verdade o diz’. No nível do conhecimento positivo, é claro que nunca é possível (ter certeza de que se conseguiu) atingir a verdade; só se pode aproximar-se dela interminavelmente, porque a linguagem, em última análise, é sempre autorreferencial, não há como traçar uma linha definitiva de separação entre sofisma, exercícios sofísticos e a própria Verdade (é esse o problema de Platão). A aposta de Lacan aqui é aquela de Pascal: a aposta da Verdade. Mas como? Não correndo atrás da verdade ‘objetiva’, mas agarrando-se à verdade a respeito da posição da qual se fala.”[14]

Vê-se, claramente, que há algo de vital importância para além da razão e sua linguagem lógica. Algo perturbador, sem dúvida, mas que se não pode negar, a ponto de hoje já não se ter a resistência que se tinha há duas, três décadas[15], alguns simplesmente ignorando para fazer de conta que não estava lá; não existia. Ora, o problema gerado não é difícil de entender: além de furar a linguagem da razão, usa a própria linguagem, porém dentro da sua própria lógica, ou seja, fala, mas fala do seu modo e, mesmo usando a linguagem da razão, dá a ela a sua (dele) lógica e, assim, gira o que fala, por condensações e deslocamentos (Freud) ou metáforas e metonímias (Lacan), de tal modo a poder ir ao ponto de expressar o contrário da palavra expressa. Em suma, um significante que liberto do significado irrompe, pela via da pulsão, na cadeia de significantes do sujeito (Eu) e, apontando para outro significante (sempre na cadeia), fala de outra coisa, de outra cena, daquilo que “estruturado como uma linguagem[16] tem uma lógica própria, a qual escapa de qualquer pré-conceito e, mais, da pré-compreensão. Isso que fala, à razão é inconsciente. E, quem sabe, justo por Isso, que tem sido muito pesado para alguns filósofos; mas não só a eles.

É imprescindível, portanto, separar e delimitar os espaços da razão e do inconsciente, de modo a se poder entender o momento em que se encontram.[17] No campo da intersecção e interlocução em Direito e Psicanálise, quem de forma mais clara analisou tais espaços, comparando-os, parece ter sido Agostinho Ramalho Marques Neto, em conhecida conferência pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 22 de novembro de 2005:

“Nesse empreendimento, precisaremos também dizer breves palavras sobre a ‘verdade’ e o ‘sujeito’. (...) É bem conhecida, na filosofia de Aristóteles e em toda a tradição do pensamento ocidental, a importância do princípio da identidade (‘o que é, é idêntico a si’, ou, dizendo de outras forma, ‘A é A’; ‘o que é, é enquanto é’; ‘o que é, não pode não ser enquanto é’; ‘o ser não pode ser e não ser ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto’).Para a lógica clássica aristotélica, a identidade é um princípio da razão fundamental e necessário, que sem ele nenhum pensamento seria possível. Tal princípio, combinado com o princípio da não-contradição, segundo o qual as duas partes contraditórias de uma afirmação não podem ser simultaneamente verdadeiras, tem sustentado, ao longo dos séculos, toda uma concepção de verdade que por sua vez tem fundamentado a possibilidade de um certo discurso científico e filosófico. Foi a combinação desses princípios, acrescidos do princípio de que fica excluída uma terceira possibilidade na oposição entre o verdadeiro e o falso, que adveio toda uma concepção de verdade como enunciado, como significado, bem como toda uma ‘ilusão’ de que seria possível construir um discurso suficiente e logicamente consistente no sentido de ‘sem furos’, o qual, ainda que no limite, abarcaria a totalidade de seu objeto, sem deixar qualquer resto. (...) A tal concepção da verdade, fundada nos princípios lógicos aristotélicos de identidade, de não-contradição e do terceiro excluído, corresponde uma determinada concepção de sujeito, a qual, com pequenas variações de enfoque de uma para outra corrente do pensamento racionalista moderno, de inspiração cartesiana, atribui ao sujeito as propriedades de ser unário, consciente, racional e volitivo, capaz de conhecer (sujeito cognoscente) e de escolher no plano da ação (sujeito moral e, consequentemente, responsável). Pois bem, certas disciplinas estruturadas no contexto do que se convencionou chamar de pensamento pós-moderno, dentre as quais as lógicas paraconsistentes e a Psicanálise, se constituem por ruptura (no sentido, talvez, de uma Aufhebung) em relação aos princípios aristotélicos acima referidos. Essas disciplinas nos trazem, por um lado, uma fratura do princípio de identidade (‘A é [e não é] A’; ‘o que é, é [e não é] enquanto é’, etc) e, pelo outro, uma dimensão em que a verdade está justamente na (possibilidade de) contradição. A Psicanálise parte da admissão de que sempre pode existir contradição no discurso. O inconsciente é a prova disso. Freud diz que o inconsciente não conhece a contradição (...) E Lacan afirma que a ‘a verdade surge da equivocação’. Como fundar um princípio de identidade – pode-se indagar a partir da Psicanálise – se ‘o mínimo do significante é dois’? E, na verdade, três, pois esses dois nada podem significar se não se articularem numa ordem de significantes, a ordem simbólica, esse elemento terceiro que Lacan nomeou como o grande Outro. E ainda há dois outros elementos necessários: o sujeito barrado enquanto sujeito do inconsciente e o objeto enquanto pura ausência... Na Psicanálise, é do que falha, do que rompe a sequência, do que claudica no discurso do sujeito, que pode emergir, na singularidade de cada caso, uma palavra verdadeira. Verdade, em Psicanálise, é ‘presença do inconsciente na fala’, é ‘promessa de significação’. Em Psicanálise, o que mais importa é que aquilo que o sujeito diz possa significar outra coisa, apontando, com diz Freud, para outra cena. Aqui, a verdade já não mais pertence ao campo do enunciado, mas ao da enunciação. Sua função é de significante, e não de significado. Sendo o significante, como diz Lacan, ‘aquilo que representa o sujeito para outro significante’, o laço entre sujeito, verdade e significante se delineia a partir de uma outra lógica, diferente daquela que cristaliza a verdade como significado. É a lógica do ‘processo primário”, como a designa Freud, a qual rege os eventos inconscientes. Essa lógica, que de certo modo revoga os princípios de identidade e de não-contradição, se constitui a partir de uma falta, de um furo originário e impreenchível na estrutura simbólica. Com efeito, não há qualquer significante ‘primeiro’ ou ‘último’ (...) [e] É nesse sentido que se diz que não há metalinguagem, ou, em termos lacanianos ‘não há Outro do Outro’.”[18]

O papel da dogmática jurídica crítica diante de tal separação não é e não pode ser continuar a camuflar um lugar do qual ex ante não se sabe mas que está lá; e fala; e no que fala dá – ou pode dar – sentido. O Direito, então, é só mais um campo a ser iluminado por um saber que se não pode negar, a não ser ideologicamente, no sentido marxiano.

Tem-se, diante do acolhimento dIsso que abre a possibilidade de outro sentido, novas e melhores perspectivas. Veja-se um exemplo tomado emprestado de Contardo Calligaris: “É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido – muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. (...) Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. (...) Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido. A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (...): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).”[19]

Vive-se, portanto, em um ambiente de parcialidade e, nele, a dogmática jurídica crítica precisa aprender a conquistar um gozar que não é todo mas é o possível. Ele, porém, é suficiente (ou pode ser) para se encontrar uma abertura capaz de conduzir ao novo e à transformação. Tome-se um exemplo concreto, ligado ao Direito Processual Penal e a possibilidade de um novo CPP no Brasil:

“O ano de 1987 foi muito rico em discussões sobre a possível promulgação, na Itália, de um novo Código de Processo Penal, em face do Anteprojeto estar concluído e o governo ter recebido poderes para emaná-lo a partir de uma legge delega de 16.02.87. Pelas mãos de Giuliano Vassali, então Ministro di Grazia e Giustizia e habilíssimo articulador político, o CPP italiano ora em vigor acabou promulgado em 24.10.88, após 25 anos de debates. A Itália, dizia-se, enfim chegara à democracia processual. Em 12.01.88, Franco Coppi, estupendo professor de Direito Penal da Universidade de Roma “La Sapienza” e até hoje um dos grandes advogados militantes publicou um ensaio no jornal romano Il Messaggero no qual o título expressa quase tudo: “Arriva la nuova procedura, ma serve anche una nuova mentalità” (Chega um novo processo, mas precisa também uma nova mentalidade). Coppi sabia o que dizia: o grande desafio para um novo código como aquele – onde se mudou o sistema processual penal, de inquisitório para acusatório – era fazer com que as pessoas, principalmente os aplicadores da lei, conseguissem entender a mudança e, com ela, mudassem também seu modo de dar sentido às regras ali dispostas em sistema. Isso parecia óbvio, ma non troppo. Afinal, desde 1215 – pelo menos – pensavam-se as regras processuais penais a partir de alguns postulados e, sendo assim, havia uma verdadeira “cultura” a impregnar as mentalidades. Daí o pertinente alerta, com serventia universal.”[20]

Assim, quando se fala de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade como exigência inarredável para o Direito se quer, dentre outras coisas, apontar para o que está além dele, além da dogmática jurídica, além da Filosofia da Linguagem. Nada disso, porém, é simples de entender e de praticar. O que se sabe é que apesar da enorme resistência, aqueles que têm feito força para tanto – e há muito se mostra, no mesmo patamar, como imprescindível, a Economia – têm conseguido melhores resultados, pelo menos no aspecto democrático.


Notas e referências:

[1] Texto especialmente preparado para as III Jornadas Argentino-Brasileiras de Filosofia do Direito. Facultad de Derecho, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 28.10.11. Dedica-se este texto a dois próceres da interlocução Direito-Psicanálise e motivos de orgulho para a Faculdad de Derecho da UBA e todos os que tiveram o privilégio de privar de suas amizades: Luís Alberto Warat e Enrique Marí. Publicado anteriormente em: BONATO, GIlson (org.). Filosofia e Direito: Reflexões – Um tributo ao Professor Cleverson Leite Bastos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, pp. 67-80.

[3] WARAT, Luís Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985, pp. 48-9.

[4] Tal número é fornecido pelo Ministério da Educação sendo 1.143 Cursos de Direito em atividade e  19 em extinção. Disponível em: http://emec.mec.gov.br  Acesso em 16.10.11.

[5] MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 59 e ss.

[6] Sobre “el problema de la interdisciplinariedad”, como poucos e para superá-lo, v. MARÍ, Enrique. La teoria de las ficciones. Buenos Aires: Eudeba, 2002, p. 217 e ss.

[7] V., por todos, BOBBIO, Norberto. Teoria dell’ordinamento giuridico. Torino: Giappichelli, 1960, 219p.

[8] STRECK, Lenio Luiz. Hermêutica  jurídica (e)m crise. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 403.

[9] Dizeres da placa em homenagem a Giordano Bruno, no Campo dei Fiori, Roma:

IX GIUGNO MDCCCLXXXIX

A BRUNO

IL SECOLO DA LUI DIVINATO

DOVE IL ROGO ARSE

[10] “What’s is a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet.” (“ O que é um nome? Se dermos um outro nome àquilo que nós chamamos de rosa ela continuará com seu tão doce perfume.”

[11] WARAT, Luís Alberto.  A ciência jurídica...  cit., p. 134.

[12] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A filosofia na era trágica dos gregos. Trad. de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 74: “Heráclito era orgulhoso: e quando se trata do  orgulho de um filósofo, este é sempre um grande orgulho. Sua atividade jamais o remete a um ‘público’, ao aplauso das massas e a coro jubiloso de seus contemporâneos. Trilhar o caminho sozinho pertence à essência do filósofo. Sua vocação é a mais rara, e, de certo modo, a mais antinatural, e por isso é excludente e hostil até mesmo em relação às vocações que se lhe assemelham. O muro da autossuficiência deve ser de diamante para que não seja destruído e despedaçado, pois tudo se move contra ele. (...) pois a desatenção a tudo o que é contemporâneo e momentâneo está na própria essência da grande natureza filosófica. O filósofo detém a verdade: para onde quer que a roda da história esteja girando, jamais poderá escapar da verdade.”

[13] Há de se notar, neste passo, o alerta que fazia WELZEL, Hans. Derecho penal e filosofia. In Estudios de derecho penal. Trad. de Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Montevideo-Buenos Aires: Julio César Faria – Editor, 2007, p. 147 e ss., já em 1964, após falar da relevância para o Direito dos conhecimentos da Economia, Psicologia, Psiquiatria, Medicina e outras como a Teologia, assevera: “Si en lo siguiente se hace una breve referencia, tanto hacia una otra dirección, de la relación entre la ciência penal y la filosofia, es por varios motivos. Por un lado, el derecho penal fue, desde siempre, una puerta de ingreso para la filosofia. Pero la actual situación científica estimula una profundizada fundamentación filosófica de los conceptos penales básicos. Los tiempos del positivismo transcurrieron. A pesar de toda la acumulación de resultados individuales no há logrado mostrarnos el ‘lazo espiritual’ que los rodeaba. La cuestión por lo fundamental, lo general y el todo se hace cada vez más urgente.” (p.148)

[14] ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Trad. de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 21.

[15] Valem, neste passo, as observações de MARÍ, Enrique. Uma lectura freudiana de Hans Kelsen: a la busqueda del banquete perdido. In MARÍ, Enrique et al. Materiales para una teoria critica del derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991, p. 13 e ss.

[16] LACAN,  Jacques. O Seminário: livro 20: mais, ainda. 2ª ed. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 189.

[17] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Trad. de Aluísio Pereira de Menezes,  M. D. Magno e Potiguara Mendes da Silveira Jr. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Colégio Freudiano, 1983, p. 183: “não se poderia passar de um plano ao outro (...) sem primeiramente refletir nem voltar freqüentemente aos constituintes elementares graças aos quais pode ser reconhecida a função dogmática.”

[18] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Identidade e cidadania. In Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: s/e, 2005, vol. LXXXI,  pp. 748-750.

[19] CALLIGARIS, Contardo. O sentido faz falta? Folha de São Paulo, 06.10.2011, Ilustrada, p. E8.

[20] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. Novo código de processo penal, nova mentalidade. In Revista de Ciências Jurídicas e Sociais Unipar. Umuarama: s/e, jul./dez. 2009, v. 12, n. 2, p. 183.


jacintoJacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.


Imagem Ilustrativa do Post: Stanford University// Foto de Franco Folini: // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/livenature/273456472 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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