A (Doce) Ilusão do “Mundo das Drogas”

22/11/2015

Coluna Espaço do Estudante

“Há coisas que não vemos, porque não queremos olhar”.

Manoel Curvelo de Mendonça

O título desse trabalho é deveras polêmico. Devo adiantar que o presente comentário surgiu em virtude de uma das situações mais enigmáticas da vida: o acaso. Nesse andar desorientado que representa nossa vida acadêmica, fui convidado por uma (ruiva) amiga para assistir uma aleatória aula (que devo dizer não estava inclusa em minha grade curricular). Como amizade é tudo, cheguei com a timidez de sempre, claramente sem graça por saber que implicitamente estava sendo estigmatizado pelo público como “aluno-turista”. A grande questão é que nesse gélido ambiente escolar, na profusão de tremores labiais, ocorria um intrigante debate: o consumo pessoal de drogas.

Observei os mais variados discursos, mais um em específico me chamou a (devida) atenção. Dizia o aluno em tom de “vendedor ambulante” (desculpem-me novamente a rotulação): “mundo das drogas é o grande problema de nossa sociedade e é preciso criminalizar o usuário”. Nesse momento meu superego criminológico sentiu uma leve “pontada” desejando manifestar-se, porém, mantive-me calado para refletir e debater melhor sobre tal fala acadêmica. E aqui estou.

Pergunto: Existem dois mundos distintos? Um mundo sem drogas e outro mundo com drogas? Se aceitarmos essa premissa lógica, então penso que existe o jardim do Éden, sem crime e sem pecado, o mundo do cidadão de “Bem” onde todos são consumidores e não há “vagabundos”. Nessa “Disneylândia” não há consumidores (falhos) de drogas, pois álcool, cigarro, analgésicos e uma infinidade de outras substâncias livremente adquiridas no mercado fazem parte da cultura do mundo “sem drogas”. Em contrapartida, o mundo das drogas seria o lugar da perdição, do pecado, das orgias, do crime, da falta de segurança, da morte, do roubo de nossos patrimônios e a causa de todos os males que afligem a humanidade.

Pois bem. Tomando por exemplo o programa governamental “Crack: é possível vencer”, verifica-se que o discurso oficial ratifica a repartição desses mundos. Ou seja, há um lado bom e um lado mau. E inclusive fornecem-se características humanas a droga, diga-se, uma substância (como se fosse possível vencer algo que nem sequer possui comportamento?), buscando-se assim impedir o verdadeiro pensamento crítico sobre o tema. Afinal, criminalizar o consumo pessoal é a nossa melhor política?

Em meus estudos, aprendi que a Moral não pode corrigir o Direito. Este já alcançou um grau de autonomia. O que existe é uma cooriginariedade. Nas palavras de STRECK:

“É claro que, dada a cooriginariedade entre Direito e Moral (e o fato de o comando jurídico não poder contrariar o conteúdo moral, apesar de com este não se confundir), o argumento jurídico é, radicalmente, moral (por isso Dworkin irá ainda mais longe e dirá que o Direito é um branch da Moral). Mas a moralidade que o jurista articula quando argumenta não é a sua moralidade privada; não é a mesma que governa suas escolhas pessoais. A moralidade pública e política é outra, e gira, em Estados Democráticos ao menos, em torno de um sistema de direitos. Você tem ou não tem um direito? Essa resposta depende de uma argumentação moral, e o juiz tem aresponsabilidade política de desenvolvê-la de forma adequada. Não depende de uma escolha” [1].

Não se pode deixar de asseverar que certamente sempre haverá pessoas consumindo drogas. E pior, no “nosso” mundo. Não há duvidas de que impedir o acesso do usuário à droga é relevante para a preservação de sua integridade física e psíquica, mas justamente para preservar sua dignidade. Não para corrigi-lo como se fossemos “ortopedistas de alma”, e o mais grave, corrigi-los através de argumentos moralistas, que se utilizando do (super) direito penal  acabam ocasionando uma intensa reação social informal sobre os consumidores de entorpecentes, dificultando sua recuperação e submetendo-o a tratamentos degradantes por parte de autoridades policiais e pela própria Justiça. Veja-se o que atesta PIERPAOLO BOTTINI CRUZ sobre a temática:

“Assim, fica afastada a legitimidade do uso do direito penal para inibir o consumo de drogas, pela perspectiva dasaúde individual, pela violação ao artigo 1º, III e V e do artigo 5º, X da CF. Isso não significa autorizar o entorpecente ou legalizar sua posse. É função do Poder Público desenvolver programas para proteger a saúde dos cidadãos, alertando-os para o risco do uso de drogas, criminalizando do tráfico de drogas (CF, art.5º, XLIII), promovendo atividades pedagógicas, oferecendo estruturas de tratamento— e mesmo adotando medidas de proteção diante dos efeitos colaterais do consumo de entorpecentes para a saúde, como a distribuição de seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, com o escopo de reduzir contaminações por HIV. Em suma, adescriminalização do uso de drogas pode e deve ser substituída por uma política de redução de danos, defendida por especialistas em saúde pública como mais eficaz e útil na proteção da saúde do usuário.” [2]

Destaca-se: não é legalizar, mas descriminalizar, tendo em vista a eficácia seletiva e invertida do Direito Penal. Pois mesmo não havendo prisão, há toda uma carga estigmatizadora do processo penal diante do consumidor de drogas, o qual deve ser atendido pelas instituições de saúde pública e não acabar sentado, refletindo em um banco de uma delegacia sem nenhuma perspectiva.

No que se refere à criminalização do consumo com vistas a inibir o tráfico de drogas, PIERPAOLO continua:

“O argumento de que a criminalização do consumo protege a saúde pública porque se trata de estratégia de inibição do tráfico de drogas peca pela ilegitimidade e pela indemonstrabilidade. No que concerne à ilegitimidade, é preciso notar que o pragmatismo da eficácia não pode levar à restrição da liberdade do cidadão para combater comportamentos de outros, sobre os quais ele não tem domínio. Tratar-se-ia de uma afronta clara e evidente ao princípio da culpabilidade, pelo qual só é punível o comportamento controlável pelo autor, e da admissão de uma espécie de responsabilidade objetiva na aplicação da norma penal. (…) Ora, o usuário de drogas não tem qualquer controle sobre o comportamento do traficante. E, ainda que se admita a possibilidade do usuário evitar o consumo de drogas — o que não é verdadeiro em inúmeros casos — impossível atribuir a ele o controle ou a condução do comportamento doloso do comerciante de drogas. A aplicação da pena com essa motivação seria punir alguém pelo ato do outro. Uma punição fundada na incapacidade do Estado de controlar o verdadeiro comportamento danoso. Em suma, aplica-se a sanção no usuário diante da dificuldade de encontrar, investigar e condenar o verdadeiro culpado — no sentido dogmático —pela violação à saúde pública: o comerciante de produtos ilícitos. [3]

Cumpre ressaltar que existe ainda toda uma base principiológica do Direito Penal, a qual impede a aplicação da pena por atos que violem apenas a saúde individual e à intimidade. Queria falar sobre eles, mas a aula (assistida por acaso) acabava de ter fim…


Notas e Referências:

[1] In http://www.conjur.com.br/2014-ago-28/senso-incomum-matar-gordinho-ou-nao-escolha-moral-ver-direito

[2] In http://www.conjur.com.br/2015-mar-10/direito-defesa-descriminalizar-uso-drogas-questao-constitucional

[3] In http://www.conjur.com.br/2015-abr-14/direito-defesa-descriminalizar-uso-drogas-questao-constitucional-parte


Alexandre Brito

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Alexandre do Rosario Brito é Acadêmico de Direito do 8º Semestre da Faculdade Estácio do Pará – ESTÁCIO-FAP.

 


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