Em 31 de março de 1964, o Brasil sofria um golpe de Estado, o qual destituiu o governo democrático constitucional da República e instaurou um regime de exceção - que permaneceu até 1984 - sob a forma de ditadura civil-militar[1].
Começava ali um longo período marcado por violência, repressão, perseguição, além de desaparecimentos e assassinatos, crimes esses incrivelmente perdoados, pois os agentes violadores da lei penal foram protegidos pelo regime que pertenciam, o qual promulgou a Lei da Anistia[2]. Embora os efeitos desse período remanescem cotidianamente, pois detenções ilegais, torturas e execuções não são estranhas à realidade contemporânea nacional.
Segundo dados do Projeto Brasil Nunca Mais: “entre 50 e 70 mil pessoas foram presas pela repressão militar que se instalou no Brasil pós-63; 25 mil delas processadas formalmente; 383 mortas e aproximadamente 200 ainda estão desaparecidas”[3].
Não obstante, a denominação de ditadura civil-militar dá-se porquanto não se contou, exclusivamente, apenas com agentes militares para se efetivar o Golpe, houve, também, a participação de diversas organizações e agentes civis, tais como, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto etc[4]. Todavia, o que se seguiu foi um governo estritamente militar, uma vez que, desde logo, os civis foram afastados dos postos de comando.
Inicialmente, a ditadura procurou sustentar o discurso de salvadora da pátria e defensora da democracia – típico de alguns políticos atuais que se aproveitam de período de crise nacional para proferir o mesmo discurso. Contudo, com o Ato Institucional 5 (AI-5) em 1968, houve, como se costuma mencionar, “golpe dentro do golpe”, o qual escancarou a “chamada ‘Ditadura envergonhada’, se tornando a ditadura escancarada”[5].
Nesse passo, consoante o que fora amplamente demonstrado no relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV -, o período da ditadura civil-militar se utilizou de gravíssimas violações aos direitos humanos – conceituados como crimes de lesa-humanidade -, com “repressão e eliminação de opositores políticos (...), detenções ilegais, arbitrárias e torturas, que se abateu sobre milhares de brasileiros, para o cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres”[6].
Não sem razão, tais atitudes violam, claramente, disposições de vários tratados internacionais outorgados pelo Brasil, a saber:
Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969); Convenção contra a Tortura (1984); Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento de Pessoas (1994); Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”, 1994); Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, prostituição infantil e à pornografia infantil (2000); e Protocolo Adicional à Convenção contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (2000)[7].
À época da ditadura civil-militar, os presos pelo regime castrense tinham em seus advogados a única chance de verem seus direitos fundamentais garantidos. Todavia, apesar dos incansáveis esforços dos causídicos, muitas vezes não se logravam êxitos, pois, de igual maneira, os direitos da defesa foram suprimidos, em clara afronta à lei.
Desse modo, pela violação sistemática de Direitos Humanos que, conforme bem diz Fábio Comparato, “é o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais”[8]; hodiernamente, há diversos movimentos que buscam a responsabilização penal dos envolvidos nos crimes de lesa-humanidade do período militar.
Entretanto, esbarram-se no artigo 1. °, da Lei da Anistia, o qual declara: “é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”.
Sendo assim, o §1. ° do mesmo artigo, a visar não deixar margem para qualquer punição, dispõe: “consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Propositalmente, esses dispositivos foram redigidos de forma incerta, possibilitando interpretações distintas, uma vez que a intenção era anistiar criminalmente todos os agentes que comandaram os mais variados crimes comuns da época ditatorial.
Apesar disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nos anos 90, entendeu que os crimes cometidos durante o período da ditadura civil-militar são crimes de lesa-humanidade, isso é, crimes imprescritíveis[9]. Dessa forma, abriu-se ensejo aos movimentos de direitos humanos para buscar a responsabilização penal dos anistiados, pois, segundo a CIDH “o perdão a violação graves contra os direitos humanos seria vedado pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos”[10].
Não olvidando da importância desse possível reconhecimento, mas a contrário sensu, Saulo Carvalho nota a espantosa facilidade com a qual os movimentos sociais, que lutam pelos direitos humanos, recorrem às pautas criminalizadoras e ao exercício punitivo retribucionista, e releva que: “é imprescindível desenvolver a capacidade de autocrítica das teorias críticas. A preocupação se justifica no momento em que se percebe a convergência do discurso dos movimentos de luta pelos direitos humanos com as pautas criminalizadoras”[11].
Não obstante essas ressalvas, a valer dos próprios dispositivos obscuros da Lei da Anistia, além do entendimento da CIDH, os movimentos de direitos humanos – por meio do Ministério Público Federal -, propõem ações judiciais buscando a punição dos agentes pertencentes ao estado na época.
Entretanto, para o Judiciário nacional, além de esbarrarem na própria Lei da Anistia, de igual modo, há outros princípios que devem ser considerados, tais como, prescrições, retroatividade da lei penal, legalidade etc.
Nesse passo, a Ordem dos Advogados do Brasil, na ocasião de 2008, propôs a ADPF n. ° 153, com o fito de a Corte Maior interpretar a Lei da Anistia conforme à Constituição e, em consequência, requereu-se a declaração, à luz dos preceitos fundamentais, que crimes de tortura, assédio sexual, assassinato e congêneres, não sejam havidos como crimes políticos e, sim, como crimes comuns.
O Supremo, por conseguinte, declarou constitucional a Lei da Anistia, a convalidar a imunidade dos agentes, em uma decisão notadamente política, no que o ministro Celso de Mello consignou ser a citada lei feita a partir da vontade da sociedade civil, após amplo debate social[12].
Na mesma linha, a ministra Carmem Lúcia declarou que a Lei da Anistia resultou de uma pressão social, na época, objeto de amplo debate e de manifestações expressas e específicas das entidades e personalidades sociais[13].
Esses argumentos, no entanto, são amplamente refutados pelos historiadores, uma vez não haver registro de consulta popular à promulgação.
Nada obstante, apesar de sempre combativos, devem os movimentos de direitos humanos, ao intentarem justiça social por meio do sistema penal, realizarem a devida e necessária autocrítica, para não incorrerem nas armadilhas da vontade punitiva a qualquer custo - o que, segundo Silva Sánchez seria: “ideología de la ley y el orden em versión de izquierda”[14].
De igual modo, Maria Lúcia Karan denominou o socorro das pautas sociais na política criminal, de esquerda punitiva, e advertiu:
Frequentemente propondo como solução a retirada de direitos e garantias penais e processuais, no mínimo esquecidos de que a desigualdade inerente à formação social capitalista que, lógica e naturalmente, proporciona àqueles réus melhor utilização dos mecanismos de defesa, certamente não se resolveria com a retirada de direitos e garantias, cuja vulneração repercute sim – e de maneira muito mais intensa – sobre as classes subalternizadas, que vivem o dia a dia da Justiça Criminal[15].
Dessarte, embora as lutas pela responsabilização devam ser levadas em consideração, parece-nos, mais do que punição, o que se intenta, pelos movimentos de direitos humanos, é o direito à verdade e à memória, as quais devem ser desveladas, a fim de não se repetir, talvez nunca mais, essa época maculada do país.
Sendo assim, contemporaneamente, deve-se preservar as garantias asseguradas aos agentes da época – a não os tornar inimigos (Zaffaroni), por mais repulsivos que os crimes sejam, e se lutar para romper e, verdadeiramente, sepultar os resquícios arraigados na sociedade e nas forças de segurança espelhadas pelos militares da época.
Nesse sentido, a atuação da Comissão Nacional da Verdade e a publicização dos arquivos da ditadura são de salutar importância, para, como dito, conhecer àqueles que se beneficiaram, de fato, da ditadura civil-militar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei n. ° 6.683, de 28 de agosto de 1979.
CARVALHO, Salo. Criminologia, garantismo e teoria crítica dos direitos humanos: ensaio sobre exercício dos poderes punitivos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 517.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2013.
FERNANDES, Julio Mangini. História, memorias e direitos humanos: 50 anos da ditadura militar no Brasil. Salvador: Editora Pontocom, 2014.
FERNANDES, Pádua. Ditadura militar na américa latina e o sistema interamericano de direitos humanos: (in)justiça de transição no Brasil e Argentina. Universidad 9 de julio-San Plabo, p. 1678.
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Revista discursos sediciosos - crime, direito e sociedade n. º1, ano 1, 1º semestre 1996, Relume-Dumará, Rio de Janeiro.
MACHADO, Patrícia da Costa. Direito Internacional dos direitos humanos: a atuação do judiciário brasileiro frente aos crimes de lesa humanidade da ditadura civil-militar.
SEGATTO. José Antonio. 1964-2014: Golpe Militar, História, Memória e Direitos Humanos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.
SEIXAS, Ivan. Desaparecidos políticos: A falta de vontade política de FHC. Revista ADUSP, julho 1995.
SILVA, Natanael de Freitas. Ditadura civil-militar no Brasil e a ordem de gênero: masculinidade e feminilidades vigiadas. Mosaico – Vl. 7 – N. ° 11, 2016.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María apud CARVALHO, Salo. Criminologia, garantismo e teoria crítica dos direitos humanos: ensaio sobre exercício dos poderes punitivos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008.
Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/.
[1] SEGATTO. José Antonio. 1964-2014: Golpe Militar, História, Memória e Direitos Humanos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, p. 53.
[2] Lei n. ° 6.683, de 28 de agosto de 1979.
[3] SEIXAS, Ivan. Desaparecidos políticos: A falta de vontade política de FHC. Revista ADUSP, julho 1995, p. 12.
[4] SILVA, Natanael de Freitas. Ditadura civil-militar no Brasil e a ordem de gênero: masculinidade e feminilidades vigiadas. Mosaico – Vl. 7 – N. ° 11, 2016, p. 66.
[5] FERNANDES, Julio Mangini. História, memorias e direitos humanos: 50 anos da ditadura militar no Brasil. Salvador: Editora Pontocom, 2014. p. 21.
[6] Relatório da Comissão Nacional da Verdade, p. 963.
[7] Crimes da ditadura, MPF, pp. 38/39.
[8] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 4.
[9] MACHADO, Patrícia da Costa. Direito Internacional dos direitos humanos: a atuação do judiciário brasileiro frente aos crimes de lesa humanidade da ditadura civil-militar, p. 7.
[10] FERNANDES, Pádua. Ditadura militar na américa latina e o sistema interamericano de direitos humanos: (in)justiça de transição no Brasil e Argentina. Universidad 9 de julio-San Plabo, p. 1678.
[11] CARVALHO, Salo. Criminologia, garantismo e teoria crítica dos direitos humanos: ensaio sobre exercício dos poderes punitivos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 517.
[12] Idem, p. 1681.
[13] Idem, p. 1681
[14] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María apud CARVALHO, Salo. Criminologia, garantismo e teoria crítica dos direitos humanos: ensaio sobre exercício dos poderes punitivos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 517.
[15] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Revista DISCURSOS SEDICIOSOS - CRIME, DIREITO E SOCIEDADE Nº1, ano 1, 1º semestre 1996, Relume-Dumará, Rio de Janeiro.
Imagem Ilustrativa do Post: Le policiers ont repoussé les personnes bloquées dans bellecour. // Foto de: Sylvain SZEWCZYK // Sem alterações
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