A disputa pelo poder entre facções criminosas e a crise no sistema penitenciário brasileiro: lições tiradas do universo medieval de Game of Thrones?

22/01/2017

Por Audrey Vanessa de Barros Alves - 22/01/2017 [1]

A comparação partiu com a explosão de selvageria e o extermínio de presos inimigos em questão de horas por facções rivais nas prisões do Amazonas.

No dia 1º de janeiro de 2017, em duas prisões da cidade de Manaus, cerca de 60 (sessenta) presos foram mutilados, esquartejados e decapitados[2] por facções rivais, tudo devidamente registrado por câmeras de celulares e divulgado em redes sociais. Cinco dias após o massacre, uma nova carnificina explodiu na cidade de Roraima e deixou pelo menos 31 (trinta e um) mortos. Os métodos utilizados? Os mesmos da chacina ocorrida na capital do Amazonas, isto é, decapitações, mutilações e esquartejamentos.

As circunstâncias da barbárie cometida por preso contra preso, sem interferência alguma das autoridades, já que o número de policiais era ínfimo – um áudio divulgado na internet revela que apenas três patrulhavam os muros no momento da primeira rebelião –, apontam para a disputa entre duas facções rivais pelo controle do tráfico de drogas, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a Família do Norte (FDN), sendo esta última aliada ao Comando Vermelho (CV), cuja atuação, segundo especialistas, se fortaleceu a partir de 2010 por uma circunstância geográfica[3].

Para muitos profissionais do direito, a situação confirma, sem sombra de dúvidas, o quadro pavoroso do sistema prisional do país – um mundo à parte, sobre o qual as autoridades estaduais e federais demonstram não ter qualquer controle – e só quando explodem episódios de extrema selvageria, como as matanças citadas acima, a crise atávica nas prisões ganha atenção. E não é por menos, a omissão e a debilidade do sistema carcerário – celas superlotadas, imundas, com presos amontoados dentro de cubículos de concreto quase sempre em ruínas –, cria um barril de pólvora sempre pronto a explodir.

Tal situação decorre de uma política errada, a de que “prende-se muito, mas prende-se mal”, exemplo disso é o excesso de presos provisórios que ainda não receberam sentença, mas que a justiça insiste em manter segregados, transformando a prisão preventiva de caráter excepcional em regra, o que vai na contramão do que preceitua a Constituição Federal[4]. Sem contar que a maior parte destes presos provisórios torna-se alvo fácil para as facções e uma vez na cadeia, independentemente da experiência ou não no mundo do crime é preciso escolher um lado para se proteger[5].

Na prática, a política penitenciária fomenta a existência das facções criminosas como as que protagonizaram o derramamento de sangue nos primeiros dias do ano. Segundo o advogado Alamiro Velludo Salvador Netto[6], “o Estado criou condições para o surgimento dessas facções, as organizações não surgiram fora para cometer crimes. Elas apareceram dentro do Estado, na instituição prisional, onde o controle deveria ser total”, ou seja, se o Estado não propicia o mínimo de garantias, alguém vai propiciar.

É por essas e outras que a solução não deve limitar-se a construção de novos presídios. Até porque um presídio para ser construído leva tempo e isso seria repetir o que já está errado, isto é, reproduzir tortura e violência - é caminhar na contramão de um mundo sem direitos humanos. Para a maioria dos juristas, resolver o caos brasileiro depende menos da construção de novas penitenciárias e mais do redirecionamento das políticas de segurança, adotando-se penas alternativas e instituindo as audiências de custódia em todo país, para que sejam cumpridas as normas de direitos humanos e para que se dê maior valor às garantias constitucionais em relação à pessoa presa.

Enquanto a solução não aparece definitivamente, os massacres descritos acima tendem a ser um enredo sem final – as autoridades não admitem, mas sabem que em meio ao caos e à guerra entre as facções é grande o risco de cenas semelhantes se repetirem. Cenas àquelas que mais parecem com gravuras dos livros da idade média – cabeças enfileiradas, corpos desnudos sem as próprias cabeças, corações e vísceras arrancados e espalhados em cima de poças de sangue. Entretanto, não são as imagens de gravuras medievais, ou melhor, cenas de ficção como as trazida na saga épica de Game of Thrones, são imagens reais, são cenas, inclusive, atuais, de preso guerrilhando contra preso, da ausência do Estado, da vergonhosa precariedade dos nossos presídios, do nosso Brasil.

Será que voltamos aos tempos medievais? Hoje ninguém sabe quem será o dono do Trono de Ferro de Westeros, na série Game of Thrones, mas somos os personagens da nossa própria história e cabe a nós escrevê-la sabiamente.


Notas e Referências: 

[1] Saga épica criada por David Benioff e Daniel Brett Weiss para a HBO. É Baseada na ambiciosa obra homônima do escritor americano George R. R. Martin. Seu enredo segue as histórias dos livros de A Song of Ice and Fire e se passa no continente ficcional de Westeros e Essos, uma terra reminiscente da Europa Medieval onde as estações duram por anos ou até mesmo décadas. A série mostra a luta incessante pelo poder ou pela sobrevivência entre os mais variados grupos políticos. Os meios cruéis são os mais empregados para se conseguir o objetivo desejado, como matar crianças, chacinar camponeses, trair aliados, executar mulheres grávidas ou vender o apoio a uma causa.

[2] VALOIS, Luís Carlos. Degolando e aprendendo. Disponível em: http://www.gulags.com.br

[3] Foi noticiado em rede nacional que a Família do Norte (FDN) atua na travessia da cocaína do Peru para o Brasil e faz a distribuição da droga em parte do território brasileiro.

[4] Art. 5º (...)

(...)

LVII: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

[5] ROSA, Alexandre Morais. Quem garante os presos são as facções: o caso de Manaus. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jan-06/limite-penal-quem-garante-presos-sao-faccoes-manaus

[6] Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência a violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.

ROSA, Alexandre Morais. Quem garante os presos são as facções: o caso de Manaus. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jan-06/limite-penal-quem-garante-presos-sao-faccoes-manaus

VALOIS, Luís Carlos. Degolando e aprendendo. Disponível em: http://www.gulags.com.br


Audrey Vanessa de Barros AlvesAudrey Vanessa de Barros Alves possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Santa Catarina. É advogada e dedica-se principalmente aos estudos que envolvem o direito processual. É especialista em Processo Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC e em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Atualmente desempenha atividades junto ao Núcleo de Prática Jurídica da ESTÁCIO, na função de professora/orientadora de acadêmicos entre as fases 7ª a 10ª do curso de Direito.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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