A disponibilização de conteúdo pela internet e o imposto sobre serviços – Por Fábio Borges

22/03/2017

A transmissão de conteúdo de entretenimento pela internet é uma realidade desde muito. A tecnologia de transmissão instantânea de dados, usualmente nominada de streaming, surgiu nos anos 90, mas somente ganhou popularidade quando as operadoras de telefonia passaram a disponibilizar serviços de conexão com maior velocidade.

O mercado conta atualmente com uma considerável gama de opções. Em quase todas há contraprestação financeira pelo acesso ao conteúdo, como é o caso da Amazon Prime Vídeo, Spotify, iTunes Match, Viki, AXN Play, Sony Play, TNT Go, Google Play Music, HBO Go e a Netflix.

A Netflix é um bom exemplo de como essa nova forma de consumo de conteúdos se popularizou. A empresa foi fundada no ano de 1997. Seu faturamento subiu de U$ 170 mil no ano de 2002 para US$ 4,37 bilhões em 2013[1]. Entre 2013 e 2014, na comparação de trimestres, a empresa aumentou seu lucro líquido em 20 vezes[2]. Apenas considerando o mercado brasileiro, a Netflix fechou o ano de 2016 com faturamento de R$ 1,29 bilhão, valor 30% maior que o obtido pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) no mesmo período[3].

Esse cenário tem gerado diversas discussões, desde questões relacionadas à concorrência com as operadoras de TV por assinatura, necessidade de regulação e, como não poderia ser diferente, sobre o regime tributário, especificamente para aqueles serviços adjetivados de on demand, em que o usuário paga pelo acesso ao conteúdo.

Em dezembro de 2016, ao menos no plano da tributação, o tema ganhou seu primeiro capítulo com a edição da Lei Complementar nº 157. Essa lei introduziu alterações na Lei Complementar nº 116/03, que é lei de normas gerais do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS.

Dentre as modificações implementadas está a inclusão de um novo item na Lista de Serviços, na categoria "Serviços de informática e congêneres”.

O item 1.09 recebeu a seguinte redação:

1.09 - Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei nº 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS).

Antes da Lei Complementar nº 157/16 não era possível esse tipo de tributação, por conta de uma característica própria da disciplina do ISS.

Ainda que a competência tributária seja municipal, o serviço que se pretenda tributar deve estar previsto em lei complementar federal. Já é assente na jurisprudência que “A lista de serviços anexa à lei complementar n. 56/87 é taxativa”, de modo que, “[…] Não incide ISS sobre serviços expressamente excluídos desta[4].

A cobrança do ISS ainda depende da previsão em lei municipal, que é a norma editada pelo ente titular da respectiva competência tributária e, portanto, instituidora do tributo, e também da observância às limitações temporais relativas à anterioridade, constantes do art. 150, III, alíneas “b” e “c” da CF/88.

Muito antes, ainda na época em que a Lei Complementar nº 157/16 tramitava como Projeto no Senado e na Câmara dos Deputados, já havia dúvidas acerca do tema. Uma delas, refere-se à possibilidade de o fato em questão estar abrangido no campo de incidência do ISS.

A Constituição Federal, em seu art. 156, dispõe que "Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar".

O próprio art. 156 permite identificar os elementos necessários para a legítima exigência do imposto, no caso, (i) a definição do serviço em lei complementar federal, (ii) a edição de lei municipal, decorrência lógica da própria titularidade da competência tributária e, (iii) a não tributação dos fatos abrangidos na competência tributária dos Estados (comunicação e transporte interestadual e intermunicipal).

Além disso, o que se pretende tributar pelo ISS deve amoldar-se ao conceito de serviço próprio do direito privado[5]. E é exatamente em relação a esse aspecto que está a dúvida: disponibilizar conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet é serviço?

Desde muito, a doutrina tem conceituado serviço como um fazer humano.

Como já escreveu Aires F. Barreto, “o aspecto material da hipótese de incidência do ISS é a conduta humana (prestação de serviço) consistente em desenvolver um esforço humano a adimplir uma obrigação de fazer[6].

O Poder Judiciário, por sua vez, também já adotou tal conceito.

O Supremo Tribunal Federal afastou a incidência do ISS quando caracterizada obrigação de dar, tanto de forma exclusiva como ocorre na locação de bens móveis[7], quanto nas hipóteses em que, mesmo também havendo obrigações de fazer, a obrigação de dar assume caráter preponderante na relação contratual[8].

Por ocasião do julgamento do RE 592.905[9], que tratou da tributação das operações de arrendamento mercantil pelo ISS, o STF entendeu que há incidência do imposto exatamente porque o referido negócio jurídico tinha em sua essência uma obrigação de fazer.

Volta-se então ao questionamento anterior, agora com um outro enfoque: a disponibilização de conteúdos pela internet constitui um fazer?

É certo que o fato previsto no item 1.09 da Lista de Serviços demanda a atuação de pessoas. Também é certo que a própria Netflix, por exemplo, faz referência à expressão serviço em seus Termos de Uso[10].

Realmente há uma associação, intencional ou não, entre a veiculação de conteúdos por streaming com a prestação de serviços.

Contudo, somente a identificação da real natureza do fato que se pretende tributar é que permitirá afirmar se há a incidência do imposto.

E no caso, no que diz respeito à disponibilização de conteúdos pela internet, não há obrigação de fazer. O usuário contrata a entrega de determinado conteúdo, ainda que sobre esse não tenha ingerência quanto à extensão daquilo que será ofertado. O contratado, portanto, assume perante o contratante uma verdadeira obrigação de dar, de entregar um bem imaterial sob certas condições.

As próprias expressões empregadas pela Lei Complementar nº 157/16 na redação do item 1.09 - disponibilizar e cessão - indicam que não há obrigação de fazer.

Aliás, em outros casos, a utilização da expressão cessão para referenciar serviços já ensejou controvérsias. Há discussões judiciais sobre a “Cessão de andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas de uso temporário”, tida por alguns Tribunais como locação ou a “Cessão de direito de uso de marcas e de sinais de propaganda”, em que se tem sustentado não haver, em regra, qualquer espécie de fazer[11].

É certo que cessão de uso de marca nada tem a ver com andaimes, e esses, muito menos com streaming. A questão é outra: ceder, entregar ou disponibilizar, independentemente do que seja, não traduz haver serviço.

A defesa de que a disponibilização de conteúdos constitui um fazer coloca um problema adicional, que é a possibilidade de seu enquadramento no conceito de comunicação e, por consequência, sua sujeição ao ICMS. Isso significaria o afastamento da tributação pelo ISS em razão de expressa previsão contida no inciso III do art. 156 da CF/88.

De todo modo, tudo leva a crer que o tema aqui tratado passará a integrar a lista de divergências entre a Fazenda e os contribuintes. E isso, não apenas no que diz respeito à caracterização como serviço, mas também por outras questões, como a base de cálculo nos pagamentos feitos em moeda estrangeira e a definição de qual Município é competente para exigir o imposto.

Por agora, fica a concordância de que é necessário evitar que essas novas tecnologias passem longe de qualquer tributação. A afirmação de que tudo que nasce na internet é livre e assim deve ser tratado não convence.

Por outro lado, fica também a percepção de que o Sistema Tributário vigente está alguns passos atrás dessa nova realidade que a internet criou. E é por isso que a tentativa de tributar esses ditos serviços por meio do ISS certamente encontrará dificuldade.


Notas e Referências:

[1] https://www.tecmundo.com.br/netflix/75377-impressionantes-numeros-netflix.htm

[2] http://www.valor.com.br/empresas/3522004/lucro-da-netflix-sobe-quase-20-vezes-para-us-53-milhoes

[3] https://www.tecmundo.com.br/netflix/112700-netflix-cresce-rapido-brasil-ganha-dinheiro-sbt.htm

[4] AI 590329 AgR, Relator Min. EROS GRAU, Julgamento:  08/08/2006. Em igual sentido: RE 361829; RE 464844 AgR; RE 361829.

[5] RE 602295 AgR, Min. ROBERTO BARROSO. Julgamento: 07/04/2015. Primeira Turma

[6] BARRETO, Aires F. Curso de Direito Tributário Municipal. Saraiva. 2009, p. 320

[7] STF, RE 116.121 e Súmula Vinculante n. 31.

[8] Serviço de composição gráfica com fornecimento de mercadoria. AI 803296 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Julgamento:  09/04/2013. Primeira Turma.

[9] O STF entendeu que no leasing prepondera o caráter de financiamento, que por constituir um fazer, possibilita a incidência do ISS. RE 592905, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Julgamento:  02/12/2009. Repercussão Geral. Tribunal Pleno.

[10] https://help.netflix.com/legal/termsofuse?locale=pt&docType=termsofuse

[11] A Segunda Turma do STF no julgamento do Ag.Reg. na Reclamação 8.623 (realizado no ano de 2011), ao decidir que no caso da cessão de uso de marcas não se aplicava às decisões referentes à locação de bens móveis, fez menção - ao menos no acordão - da possibilidade de sua tributação pelo imposto, por se tratar de serviço autônomo expressamente previsto na Lista de Serviços. Posteriormente, a Min. Carmém Lúcia, ao apreciar o RE 925.038, em julgamento monocrático realizado em 30/03/16, decidiu que não há incidência de ISS no caso, o que foi mantido posteriormente pela Segunda Turma..


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