Tramitam no Judiciário brasileiro demandas de índole cível, penal e trabalhista cujos pedidos, principais e/ou secundários, dizem respeito ao pagamento de valores a título de indenização por danos morais coletivos, multas de natureza cível e penal, recuperação total ou parcial do produto ou do proveito econômico de infrações penais, e astreintes fixadas para a garantia do cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer. Nesse sentido, destacam-se as ações civis públicas e os termos de ajustamento de conduta – TAC’s regulados pela Lei nº 7.347/85; as ações de responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, do artigo 21 da Lei nº 12.846/13; os acordos de colaboração premiada, firmados no âmbito da persecução penal, nos termos dos artigos 3º, I, 3º-A e 4º, IV, da lei nº 12.850/13; e, por fim, as transações penais nos procedimentos dos Juizados Especial Criminais conforme o artigo 76 da Lei nº 9.099/95.
No que diz respeito à ação civil pública, nos termos do art. 3º da Lei nº 7.347/85[1], esta tem “por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.” Busca a ação civil pública inibir, cessar e/ou reparar a lesão a direitos difusos, que são transindividuais, de natureza indivisível e pertencentes a pessoas indeterminadas, e a direitos coletivos “stricto sensu”, que são transindividuais, de natureza indivisível e pertencentes a grupo, categoria ou classe (art. 81, § único, I e II, da Lei nº 8.078/90). Os legitimados previstos no artigo 5º da Lei nº 7.347/85 e no artigo 82 da Lei nº 8.078/90, com destaque para os diversos ramos do Ministério Público, as associações e os sindicatos, agem como legitimados autônomos para a condução do processo e como legitimados extraordinários justamente em razão da transindividualidade de direitos como a proteção do meio ambiente, incluindo o do trabalho, do patrimônio histórico-cultural e das ordens econômica e urbanística. Já o artigo 21 da Lei nº 12.846/13 estabelece que os atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira, praticados por pessoas jurídicas serão apurados observando-se o rito da Lei da Ação Civil Pública, justamente em razão do fato de que a tutela da Administração Pública a todos interessa, sendo um direito difuso.
Quanto à destinação dos valores arrecadados nas ações civis públicas ou na execução judicial de termos de ajustamento de conduta, tais quais as indenizações por danos morais coletivos e as astreintes incidentes em razão de descumprimento de obrigações de fazer ou não fazer, o artigo 13 da Lei nº 7.347/85[2] estabelece que “havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados”. Assim, foi criado o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) pela Lei 9.008/95 que é complementada pelo Decreto Federal nº 1.306.
A lei instituidora do FDD abrange basicamente os valores oriundos das ações civis públicas de índole cível, mas nada diz acerca, por exemplo, das ações civis públicas ajuizadas no âmbito da Justiça do Trabalho. Na área trabalhista, as condenações em pecúnia são costumeiramente revertidas para o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, este que é um fundo contábil de natureza financeira criado pela Lei nº 7.998/90 com o objetivo de custear o programa de seguro-desemprego, o pagamento do abono salarial e o financiamento de programas de educação profissional e tecnológica e de desenvolvimento econômico (art. 10 da Lei nº 7.998/90).
Nas transações penais que ocorrem no âmbito dos Juizados Especiais Criminais Estaduais e Federais, nos termos do artigo 76 da Lei 9.099/95[3], obedecidas as condições do § 2º do mesmo artigo, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou de multa. Sendo aceita a proposta pelo autor da infração e o seu defensor, ela será submetida ao juiz que aplicará a pena restritiva de direitos ou a multa, algo que não importará em reincidência (§§ 3º e 4º do art. 76). Tais multas oriundas da transação penal podem ser destinadas para órgãos e instituições indicadas pelo Ministério Público em sua proposta de transação penal oferecida ao autor infração penal de menor potencial ofensivo, observando-se, no que couber, a Resolução nº 154/12 do CNJ.
No âmbito das ações de responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, o art. 24 da Lei nº 12.846/13[4] prevê que “a multa e o perdimento de bens, direitos ou valores aplicados com fundamento nesta Lei serão destinados preferencialmente aos órgãos ou entidades públicas lesadas.” Já o artigo 4º, IV, da Lei nº 12.850/13[5] prevê que da colaboração premiada pode advir o resultado da “(…) recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa”.
É certo que a realização de obras ou de serviços públicos é missão da Administração Pública Direta e Indireta e os serviços de utilidade pública são desempenhados, por exemplo, por hospitais, creches, asilos, casas de recuperação de dependentes químicos, casas de acolhimento de menores e pessoas em situação de rua. No entanto, é cediço que os valores oriundos de condenações em ações civis públicas, de termos de ajustamento de conduta, de transações penais, de ações processadas nos termos da Lei nº 12.846/13 e as restituições de valores oriundos dos acordos de colaboração premiada devem, por mandamento legal, reverterem em prol da reconstituição dos bens lesados, preferencialmente em favor das instituições públicas vítimas de ilícitos civis ou penais ou, no geral, em benefício da sociedade prejudicada pelo ato lesivo.
Nas localidades onde ocorrem as lesões difusas, coletivas e decorrentes de ação criminosa, há a possibilidade de se realizar obras e serviços públicos ou de utilidade pública em benefício da comunidade lesada. São exemplos a construção de uma ala de um hospital, com aquisição de leitos de UTI’s, respiradores, medicamentos e ambulâncias; a construção e a ampliação da estrutura de um centro de internação de menores infratores; a aquisição de viaturas para as polícias civis e militares, bem como a melhoria da estrutura das unidades policiais; a aquisição de materiais para o resgate e salvamento a cargo de bombeiros militares e dos serviços atendimento móvel de urgência – SAMU.
É importantíssimo destacar que, conforme o artigo 13 da Lei nº 7.347/85, os valores arrecadados pelas ações civis públicas devem reverter para a reconstituição dos bens lesados. Não obstante, verifica-se que esses valores, quando revertidos ao FDD ou outros fundos análogos, no mais das vezes, não revertem especificamente para aquela comunidade lesada onde ocorreram as práticas ilícitas ou esse retorno demora longo período para ocorrer, situação que se afigura por demais injusta e que não atende ao escopo da lei.
No caso trabalhista, a questão é ainda mais delicada, visto que o Fundo de Amparo ao Trabalhador nem mesmo atende aos requisitos do artigo 13 da LACP para ser destinatário dos valores oriundos de ações civis públicas e dos termos de ajustamento de conduta, eis que ele é um fundo meramente contábil e de natureza financeira e governamental. O FAT também é utilizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES para a concessão de linhas de financiamento de projeto de empresas, não havendo distinção se elas são ou não são violadoras de direitos trabalhistas, o que configura um evidente contrassenso. Ao direcionar recursos para o FAT, fatalmente não haverá retorno direto para a localidade lesada.
Nesse sentido, deve a atuação jurisdicional dar cumprimento ao objetivo da lei da forma mais específica possível: reconstituir os bens lesados na específica comunidade em que ocorreu o ato ilícito ou, no mínimo, reverter os valores em benefício dessa mesma localidade. E, preferencialmente, esse desiderato deve contar com a participação do autor das ações civis, destacando-se aqui a proeminente atuação do Ministério Público. Muito embora entenda-se aqui que o magistrado, nas ações de índole cível, não está adstrito à destinação dos valores dos danos morais coletivos e das astreintes requerida na petição inicial, é importantíssimo que os legitimados para a propositura das ações sejam ouvidos e colaborem para a reversão dos valores especificamente para a comunidade lesada, já deixando “espaço” para a destinação em tal sentido na própria petição inicial.
No caso das transações penais e dos acordos de colaboração premiada que ocorrem em procedimentos de índole penal, entende-se que o juiz, em sua decisão homologatória, não pode modificar a destinação dos valores proposta pelo Ministério Público ou acordada no pacto de colaboração premiada. Mas seria muito importante que o MP, nas situações em que isso se afigurar possível, pugnasse pela destinação dos valores para a consecução de específica obra pública e/ou aquisição e entrega de bens a entidades e órgãos públicos ou privados de interesse público especificamente em favor da comunidade onde ocorreu o ilícito penal. Dá-se como exemplo a aplicação dos recursos obtidos em colaboração premiada no combate ao crime organizado e na prevenção e na repressão de tráfico de drogas ilícitas, destinando-os aos órgãos públicos encarregados à repressão e investigação de tais ilícitos.[6]
Quanto à escolha do beneficiário dos recursos oriundos de ações judiciais, entende-se que, desde que seja um órgão ou ente público ligado à Administração Pública Direta ou Indireta dotada de mecanismos de controle e de fiscalização, sendo notória, urgente e/ou relevante a necessidade da obra e da aquisição e entrega de bens para a realização do serviço público, o juiz, em decisão fundamentada, poderá destinar, por exemplo, os valores a título de danos morais coletivos e astreintes para específico órgão ou o ente público.
Recentemente, foi noticiado no sítio eletrônico do TRT da 3ª Região[7] que a 1ª Vara de Ituiutaba/MG, ouvido o Ministério Público do Trabalho, destinou diretamente à conta bancária do Fundo Municipal de Saúde do Município de Prata/MG o valor de R$231.463,64 para ações destinadas ao aparelhamento de hospitais para o combate ao novo coronavírus. A destinação será fiscalizada pelo MPT.
Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG editou a Portaria 952/2020[8] que destina os recursos provenientes de prestações pecuniárias para a aquisição de materiais, equipamentos médicos e serviços para o combate à pandemia de COVID-19. A quantia será gerida pelo supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) em Minas Gerais e pelo superintendente de Saúde do TJMG.
Na jurisdição da cidade Pirapora/MG, o Juízo da Vara da Infância e da Juventude da comarca apresentou à Justiça do Trabalho da localidade projetos de construção de uma quadra poliesportiva, de salas de aula e ampliação da estrutura em geral no Centro Socioeducativo de Pirapora/MG responsável por ressocializar menores infratores[9]. A Justiça do Trabalho destinou recursos na ordem de sessenta mil reais oriundos de ações civis públicas trabalhistas[10]. A fiscalização da correta destinação dos valores ficou a cargo do Ministério Público do Trabalho e, subsidiariamente, do Ministério Público Estadual, sendo que os recursos foram encaminhados via Conselho de Segurança Pública – CONSEP, mais um aliado na fiscalização do emprego dos recursos públicos. Esse é um exemplo de cooperação judiciária entre dois ramos distintos do Judiciário em prol do interesse público local.
Em se tratando de entidades privadas sem fins lucrativos e que desempenham atividade de evidente interesse público, a publicação de um edital para a seleção de projetos pelo Poder Judiciário, ouvido o Ministério Público ou outro titular da ação, é uma excelente opção para a destinação de recursos. Dá-se como exemplo a publicação de editais pela Justiça Federal, Seção Judiciária de Minas Gerais, para a seleção de entidades e projetos para a destinação de valores[11]. A escolha é impessoal e há a seleção dos melhores projetos e de entidades sólidas que bem prestarão contas do emprego dos recursos.
Por fim, é de se destacar a salutar atuação do Poder Judiciário na destinação de recursos para combate à pandemia do novo coronavírus. Conforme dados extraídos do sítio eletrônico de notícias jurídicas “Conjur”[12], algo em torno de R$200 milhões de reais foi destinado entre março e abril de 2.020 para o combate à pandemia, com destaque à Justiça do Trabalho, que destinou o valor de R$111,7 milhões, seguida da Justiça Estadual, com seus R$70,2 milhões, e da Justiça Federal, que destinou R$16,8 milhões. Os recursos foram destinados, principalmente, para equipar a estrutura física e humana hospitalar voltada ao combate da pandemia.
Conclui-se, assim, que observadas todas as prescrições legais, a peculiaridade de cada matéria tratada nos autos e sendo garantida a fiscalização da correta destinação dos recursos, os valores oriundos dos feitos judiciais citados em linhas anteriores devem ser revertidos diretamente em prol da localidade que sofreu os imediatos efeitos dos atos ilícitos. E essa destinação poderá vir em forma de específica obra pública e de aquisição e entrega de bens a entidades e órgãos públicos ou privados de interesse público especificamente em favor da comunidade onde ocorreu o ilícito civil ou penal. E essa destinação passa por uma atuação proativa e cuidadosa de magistrados e dos autores das ações que devem ser sensíveis à realidade e às necessidades das localidades ondem atuam.
Notas e Referências
[1] BRASIL. Lei nº 7.347/85, de 24 de julho de 1985. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347compilada.htm> Acesso em: 21 ago. 2020.
[2] IDEM.
[3] BRASIL. Lei nº 9.099/95, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm > Acesso em: 21 ago. 2020.
[4] BRASIL. Lei nº 12.846/13, de 1º de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm> Acesso em: 21 ago. 2020.
[5] BRASIL. Lei nº 12.850/13, de 02 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm> Acesso em: 21 ago. 2020.
[6] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Chamamento Público para destinação de valores recuperados em acordo de delação premiada. Disponível em <https://portal.trf1.jus.br/dspace/handle/123/219871>. Acesso em: 21 ago. 2020.
[7] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. NJ – Vara do Trabalho de Ituiutaba e MPT transferem mais de R$230 mil para combate à pandemia no Município de Prata. Publicado em 31 jul. 2020. Disponível em <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/nj-vara-do-trabalho-de-ituiutaba-e-mpt-transferem-mais-de-r-230-mil-para-combate-a-pandemia-no-municipio-do-prata#:~:text=NJ%20%2D%20Vara%20do%20Trabalho%20de,Munic%C3%ADpio%20do%20Prata%20%E2%80%94%20TRT%2DMG >. Acesso em: 21 ago. 2020.
[8] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Judiciário destina recursos para combate à pandemia. Publicado em 23 mar. 2020. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/judiciario-destina-recursos-para-combate-a-pandemia-8A80BCE570D098A201710956BE24591E.htm#.X0CiL8hKg2w >. Acesso em: 21 ago. 2020.
[9] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Centro Socioeducativo receberá recursos. Conversa entre magistrados de Pirapora motivou destinação em decisão. Publicado em 17 ago. 2018. Disponível em <https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/centro-socioeducativo-de-pirapora-recebera-recursos.htm#.X0CHQ8hKg2x>. Acesso em: 21 ago. 2020.
[10] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Recursos para equipar Centro Socioeducativo de Pirapora. Justiça do Trabalho destina R$40 mil para a construção de quadra e salas. Publicado em 17 ago. 2018. Disponível em <https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/justica-do-trabalho-destina-recursos-para-centro-socioeducativo.htm#!>. Acesso em: 21 ago. 2020.
[11] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Seção Judiciária de Minas Gerais. Destaques. Seleção de Entidades e Projetos. Disponível em <https://portal.trf1.jus.br/sjmg/institucional/subsecoes-judiciarias/subsecao-judiciaria-de-montes-claros/destaques/destaques.htm>. Acesso em: 21 ago. 2020.
[12] Justiça destina mais de R$200 milhões ao combate do coronavírus. Publicado em 08 abr. 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-abr-08/justica-destina-200-milhoes-combate-coronavirus>. Acesso em 21 ago. 2020.
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