A Desmedida que Equipara o Estado ao Criminoso

05/01/2017

Por Jeffrey Chiquini – 05/01/2017

Muitos as apoiam, mas poucos as conhecem. As dez medidas “contra a corrupção” são ovacionadas pela maioria do povo brasileiro. Mas isso deve ser levado em consideração para que sejam aprovadas?

Minha intenção neste breve texto é analisar a medida número 9 “contra a corrupção” do MPF e demonstrar sua inconveniência e inconstitucionalidade.

A medida 9 prevê a prisão extraordinária para "permitir a identificação e a localização ou assegurar a devolução do produto e proveito do crime ou seu equivalente, ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado ou acusado, quando as medidas cautelares reais forem ineficazes ou insuficientes ou enquanto estiverem sendo implementadas".

É automática a equiparação que esta medida faz entre o Estado e o Criminoso. Esta medida admitiria que o Estado, assim como o criminoso, se utilizasse de artimanhas, constrangimento e coação para satisfazer sua pretensão.

Enquanto o criminoso prende a vítima em um cativeiro para obter o resgate, a medida 9 “conta a corrupção” deseja que o Estado faça o mesmo, mas sem a possibilidade de responder e ser punido pelo crime de extorsão mediante sequestro, previsto no art. 159 do Código Penal[1], por exemplo.

Prender para forçar alguém a confessar um crime, é o mesmo que se admitir a tortura para obter a confissão (tortura-confissão, prevista no art. 1º, inciso I, alínea “a”, da lei 9.455/97). O problema é que a vedação à tortura é um direito fundamental absoluto, previsto na constituição da república[2], não havendo como relativizá-lo. Bingo!

Ademais, a simples ameaça de prisão para obter algum valor (ilícito ou não) configura o crime de extorsão, do art. 158 do Código Penal[3], ou como queiram, configura – se a pretensão for legítima – o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no art. 345, também do Código Penal[4].

Evidente, então, que a desmedida 9 do MPF quer se amparar em uma alteração legislativa para alcançar aparente legitimidade à esta nova modalidade de prisão, utilizando-se da legislação como meio de dissimular a ilicitude da atuação do Estado na persecução penal.

Acontece que o Estado é o último defensor da legalidade (em sentido amplo). Caso contrário não precisaríamos de Estado, ou poderíamos, então, ter continuado com as leis de Talião, que eram, sem dúvidas, mais céleres e eficazes que as medidas “contra a corrupção”, já que estes são os seus maiores desejos.

Porém, e felizmente, sabemos que proposta como esta não é admitida em nosso ordenamento, pois que a validade de uma lei não depende apenas da sua conformação formal com a Constituição, exige-se também sua conformação material com a norma suprema. E é neste ponto que peca a medida 9 do MPF. Por isso flagrantemente inconstitucional.

Além do que, a finalidade última do Estado é a proteção dos cidadãos contra abusos e arbitrariedades na busca de satisfazer pretensões. O Estado foi por nós criado para limitar pretensões com o fim de proteger direitos mínimos e essenciais dos cidadãos, como a liberdade o é.

Porém não vejo diferenças em ameaçar alguém com uma arma na cabeça e ameaçar jogar atrás das grades para satisfazer alguma pretensão, ainda que aparentemente legítima. Ambos os casos configuram tortura psicológica.

Mas como dito, o Estado é o defensor das garantias e direitos fundamentais dos cidadãos, e o que o difere do criminoso é sua forma de atuação, sendo este o motivo pelo qual aceitamos sua criação e existência. Por isso jamais se admitirá que o Estado se utilize da máxima “os fins justificam os meios”, como a medida 9 do MPF o quer, pois esta motivação retira do Estado sua condição de último garantidor, e o equipara ao próprio criminoso. Por mais esse motivo é que a medida 9 “contra a corrupção” é absurda e jamais poderá integrar nosso ordenamento.

A medida número 9 do MPF, além de violar inúmeros direitos fundamentais, viola ainda, e principalmente, o próprio fundamento da República, a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição da República.

Prender alguém na forma desejada pelo MPF retira do Estado sua condição de defensor dos direitos e garantias dos cidadãos e o coloca na contramão dos documentos internacionais, violando, por exemplo, o direito ao silêncio e a garantia de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo (prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, tão invocada pelo MPF).

O Estado obviamente detém o poder na persecução penal, mas este poder possui limites, e no Estado Democrático de Direito este limite advém da própria Constituição da República - que é a exteriorização da vontade do povo - e também de documentos internacionais que o país é signatário.

A Constituição da República é a lei maior do Estado de Direito e medida última contra maioria na proteção dos direitos e garantias fundamentais dos cidadão.

Ou seja, gostemos ou não, vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde a dignidade da pessoa humana, os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, a moralidade a e impessoalidade das instituições públicas é a prima ratio do ordenamento jurídico.

Como detentores do poder devemos exigir que os direitos e garantias fundamentais sejam respeitados e aplicados, sob pena de estarmos retrocedendo à era do "olho por olho e dente por dente", onde não havia limitações ao poder persecutório e punitivo, ou melhor, limitação havia, mas era apenas aparente.

Legitimar as medidas "criadas" pelo MPF é sacrificar direitos e garantias que arduamente até aqui conquistamos; é sacrificar o próprio Estado de Direito.

Com esse Estado não precisaríamos mais de Estado.


Notas e Referências:

[1] Art. 159 do CP - Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate. Pena - reclusão, de oito a quinze anos.

[2] Art. 5º, inciso III, da CF - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

[3] Art. 158 do CP - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

[4] Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.


jeffrey-chiquini. Jeffrey Chiquini é Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Professor de direito penal da Faculdade Opet. Professor de processo penal da Escola da Magistratura Federal (ESMAFE) e professor de direito penal e processo penal em cursos preparatórios para concursos. .

Imagem Ilustrativa do Post: Anti-G8 Irish guy VS riot squad_MMV // Foto de: D. Sinclair Terrasidius // Com alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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