A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas Relações de Consumo e a Técnica Processual para a Tutela do Direito - Por Leticia Arenal

06/03/2018

Coordenador Gilberto Bruschi

A desconsideração da personalidade jurídica é instituto que vem sendo utilizado com o escopo de resguardar os direitos daqueles que são prejudicados pelos atos ilegítimos praticados pelos indivíduos que integram a pessoa jurídica e que se escondem em seu manto, acobertados pelo princípio da autonomia patrimonial. 

O legislador brasileiro, pouco a pouco, foi incorporando na cultura brasileira a teoria da disregard doctrine, nascida nos Estados Unidos e desenvolvida anos depois na Inglaterra, percebendo que o princípio jurídico da autonomia patrimonial não poderia representar um obstáculo para a realização, pelo próprio Estado-Juiz, da perfeita e boa justiça. 

Até hoje, a teoria só tem previsão nas legislações de direito material, definindo as hipóteses de seu cabimento a fim de que o sócio ou o administrador responda, com seu patrimônio, pela obrigação contraída e inadimplida pela pessoa jurídica. 

Por sua vez, o novo Código de Processo Civil trouxe um Capítulo destinado a tratar do incidente para a desconsideração da personalidade jurídica, regulamentando a instauração, processamento e julgamento do pedido. 

Assim como a regulamentação das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica incentiva o desenvolvimento das relações comerciais, assegurando à pessoa jurídica personalidade e patrimônios próprios, distintos de seus membros, não poderia o legislador desamparar os credores frente aos possíveis atos ilícitos cometidos sob a proteção dos princípios que regem a pessoa jurídica. 

Nesse contexto, a previsão contida no artigo 50 do Código Civil é interpretada como regra geral, possibilitando a extração das premissas basilares do instituto, para sua adequada aplicação. Em assim sendo, poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”. 

A previsão legislativa das hipóteses em que a desconsideração é possível traz segurança aos seus sócios e à própria pessoa jurídica, já que, não configurado abuso ou fraude, inexistirá fundamento para a aplicação desta doutrina. 

A legislação consumerista, contudo, ao tratar sobre o assunto vai de encontro aos pilares formadores do instituto. É o que se depreende da análise do artigo 28 da Lei 8.078/1990, principalmente do quanto disposto em seu § 5°: “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. 

Sempre houve debate sobre a efetiva possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica para atingir o bem de seus sócios, diante do consagrado princípio da autonomia. Por outro lado, o forte argumento no sentido de coibir a fraude e consequentemente trazer mais segurança às relações comerciais, fez com que a doutrina e jurisprudência abarcassem cada vez mais a teoria. 

O CDC, no entanto, ampliou o leque de possibilidades para a incidência da desconsideração, prevendo-a para as hipóteses em que a personalidade da pessoa jurídica “for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Com isso, o não cumprimento de uma obrigação pela pessoa jurídica, somado ao efetivo prejuízo do consumidor, possibilitaria a desconsideração da personalidade jurídica sem haver a necessidade de estar configurado abuso do poder ou fraude. 

Percebe-se, todavia, que, se assim o fosse, todos os demais princípios que acobertam a pessoa jurídica restariam violados, inclusive princípios constitucionais, além da própria legislação material que a regula. 

Entendemos, acompanhando GENACÉIA DA SILVA ALBERTON, que, nesse ponto, a legislação consumerista deverá ser aplicada com cautela. 

A mera existência de prejuízo patrimonial do consumidor não é suficiente para a desconsideração. O texto deixou o significado em aberto na medida em que assevera que a pessoa jurídica poderá também ser desconsiderada quando sua personalidade ‘de alguma forma’ for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados a consumidores. Leia-se, quando a personalidade jurídica for óbice ao ressarcimento justo do consumidor. 

Verifica-se pelos fundamentos da desconsideração, que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica é desprezada para coibição de fraudes ou abuso de direito. O art. 28 do Código do Consumidor foi mais além, admitindo outras situações que parecem ter suporte em outras construções doutrinárias como a teoria ultra vires e a teoria da aparência. É a proteção da boa-fé que se revela preponderante na defesa do consumidor, como princípio norteador de todo o sistema.[1] 

A interpretação correta, para evitar afronta às demais normas e princípios vigentes, é no sentido de que as hipóteses previstas no caput do art. 28, CDC, não são taxativas, razão pela qual o § 5° traz apenas uma das possibilidades de incidência da desconsideração, situação em que, além de o consumidor ter sofrido prejuízo, pressupõe-se a existência de ato ilegítimo que beneficie o controlador. 

Entendemos, a fim de preservar a segurança jurídica, que o § 5° deve ser analisado em conjunto com os demais dispositivos legais que tratam sobre o assunto, partindo da premissa de que a desconsideração da personalidade jurídica somente será possível quando comprovado ato ilícito cometido pelo sócio ou administrador da sociedade. Posicionamento contrário seria uma afronta ao próprio instituto. 

Em relação ao procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica, destaca-se que o novo incidente previsto na legislação processual civil poderá ser instaurado a pedido da parte (parece-nos possível que seja requerida pelo litisconsorte) ou do Ministério Publico. No que tange ao Ministério Público, poderá requerer a sua instauração “quando lhe couber intervir no processo”, não se confundindo esta atuação, enquanto interveniente do processo, com a legitimidade ativa que detém, vez que a sua legitimidade para o pedido de desconsideração decorrerá de sua situação como parte interessada.[2] De toda sorte, a leitura do artigo 133 do CPC/15 precisa ser conjugada com a do artigo 178 da mesma lei, que prevê as hipóteses em que o Órgão deverá intervir como fiscal da ordem jurídica, restrito aos processos que envolvem interesse público ou social, interesse de incapaz e litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.

O que antes era apenas construção jurisprudencial e doutrinária também ganha destaque: a possibilidade de desconsideração visando à extensão da responsabilidade patrimonial, a fim de alcançar os bens da sociedade para garantir o pagamento das dívidas do sócio, figura denominada desconsideração inversa da personalidade jurídica, aplicando-se, no que couber, os mesmos pressupostos do instituto previstos nas legislações de direito material.

O incidente poderá ser instaurado mediante o preenchimento dos “pressupostos legais específicos” para a desconsideração da personalidade jurídica. Tais pressupostos podem ser compreendidos como os requisitos previstos na pluralidade de legislações de direito material que tratam sobre o assunto, na medida em que a menção, na lei, aos pressupostos de existência e validade do processo seria uma redundância e estes também não são ‘específicos’ do mecanismo em questão.

É possível que o incidente seja instaurado em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial, inclusive perante os Tribunais, seja nos processos de competência originária, seja em grau de recurso, devendo seu processamento ser realizado pelo juízo de primeira instância, viabilizando, inclusive, a instrução probatória assegurada às partes.[3]. Apenas poderá ser dispensada a sua instauração se o pedido de desconsideração da personalidade jurídica for deduzido na própria petição inicial, procedendo à citação direta do sócio ou da pessoa jurídica.

O CPC/15 considera terceiro “quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte” (art. 674, §2°, III). Nesses termos, o sócio ou pessoa jurídica, depois de desconsiderada a personalidade jurídica, passa a ser parte no processo, na medida em que somente poderá opor embargos de terceiro - já que figurará nessa qualidade - aquele que não fizer parte do incidente de desconsideração quando da constrição de seus bens.

A fim de possibilitar a integração da pessoa atingida no polo passivo da ação, instaurado o incidente, o processo principal ficará suspenso até que a questão seja apreciada pelo competente juízo, salvo se o pedido de desconsideração for formulado na petição inicial.

Estando em termos o pedido de instauração do incidente, o sócio ou a pessoa jurídica deverá ser citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias. A imprescindibilidade do contraditório é respeito à garantia constitucional e andou bem o legislador nesse sentido.

É importante ressaltar que a redação da norma como concebida – “sócio ou pessoa jurídica” – ampliou a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, antes entendida como restrita ao sócio, permitindo, então, que outra pessoa jurídica do mesmo grupo econômico seja atingida, desde que preenchidos os pressupostos específicos previstos em lei. O texto normativo também permite que a desconsideração recaia sobre outras pessoas, como os administradores da empresa.[4]

A decisão que resolve o incidente, em que pese sua eminente natureza de sentença, terá feição de decisão interlocutória e, por isso, poderá ser impugnada através do recurso de agravo de instrumento, consoante expressamente previsto no rol do artigo 1.015 do CPC/15.

No caso de a competência originária da ação pertencer ao Tribunal, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deverá lá ser proposto, cabendo ao relator julgar o pedido através de decisão monocrática, em face da qual caberá agravo interno.[5]

As disposições acerca do incidente de desconsideração da personalidade jurídica também são aplicáveis às ações em trâmite perante os Juizados Especiais, conforme previsão do artigo 1.062, do CPC. Entendemos que a sua evolução foi ainda maior com tal amparo legal.

Questão que surge para reflexão refere-se ao cabimento do recurso de agravo de instrumento em face da decisão que julga o incidente de desconsideração no Juizado Especial Cível, já que a lei 9.099/95 não prevê expressamente tal recurso em face das decisões interlocutórias proferidas nos processos de sua competência.

Diante dos princípios da celeridade, da simplicidade e da economia processual, muitos doutrinadores sustentam que as decisões interlocutórias proferidas nos Juizados Especiais são irrecorríveis, inclusive em obediência ao princípio da taxatividade, vez que inexistente previsão legal acerca do cabimento do agravo de instrumento. Considerando, por outro lado, que defendemos que a decisão que julga o pedido de desconsideração da personalidade jurídica tem conteúdo de mérito, causando evidente prejuízo ao sócio ou à pessoa jurídica, que terá seu patrimônio afetado, não podemos considerar a sua irrecorribilidade quando a ação tramitar perante os juizados especiais cíveis, sendo cabível, assim – quando o pedido não for deduzido na própria petição inicial -, a interposição de agravo de instrumento, a ser julgado pelo competente Colégio Recursal.

Posicionamento contrário afrontaria o princípio do devido processo legal, do contraditório em seu sentido amplo e até mesmo a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. 

No que tange à qualidade da decisão proferida no incidente e aos seus limites subjetivos, a coisa julgada somente alcançará as partes do processo: o credor, a pessoa jurídica e o sócio ou outra pessoa que venha a sofrer a invasão no seu patrimônio em decorrência da comprovação da prática do ato ilegítimo. 

Haverá apenas uma hipótese em que os efeitos da decisão que desconsidera a personalidade jurídica serão estendidos a terceiros para prejudicá-los. Isso ocorrerá quando for acolhido o pedido de desconsideração que torna ineficaz, em relação ao requerente, a alienação ou oneração de bens havida em fraude de execução, possibilitando ao credor a expropriação de referidos bens para satisfação da execução. Nesse sentido, acolhida a pretensão de desconsideração, a alienação ou oneração de bens ocorrida desde a respectiva citação das pessoas atingidas (art. 792, §3°, CPC/2015) será ineficaz em relação ao requerente. 

O CPC/15 é omisso no que diz respeito aos eventuais ônus sucumbenciais decorrentes do não acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica na resolução do incidente. Considerando o custo tido pelo réu para o ingresso no processo, visando defender-se da pretensão de invasão no seu patrimônio, parece razoável que o requerente proceda ao reembolso das custas processuais e arque com os honorários de sucumbência. 

A instauração do incidente traduz uma nova relação jurídica processual, assegurando ao requerido, com sua citação, o direito à defesa e à produção de provas, fato que corrobora a tese de que o não acolhimento do pedido no incidente, através de decisão com eminente natureza de sentença, acarretará o pagamento dos ônus sucumbenciais pela parte que o requereu.[6]

 

BIBLIOGRAGIA:

ALBERTON, Genacéia da Silva. A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor: aspectos processuais. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do sul. Porto Alegre: Ajuris, n. 54, mar. 1992. 

ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil. In: ALVIM, Thereza Arruda (et. al. ). O Novo Código de Processo Civil Brasileiro – Estudos Dirigidos: Sistematização e Procedimentos. Rio de Janeiro: Forense, 2015. 

BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 

COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1985. 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Desconsideração da personalidade jurídica, fraude e ônus da prova. Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, v. II. 

REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 410, dez. 1969.

[1] A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor: aspectos processuais. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do sul. Porto Alegre: Ajuris, n. 54, mar. 1992.

[2] ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil. In: ALVIM, Thereza Arruda (et. al. ). O Novo Código de Processo Civil Brasileiro – Estudos Dirigidos: Sistematização e Procedimentos. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 211.

[3] ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Idem. p. 212 e 213.

[4] ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Idem. p. 214.

[5] ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Idem. p. 215.

[6] ARENAL E SILVA, Leticia; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Idem. p. 218 e 219.

 

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