A (des)igualdade penal em tempos de direitos humanos - Por Lucas Henrique Fávero

07/11/2017

O modelo jurídico-penal tal qual nos é apresentado durante os estudos de direito penal e processo penal, tem suas premissas calcadas, sobretudo, nos ideais garantistas sustentados por Luigi Ferrajoli, que labora com a antítese: redução do poder punitivo estatal versus a potencialização dos direitos e garantias individuais.

Somado a isso, temos intensos movimentos sociais espalhados mundo a fora, que corroboram que os direitos e garantias fundamentais inerentes aos cidadãos devem ser intensificados e protegidos dia a dia.

Pois bem, trabalhando um contraponto entre a política garantista e os direitos humanos, de um lado, e, de outro, a análise da nossa legislação, vemos que possuímos realidades completamente distintas, chegando, inclusive, a aspirar ares dos contos de fadas mais surreais.

Explicamos. Recentemente, chamou atenção a notícia propagada pelos veículos de comunicação televisivos sobre o atropelamento de um guarda de trânsito na cidade de Manaus/AM.

Na ocasião, o agente público verificou que um condutor realizou uma conversão proibida e, no exercício de suas atividades, deu início à lavratura do Auto de Infração.

Percebendo a atitude do agente de trânsito e divorciado de qualquer cuidado e desprovido dos princípios mais básicos, o condutor do veículo retornou e “atirou” o carro contra o servidor público.

Superada qualquer discussão entre dolo eventual e culpa consciente – tendo em vista que não é o foco do presente -, damos ênfase ao fato de o condutor ter sido indiciado pelo delito de lesão corporal[1] dolosa nos termos do art. 129 do Código Penal.

É nesse exato momento que verificamos que, ao contrário do que imaginamos, nosso ordenamento jurídico não nos fornece toda a segurança que dele se espera, pois labora no nítido sentido de “um peso, duas medidas”.

O condutor autuado pelo delito do art. 129 do diploma penal, se não beneficiado com algum dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, ficará sujeito a pena de detenção pelo período de três meses a um ano.

Mas para nossa surpresa, caso tivesse sido autuado por lesão corporal culposa praticada na condução de veículo automotor, a pena abstratamente prevista seria a mesma detenção, mas pelo período de seis meses a dois anos.

A incoerência e incongruência dos dispositivos é gritante! Dois delitos tutelando o mesmo bem jurídico, onde a pena para um crime culposo é mais elevada do que em relação a um crime doloso. Nesta senda, utilizando-se do mínimo de inteligência, em caso de um deslize no trânsito, no caso de lesão corporal, é muito mais prudente que, caso a lesão seja leve, seja informado à autoridade que houve a intenção em produzir o resultado. Ironizamos, é evidente!

Seria cômico se não fosse trágico! É notório que se trata de um exemplo jocoso mas real, apenas para que se vislumbre a disparidade entre os dois dispositivos. Aqui, podemos constatar que, tudo que se é visto sob o enfoque garantista é usurpado por um direito que, na prática, segue as diretrizes do famigerado movimento “Lei e Ordem”, que trabalha em sentido diametralmente oposto ao modelo apresentado, uma vez que o Poder Legislativo é frequentemente interpelado a concluir que o Direito Penal é a solução para todos os males que infligem a sociedade. (GRECO, 2016).

É evidente que a explosão legislativa, com a criação das mais absurdas leis, que punem condutas inúteis (a exemplo, algumas contravenções penais, dispostas no Decreto-Lei 3.688/41) não são a salvação para nossa sociedade. O sensacionalismo adotado pela mídia para “sugerir” a criação de leis não se sobrepõe à efetiva necessidade social. Ademais, nem sempre o recrudescimento das penas é o caminho a ser seguido. Leis criadas às pressas e sem o mínimo de razoabilidade, só faz inchar ainda mais nosso ordenamento e, ainda, acaba nos direcionar ao caminho da desigualdade e insegurança.

Os processos de criminalização devem ser minuciosamente observados, sobretudo o processo primário, que é aquele ligado ao poder legislativo, quando, por força do imperativo constitucional (art. 22, I), fará surgir um crime no cenário jurídico.

Diante disso, podemos constatar que, mesmo em época onde os direitos humanos são sobejamente enaltecidos, nosso ordenamento nos dá margem para disparidades como a apontada. É por isso que o termo “impunidade” é sempre utilizado por quem não detém o conhecimento técnico sobre a matéria, porque, ainda hoje, nosso ordenamento adota o sistema onde dois corpos, com suas massas idênticas, possuem pesos distintos.

 

Referências:

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial. Volume 2. 13ª Edição. Editora Impetus. Niterói/RJ. 2016.

GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio. Uma Visão Minimalista do Direito Penal. 9ª Edição. Editora Impetus. Niterói/RJ. 2016

NETO, Antonio Graim. Punir é um Direito Fundamental? Teoria da Pena Conforme a Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Empórtio do Direito. Florianópolis/SC. 2016.

 

[1] Para Nelson Hungria, citado por Rogério Greco: “O crime de lesão corporal consiste em qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, a integridade física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem. Não se trata, como o nomen juris poderia sugerir prima facie, apenas do mal infligido à inteireza anatômica da pessoal. Lesão corporal compreende toda e qualquer ofensa ocasionada à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um dano à saúde, e é inconcebível um dano à saúde sem um mal corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração da integridade física, quer como perturbação do equilíbrio funcional do organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma violência exercida sobre a pessoa”. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, v. V, p. 313.

 

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