A Democracia Constitucional no Estado Democrático De Direito – Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

16/05/2016

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“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (Art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil)

Na teoria clássica das formas de governo, a democracia configura, pelo menos até Alexis de Tocqueville, como o governo de muitos, o governo da maioria ou mesmo o governo dos pobres, invariavelmente julgada de forma negativa. A autodeterminação dos cidadãos em igualdade de direitos políticos perante a lei era representada pelo arquétipo da politeia grega ou da República romana, em contraposição à monarquia, à tirania, ao despotismo ou a outras formas de governo, quer aristocráticas, quer oligárquicas, fundadas na restrição de direitos políticos, ou seja, ao governo de um e ao governo de poucos.

Mesmo em Aristóteles, que irá considerar em sua classificação uma dimensão teleológica referida ao bem-comum, a democracia era, nestes termos, criticada pela tradição da filosofia política como uma forma de governo facciosa, parcial e, mesmo entre os modernos, essa visão negativa ainda se encontra presente, como em Madison, quando afirma que a Constituição, fundada na igualdade de cidadania perante a lei, era a republicana e não a democrática.

Ou, se em sentido positivo, como em Robespierre, que passa a usar o termo democracia em substituição à república, na época do terror, a democracia é vista como governo dos sans-culottes, e, de forma facciosa, centralizada no Comitê de Saúde Pública, que exercerá, mais do que uma ditadura comissionaria, uma ditadura revolucionária, soberana, para referir-se aqui à distinção proposta por Schmitt. E se, anteriormente a Robespierre, Rousseau pudesse ser um candidato à exceção, apresentando um juízo positivo quanto à democracia, cabe recordar que a adoção da democracia na idade moderna pressuporia, para esse autor, Estados com pouca extensão territorial, como Genebra, não sendo, por isso, passível de ser adotada em qualquer lugar.

Já Sieyes, na sua defesa do governo representativo, à época da redação da Constituição francesa de 1791, situa-se na tradição liberal para defender o voto censitário, em resposta aos jacobinos, e a impossibilidade, numa sociedade sem escravos, de exercício do poder político por todos os indivíduos, em igualdades de direitos, em razão da necessidade de satisfação prévia dos interesses privados, a fim de que se pudesse ser capaz de divisar o interesse público.

Tocqueville, referindo-se à democracia norte-americana, é quem irá, com sentido moderno e positivo, usar o termo para chamar a atenção para a possibilidade, contudo, na América, de uma democracia em grande extensão territorial, posto que fundada no federalismo e no associativismo. Mas na América, cabe chamar atenção, em razão exatamente do pluralismo associativo e de corpos intermediários capazes de sustentarem o regime, algo que inexistiria na Europa.

Sobre o pano de fundo da republicanização das monarquias europeias em razão da sua progressiva transição ao parlamentarismo e da adoção do direito universal de voto, e da queda das últimas monarquias resistentes (Jellinek), Alemanha, mas também Áustria e Rússia, na passagem do século XIX ao XX, à república, Kelsen irá propor uma nova classificação que passasse a considerar a maior ou menor participação dos destinatários na formação das decisões jurídico-políticas, adotando assim a distinção entre democracia e autocracia: democracia é justamente aquela forma de governo em que os destinatários participam do processo de produção das normas. Como chama atenção Kelsen, o critério numérico tradicional de classificação das formas de governo, agora seria inútil para se analisar as repúblicas e as monarquias parlamentares, pois encobria exatamente essa maior ou menor participação, impossibilitando diferenciar formas democráticas e autocráticas de governo.

No período entre guerras, a polêmica entre Kelsen e Schmitt sobre o guardião da Constituição democrática pode bem ilustrar tais mudanças: há uma divergência profunda quanto às concepções de Constituição e de democracia em Schmitt e em Kelsen. Pois para Schmitt, a Constituição é a decisão política sobre a unidade e a forma de existência do Estado e para Kelsen são as normas que regulam formal e materialmente as competências e o processo de produção válida das demais normas do ordenamento. Enquanto para Schmitt somente um presidente forte encarnaria essa unidade do Estado, decidindo sobre o estado ou situação de exceção, realizando, assim, o ideal da democracia como identidade entre governantes e governados, para Kelsen democracia é a forma de governo que em contraposição à autocracia garante a participação dos destinatários das normas, por meio do exercício de direitos políticos, no processo de produção dessas normas. Assim, a defesa da jurisdição constitucional em Kelsen remete-se à defesa do federalismo como forma de Estado e ao parlamentarismo e à democracia pluralista e de partidos como sistema de governo e forma de governo, enquanto em Schmitt remete-se a uma visão autoritária da democracia moderna.

O pós-guerra irá por um lado agudizar e por outro tratar, após Kelsen e além de Schmitt, muito dessas questões, no sentido de uma democracia não apenas política, mas também social, que, para citar Bobbio, não basta apenas saber quem e como decide, mas onde decide, nas empresas, nos sindicatos, nas associações, etc., pressupondo-se não apenas uma igualdade formal, mas material, de oportunidades de efetivo exercício de direitos. Daí a preocupação com a democracia participativa e com a aproximação entre representantes e representados, via redefinição da representação política e do uso mais adequado e cuidadoso de mecanismos de democracia direta, como o plebiscito e o referendo que, por si sós, podem ser meros instrumentos autoritários de legitimação, se não se garantirem a formação pública da opinião e da vontade na esfera pública e a garantia dos direitos das minorias sociais e políticas. E democracia é hoje, sobretudo, poliarquia (Dahl), para uma sociedade plural e descentrada, preocupada com a garantia, as condições e a institucionalização do exercício dos direitos fundamentais, individuais, sociais, coletivos e difusos.

Hoje, o desafio da democracia pressupõe considerar uma sociedade hipermoderna que se caracteriza por uma crescente diferenciação entre os vários subsistemas sociais e por uma acentuada autonomização de antigas esferas normativas, tais como as da moralidade, da eticidade e da religião, no plano global-local (Marramao). À diferenciação sistêmica, à autonomização de esferas normativas e à perda de um centro acrescenta-se o fato de essa concepção de sociedade reconhecer o fato do pluralismo razoável (Rawls) de formas de vida e de visões de mundo não fundamentalistas, que estão em desacordo entre si, mas que podem ser vistas como igualmente razoáveis e assim pretenderem concorrentemente o reconhecimento de sua dignidade. A democracia implica hoje a realização na história, enquanto processo de permanente aprendizado social, do projeto constitucional do Estado Democrático de Direito, fundado na relação interna entre autonomia pública e autonomia privada, em que uma soberania popular, vista agora como reflexiva e processualizada, ao mesmo tempo constitui e é constituída por direitos fundamentais principiologicamente considerados (Habermas) e, portanto, abertos à interpretação construtiva e ao desenvolvimento político-legislativo (Dworkin). Hoje, o princípio da democracia envolve o reconhecimento de uma noção mais ampla de esfera pública política que não se reduz aos fóruns oficiais do Estado, assim como de uma renovada concepção de sociedade civil que, diferentemente do velho conceito hegeliano-marxista de sistema das necessidades, é formada por grupos, movimentos, associações e organizações sociais que se diferenciam tanto da esfera governamental, quanto do mercado, e que visam à dramatização e generalização de temas e problemas que dizem publicamente respeito aos diversos âmbitos da sociedade (A. Arato), por meio de formas argumentativas ou de narrativas de autoexpressão (G. Marramao). Democracia hoje é, portanto, Democracia Constitucional.

O princípio da democracia constitucional garante-se, entre outros: a) pelo reconhecimento do direito fundamental de dizer não; pelo respeito aos direitos políticos das minorias como parte da dinâmica democrática; b) por meio das diversas formas de participação e de sufrágio, do direito de associação, do direito de assembleia e de reunião pacíficas, do direito à livre filiação partidária e sindical, assim como do direito de representação política dos vários pontos de vista políticos presentes na sociedade, nos processos legislativos de produção das leis e das demais decisões jurídico-políticas, no âmbito da Administração Pública e mesmo do Poder Judiciário; c) pelo devido processo eleitoral e pelos mecanismos participativos e representativos de fiscalização do governo, inclusive de acordo com os específicos termos de cada sistema de governo, presidencialista, parlamentarista ou de diretório, etc.; d) pelo controle de constitucionalidade e de legalidade das decisões jurídico-políticas; e) por meio de direitos processuais de participação nas diversas deliberações coletivas e sociais; f) pelo reconhecimento das identidades individuais, coletivas, sociais e culturais; g) por ações afirmativas e por programas sociais que visam à inclusão social, econômica e cultural.

Todavia, não basta uma política de tolerância e reconhecimento das diferentes identidades individuais, coletivas e das diversas minorias sociais, econômicas e culturais para se caracterizar uma democracia constitucional. Afinal, não se contribui paternalisticamente para a emancipação social, econômica, cultural e política de cidadãos que não puderem reconhecer como conquista histórica sua a construção permanente do Estado Democrático de Direito. As políticas de redistribuição social e econômica não podem ser vistas como o mero desdobramento de políticas de reconhecimento ou de concessão de medidas de bem-estar social, mas como fruto de um processo de luta por reconhecimento (Honneth) da sua dignidade e pela efetividade de seus direitos fundamentais por parte da cidadania. Afinal, só se aprofundam as condições materiais e formais para o exercício de direitos de liberdade e igualdade em um processo de construção, ao longo do tempo, de uma cidadania ativa que aprende por si própria com a democracia.

Como forma de garantia da democracia constitucional e dos direitos fundamentais que a constituem, o Estado Democrático de Direito deve combater todas as formas de violência física e/ou psicológica, social, econômica e mesmo estatal, de intolerância, de terrorismo, de preconceito e de discriminação social, econômica, religiosa, de gênero, racial, de cor, de procedência, de orientação sexual, de idade, entre outras, como garantia do princípio democrático. Deve, portanto, garantir a segurança pública e a seguridade social, todavia de forma não paternalista.

Assim sendo, o Estado não pode cercear as liberdades públicas e privadas, nem calar os dissidentes políticos que, no exercício de seu direito constitucional de oposição ou mesmo de seu direito fundamental à desobediência civil, não apenas poderão divergir, mas se opor pacificamente, por meio de manifestações coletivas, públicas e de gestos simbólicos, às decisões majoritárias, em nome do aprofundamento e prosseguimento dos debates públicos, do respeito aos direitos fundamentais e do próprio regime democrático-constitucional, em face da inércia, da blindagem ou do bloqueio dos poderes estatais e das organizações sociais e econômicas.

A democracia envolve conflito, questionamento e diálogo, as oposições, os dissidentes políticos e os desobedientes civis não podem ser confundidos com criminosos políticos e com inimigos da Constituição que de forma violenta, intolerante, fundamentalista e subversiva atentarem contra o regime democrático-constitucional.

Mas mesmo a diferença entre dissidência política e inimigos da Constituição não pode, contudo, ser naturalizada, e mesmo aqueles que forem acusados de práticas atentatórias ao regime democrático possuem o direito fundamental ao devido processo legal, à presunção de inocência, ao contraditório, à ampla defesa, a julgamentos públicos e à fundamentação correta e adequada das decisões, a fim de que o Estado Democrático de Direito seja capaz de lidar com o risco sempre presente de desrespeito à democracia em nome de uma suposta defesa da democracia (Habermas). Assim, a velha doutrina da ordem e da segurança nacional ou um direito penal do inimigo (Jakobs) são sempre violações ao constitucionalismo democrático, ao princípio constitucional do pluralismo político e ao direito constitucional à diferença, próprios de um Estado Democrático de Direito que se opõe crítica e decididamente a práticas sociais, econômicas e políticas pré-constitucionais atentatórias à construção de uma identidade constitucional, democrática, aberta, plural, dinâmica e inclusiva (Rosenfeld).

Se todo poder emana do povo que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes eleitos (Cf. Art. 1.º, parágrafo único, da Constituição Brasileira), o princípio da democracia constitucional envolve a defesa de um patriotismo constitucional que visa compreender a própria Constituição do Estado Democrático de Direito como processo de aprendizagem social por parte do povo como instância política plural, contra toda a velha teologia política do macrossujeito povo como nação soberana, una e indivisível ou do povo como mero ícone ou instância de legitimação (Müller).

A noção de patriotismo constitucional diz respeito, portanto, à própria construção, ao longo do tempo, de uma identidade constitucional plural, advinda de um processo democrático constituído internamente por princípios universalistas, cujas pretensões de validade vão além de contextos socioculturais específicos. Em outras palavras, trata-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais – mais do que um sentimento constitucional, uma lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática. Isso significa dizer que a defesa do patriotismo constitucional não se identifica com uma tradição cultural meramente herdada, típica dos nacionalismos, mas com tradições refletidas criticamente – à luz dos direitos fundamentais e da democracia.

E nesse sentido é que se deve entender, inclusive, que a questão acerca da legitimidade democrática das instituições políticas modernas só pode ser compreendida como a própria construção e projeção a um futuro aberto ou porvir dessa legitimidade. Isso envolve a construção de uma cultura política pluralista com base na Constituição democrática, de uma República de cidadãos livres e iguais, como expressão de uma forma de integração social, que se dá, portanto, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser sustentada por diversas formas de vida e identidades socioculturais, que convivem entre si, desde que assumam uma postura não fundamentalista de respeito recíproco, umas em relação às outras. Do ponto de vista particular de cada uma dessas formas de vida, isso significa que se podem ter os mais diversos motivos para aderir ao universalismo subjacente ao projeto constituinte do Estado Democrático de Direito, em cada situação histórica concreta. Através da construção de uma identidade constitucional comum e pluralista, que afasta a velha doutrina da soberania como una e indivisível, é possível articular a unidade da cultura política no contexto múltiplo de subculturas e formas de vida presentes na sociedade, desde uma perspectiva não fundamentalista.

A noção de patriotismo constitucional assenta-se, assim, na adesão autônoma aos fundamentos do regime constitucional-democrático e não em substratos culturais pré-políticos de uma pretensa comunidade étnico-nacional, como numa visão excessivamente comunitarista da soberania do povo, mas sim nas condições jurídico-constitucionais de um processo deliberativo democrático de gênese legítima do direito capaz de estreitar a coesão entre os diversos grupos culturais e de consolidar uma cultura política de tolerância entre eles. Isso é possível em razão da diferenciação que se deve reconhecer entre dois níveis de integração social, o da integração ético-cultural e o da integração político-constitucional, em que a construção de uma cultura política pluralista, através da práxis e do exercício dos direitos políticos de cidadania, deve ser reflexivamente levada adiante (Habermas). O que, enfim, também significa que a defesa do patriotismo constitucional por parte do povo como instância política plural representa uma forma de cultura política pluralista que permite ancorar o sistema de direitos e a sua pretensão de universalidade no contexto histórico da sociedade política concreta.


Notas e Referências:

[1] Uma primeira versão desde texto encontra-se em CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. Comentário ao Art. 1.º, parágrafo único. In CANOTILHO, J. J. G.; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 137-140.

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