À parte de qualquer análise de cariz ético acerca do instituto da delação premiada, não podemos negar que ela tem se tornado a tônica dos grandes processos. Funcionando com base em duas premissas, a eficiência e a liberdade negocial, a delação tem provocado uma maior participação do corréu na construção do regime de veridição; talvez seu grande mérito: propiciar uma “ampla defesa” como nunca antes fora possível. No entanto eis que exsurge uma questão: é defesa? E ainda que não, tem ela espaço no modelo processual penal estruturado a partir de nossa Constituição Federal?
Certa feita, bem antes dos memes congêneres aparecerem (sim, estou reivindicando a patente do feito), fiz um experimento social em sala de aula: ofereci um ponto para cada aluno que “delatasse” eficientemente o outro que estivesse colando, tudo perfeitamente cabível dentro de um processo inquisitório no qual eu era acusador e julgador, invertendo o ônus da prova para que o infeliz alvo da delação tivesse, no mais perfeito estilo “vintage”, a la século XII, direito inelutável à prova de sua inocência.
Muitos riram, alguns se entreolhavam com a expressão do tipo “será que meu colega seria capaz de fazer isso comigo?”, outros partiram para a lógica negocial: “mas um ponto é muito pouco, aumenta isso aí que não vai sobrar um!”. Aqui já estavam presentes quase todos os elementos de uma delação: a desconfiança recíproca, a sobreposição dos interesses próprios em relação aos alheios, a barganha para a obtenção do “prêmio”, a aquisição do benefício com base em critérios de exceção – o ponto não seria atribuído com base em uma “meritocracia” acadêmica (falha como toda meritocracia, a bem da verdade), mas pelas habilidades de percepção e coragem – e apenas um aspecto relevante escapava desse cenário: a necessidade do delator suportar o peso de uma acusação (os alunos/potenciais delatores não eram acusados de eles próprios estarem colando).
Não questiono aqui a eficiência da delação, pedra de toque da modernidade colonizada por uma razão de cariz neoliberal; aliás, talvez estejamos diante do mais neoliberal dos institutos processuais: pauta-se na eficiência, na liberdade negocial, na recompensa proporcional aos esforços demandados e em certa dose de introjeção de concorrência entre acusados, o que poderia dar errado? A quebra da relação ética entre bandidos? Não, são outros os principais aspectos que destaco, quais sejam a possibilidade de fraude em prol da recompensa da delação e a subtração à aplicação da lei penal por uma espécie de “conversão” para o lado do inquisidor, e não por inocência preservada (vide Joesley e irmão).
Poderia prosseguir falando sobre a dinâmica da delação, sobre como acordos celebrados com o Parquet podem vir a inverter a lógica processual, submetendo o magistrado aos termos negociados pelo MP, etc., mas me centrarei em dois aspectos principais: o efeito primazia e a utilização da cautelar prisional como estratégia de coação à delação.
O primeiro diz respeito aos estudos relacionados à primeira impressão do julgador; eles demonstraram que as informações inicialmente recebidas possuem uma maior dimensão de peso, fazendo não só com que o julgador lhes atribua maior relevância como busque, muitas vezes, outros elementos que preferencialmente corroborem com suas primeiras impressões, podendo, ainda que inconscientemente, filtrar eventuais elementos que produzam alguma “dissonância cognitiva”, ou, em termos prosaicos, ele busca evitar o desconforto psíquico em relação a informações colidentes.[1]
É visando se precaver desse problema que são necessárias medidas de maior delimitação do espaço de atuação de cada agente; não só acusador e juiz precisam ter suas funções muito bem definidas e separadas, como também este último demanda mecanismos que assegurem sua virgindade mental na fase de julgamento, como a essencial instituição do juiz de garantias – juiz que ficaria com a incumbência de realizar atividades judicantes durante a fase que antecede ao julgamento.
O segundo dos problemas aventados – a utilização da cautelar prisional como eventual mecanismo coator – possui raízes mais profundas. Estas perpassam pela própria (des)funcionalidade da prisão preventiva, quando ela perde sua natureza cautelar e visa assegurar uma “ordem pública” estéril, cujos contornos só existem na cartografia dos afetos do julgador.
É corriqueiro ver juízes afirmando cabalmente que as prisões preventivas não são utilizadas para forçar delações, citando inclusive várias que foram realizadas com investigados/réus em liberdade. Muito compreensível tal defesa do Judiciário, não só por questões institucionais, mas por muitas vezes eles próprios não saberem as reais razões que os levaram a decretar a prisão de alguém!
Refiro-me, acima, à dimensão afetual que subjaz a utilização racional nos mecanismos decisionais. Ou seja, há juízes que decretam prisões cujos motivos não estão de fato relacionados com a possibilidade de delação, há outros que decretam desejando (secretamente, óbvio) que o preso se “sinta estimulado” a deletar, mas não podemos esquecer o terceiro conjunto, o dos que assim agem movidos por pulsões que lhes escapam, talvez até mesmo estruturantes e estruturadas pela cultura inquisitorial que nos atravessa.
Em relação a este segundo problema, outra medida imprescindível e há décadas reivindicada mas sempre rechaçada retorna: é fundamental precisar os limites da prisão por “ordem pública” e resgatar (ou instituir, melhor dizendo) sua natureza cautelar, em vez de preservar sua natureza distópica de “antecipação de tutela”, inexistente no sistema processual penal, como já abordei em outra coluna.
Estamos aqui diante tão somente de um esboço da problemática relacionada ao instituto da delação premiada, a sua degenerescência democrática – talvez esta sim a função para a qual foi criada – quando chegam até nós notícias de decisões de conversão de prisão preventiva em outra cautelar condicionadas à “colaboração dos eventuais partícipes”, história aparentemente (e infelizmente) verídica.
Agora podemos retomar as perguntas abertas no preâmbulo deste texto. A delação não é defesa em seu sentido estrito; ela tem como escopo a pura obtenção de uma condição penal ou processual mais benéfica em prol da “colaboração” com os aparelhos persecutórios. Um verdadeiro negócio, evidentemente em situações absolutamente diversas de qualquer espécie de paridade negocial.
Originalmente essa negociação envolve o escambo entre dois elementos, a informação útil que o investigado/acusado possui e as instituições não, de um lado, e a pena reduzida, o regime prisional abrandado, a possibilidade de nem sequer vir a ser denunciado, entre outras “benesses” do outro. O que isso significa, fundamentalmente? Simples, um reconhecimento institucional de sua ineficácia funcional. Uma espécie de “está bem, você venceu, diga-me o que não consegui descobrir que nem ao menos te denunciarei!”, ou, em termos mais extremos, um tratamento desigual, beneficiando legal mas injustamente o infrator, em virtude da “rendição institucional” ou de certa “eficiência temporal”.
A utilização de cautelares para incitar o investigado/acusado a “colaborar” aparece nesse cenário apenas como uma artifício negocial, uma “estratégia de vendas”, a qual o indivíduo, empresário de si, poderá eventualmente recorrer em prol de “incentivo”. É ilegal, claro – o próprio neoliberalismo proclama a liberdade negocial, o que implica em paridade de condições –, mas a pressão por resultados sempre nos impulsiona à fronteira do lícito e ilícito, através da qual nos permitimos eventuais incursões, sempre “excepcionais”… eis o conspícuo, é sempre uma exceção.
Assim sendo, questionar seu “encaixe” constitucional se torna despiciendo. A Constituição, aqui, apenas demarca o espaço de legalidade, sobreposto por um segundo, de normalidade, este sim fundado pela exceção que não vira a regra, ela é a regra. Ou seja, a delação premiada possui guarida constitucional? Não importa! Ela pode sim ser desenhada para ter, mas é na pragmática que a distopia se instaura.
Por fim, a “experiência social” semijocosa – nem mesmo eu sei se de fato a encararia como um compromisso caso alguém se valesse do instituto (o tal do inconsciente, lembram?) – que fiz com meus alunos não rendeu “delatados”. Ou a ética “criminosa” entre eles é forte (mesmo eu garantindo anonimato, como todo bom processo inquisitório!) ou o prêmio não era suficientemente tentador. Ou, o que é mais crível, eles não se sentiram devidamente estimulados a delatar simplesmente por eles próprios não estarem sendo acusados de nada, seria, aqui sim, prêmio em seu sentido mais estrito, não uma amortização de uma dor inevitável.
Confesso que gozo de certa satisfação por não ter o experimento rendido frutos, pois não tenho dúvidas de que, primeiro, o aluno delatado dificilmente provaria sua inocência, e, em segundo lugar, eu estaria pontuando o delator que poderia até mesmo passar na disciplina exclusivamente por valores absolutamente alheios a seu rendimento na matéria (por mais que compactue com a ideia de que exames avaliativos são um instrumento muito frágil de “medição” de algo).
E dou graças por não ter ao meu alcance o poder de mandar prender alunos que suspeite fazerem parte de alguma “organização criminosa de compartilhamento de informações ilicitamente”, pois tenho poucas dúvidas que lançaria mão dele, inclusive para conseguir descobrir os comparsas. É, caros leitores, o gozo pela possibilidade (ilusória) da captura da verdade é intenso, que os deuses livrem nossos julgadores dele…
Notas e Referências:
[1] Mais detalhes cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013.