A defesa do STF, o desembarque da PGR no sistema acusatório e o papel da Defensoria Pública  

04/06/2020

 

Muito já se falou (aqui aqui aqui e aqui) sobre o Inquérito 4.781/DF, aberto de ofício pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, tendo escolhido (e não distribuído regularmente o feito) o Ministro Alexandre de Moraes como relator. O inquérito tem como finalidade investigar atos indeterminados – alguns futuros –, fora do âmbito de sua competência, contra seus próprios ministros e de forma sigilosa.

O inquérito visa a investigar “a existência de notícias fraudulentas (fale news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animis caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares.”

O Min. Relator, em 15 de abril de 2019, determinou à revista Crusoé e ao site O Antagonista que retirassem do ar textos que associam, indevidamente, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, à Odebrecht. A gravidade das ofensas disparadas ao presidente do STF provocou a atuação da PGR, que publicou nota de esclarecimento negando pontos da reportagem[1].

Posteriormente, diante da revelação feita pelo ex-Procurador-Geral da República Rodrigo Janot, de que tinha planos de dar um tiro na cabeça do Ministro Gilmar Mendes e depois cometer suicídio, o Ministro Relator, de ofício, determinou a busca e apreensão de “armas, computadores, “tablets”, celulares e outros dispositivos eletrônicos, bem como de quaisquer outros materiais relacionados aos fatos aqui descritos”, tanto na residência, quanto no escritório de Janot, além da imediata tomada de seu depoimento, proibição de se aproximar a menos de 200 metros de qualquer um dos Ministros do STF, bem como a proibição de acesso ao prédio sede e anexos da Corte e a suspensão do porte de arma.

No último dia 27.05.2020 o Min. Alexandre de Moraes determinou a realização de busca e apreensão pela Polícia Federal, os alvos eram financiadores e fabricantes de notícias fraudulentas, que teriam a finalidade de enfraquecer o Judiciário e o Legislativo, como forma de concentrar poder nas mãos do Presidente Bolsonaro. [2]

Neste meio tempo, o partido político Rede Sustentabilidade propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 572 contra o Inquérito[3] , tendo o Conselho Federal da OAB, a Ajufe, AMB e Anamatra, entidades de classe da magistratura, manifestado apoio à decisão de abertura do Inquérito[4]. A AGU se posicionou no sentido da evidente ausência de violação à separação de poderes e de usurpação à competência constitucional do Ministério Público[5].

O Inquérito passa por algumas dificuldades de encaixe no suporte político-normativo, é certo. Contudo, a questão não é simples porque, além dos temas do juiz natural e do sistema acusatório, devem também ser analisadas as regras democráticas e republicanas.

Algumas ideias que atentam contra a integridade e a coerência do ordenamento jurídico, infelizmente, tem grassado, inclusive no próprio STF. Tomemos como exemplo a soberania dos veredictos, que é garantia constitucional inscrita no art. 5º, inciso XXXVIII, “c”, como direito fundamental em favor do acusado, mas utilizado “contra” este. Explica-se: há corrente dentro do STF, inclusive plasmada no recém-aprovado pacote anticrime[6], que entende que “a prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade”, pois o veredicto dos jurados é soberano e, por isso, “transita em julgado”, não podendo ser alterado pelo Tribunal ad quem.[7].

Assim, é preciso se analisar uma hipótese rara, mas possível: se houver ataques que impliquem em nítida campanha difamatória, com finalidade de esvaziar, enfraquecer ou destruir o STF? E, se nesta situação hipotética, houver omissão da PGR, da AGU e do Ministério da Justiça? Se, por exemplo, o STF, comprometido com a guarda da Constituição, em posição contramajoritária, realizar em observância aos princípios e fundamentos constitucionais, reformas de sentenças ou anulações de julgados de operações do quilate da Lavajato, passando a sofrer ataques e, em retaliação, o MP não queira atuar, deixando o Poder Judiciário fragilizado? E se a AGU e o Ministério da Justiça não atuarem, pois comprometidas com tal posição contrária?

Em suma: como o STF pode se defender de eventual omissão da AGU, do PGR e do Ministro da Justiça?

Lembra o Prof. Juarez Tavares que a Suprema Corte americana tem a faculdade de nomear ad hoc um procurador que sequer é membro do Ministério Público. E já fez isso várias vezes. Lembremos: o sistema lá é acusatório.

Alguns Tribunais de Justiça e as Casas Legislativas têm seus próprios procuradores, justamente para cuidar de questões estritamente institucionais. O STF já se debruçou sobre essa questão, por exemplo, em relação à constitucionalidade de criação de cargos efetivos de advogados no quadro administrativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo pela constitucionalidade da medida, de forma que o Poder Judiciário possa atuar em nome próprio na defesa de sua autonomia, prerrogativas e independência em face dos demais Poderes[8]. Neste sentido, também admite a personalidade judiciária da Defensoria Pública para atuar em nome próprio defendendo suas missões institucionais primárias (RCL 29.303) e secundárias (STA 800). Posicionamento acorde e complementar ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça expresso na Súmula 525, reconhecendo personalidade judiciária de órgãos e instituições autônomas, como a Câmara de Vereadores, para demandar em juízo para defender os seus direitos institucionais.

Devemos, diante desta lacuna, imaginar como proceder para assegurar a Democracia. Dito de outra forma: as regras do sistema acusatório e do juiz natural servem aos fundamentos republicanos e democráticos e não podem ser utilizadas justamente de forma a subverter estes fundamentos. Se é declarando a inconstitucionalidade integral do art. 43 do RISTF, ou dando-lhe uma interpretação que leve em consideração o sistema acusatório e a garantia do juiz natural, mas promova, nestes casos excepcionais, a defesa do STF como Poder, mantendo a harmonia e o equilíbrio, sustentáculo do regime republicano e democrático. Mas que se o faça pelos meios que a Constituição prescreveu: apenas o plenário do STF pode declarar em controle concentrado a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal (rectius: no caso do art. 43 do RISTF, sua não recepção), e não por arquivamento do PGR.

Ademais, cabem algumas palavras sobre a postura incongruente da PGR que defende um sistema acusatório dentro do Inquérito 4.781/DF, mas não se insurge diante do art. 385, CPP, como já afirmamos eu e Pedro Serrano aqui, e, mais recentemente, o texto de Lenio, Cattoni e Bacha aqui, que lembram o posicionamento do PGR contra o juiz das garantias[9].

Vale ressaltar ainda que a PGR em nenhum tempo se posicionou contra a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício – pelo magistrado, mesmo contra expresso pedido/parecer do representante do Ministério Público.

Há de se conclamar o Ministério Público a aportar de vez na ensolarada praia do sistema acusatório, e não apenas fundear o navio na baía, observando os banhistas na areia ao longe.

E a Defensoria Pública?

A instituição que a Constituição conceituou como permanente e essencial à consecução da Justiça não pode assistir a todas essas questões como espectadora. Como expressão e instrumento do regime democrático tem o dever de intervir tanto no Inquérito nº 4.781, quanto na ADPF nº 572, de forma a contribuir com a inclusão democrática e a multiplicidade das formas de expressões dos indivíduos e grupos vulneráveis que foram, são e serão atingidos pelo desenrolar das decisões ali tomadas, em especial os delineamentos acerca do sistema acusatório no presente e no futuro, como lembrado por Marcos, Maurílio e Raquel aqui.

A Lei Complementar Federal n. 80/94 é explícita ao conferir à Instituição a legitimidade para exercer suas atribuições em processos judiciais, perante todas as instâncias, inclusive extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa dos interesses[10] individuais e coletivos de vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado[11].

Aos defensores públicos, em respeito à concepção republicana e democrática de Justiça, está franqueado o acesso a procedimentos penais, administrativos ou cíveis, não importando a nomenclatura que seja adotada, quais sejam, inquérito policial (art. 129, VIII, CRFB), procedimento investigatório criminal (Resolução nº 13/2006 – CNMP), inquérito civil (art. 129, III, CRFB), inquérito parlamentar (lei nº 1.579/1952), Procedimento Preparatório (art. 1º, I, Resolução n° 021/2008 – CONSUP/DPCE), processo administrativo disciplinar (lei nº 8.112/1990). Outrossim, o exame dos autos pode se dar em qualquer instituição: Polícia Federal, Civil, Rodoviária e Ferroviária Federal, Polícia Militar e Bombeiros Militares, Forças armadas, corregedorias, controladorias, comissões parlamentares de inquérito, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), do  Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Tribunais de Contas, Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, ouvidorias, etc.

Não se pode imaginar que o Conselho Federal da OAB, a AGU, a PGR e associações corporativas de magistrados, além de partidos políticos, levem suas perspectivas sobre o regime democrático, questões republicanas, separação de poderes e sistema acusatório, e a outra única instituição expressamente conceituada como essencial à Justiça pela Constituição permaneça em um “silêncio obsequioso”.

A atuação da Defensoria Pública para a realização de seus interesses institucionais primários, em especial a missão constitucional da promoção dos direitos humanos, é determinante para a intervenção institucional autônoma no Inquérito e na ADPF, democratizando o processo, ampliando e qualificando o diálogo jurídico nos citados procedimentos de forma a promover um contraditório substancial com elementos peculiares colhidos na atividade institucional diária junto aos indivíduos e grupos vulneráveis – pretos, pobres, adolescentes em conflito com a lei, em suma, a clientela preferencial do sistema penal nos países de modernidade tardia e carente de concretização de direitos fundamentais –, influenciando concretamente na decisão tomada de forma a se fazer respeitar os postulados do Estado Democrático de Direito[12] que visa à redução das desigualdades e a primazia da dignidade humana, bem assim fixando, para o futuro, decisão vinculante, tese ou precedente que favoreça a esta visão de mundo.

A Defensoria Pública, neste momento de incertezas, é chamada a defensorar.

 

Notas e Referências

[1]              https://www.conjur.com.br/2019-abr-15/moraes-manda-revista-tirar-ar-noticia-ligando-toffoli-odebrecht

[2]              https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/alexandre-determina-busca-apreensao-ativistas-bolsonaristas

[3]              https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf

[4]              https://www.conjur.com.br/2019-mar-14/oab-juizes-apoiam-abertura-inquerito-ameacas-stf

[5]              https://cdn.oantagonista.net/uploads/2019/04/AGU-INQUERITO-TOFFOLI.pdf

[6]              Art. 492, §4º, CPP

[7]              (HC julgado pela 1ª Turma (HC 118.770). E, ainda, “...diante do princípio da soberania do Tribunal do Júri, o meu entendimento – aqui já esposado pelo Ministro Alexandre, acompanhado pelos demais, e também a posição do Ministro Dias Toffoli, hoje Presidente, que a defendeu publicamente – é de que a condenação pelo Tribunal do Júri já significa a possibilidade de execução da pena (Habeas Corpus 140.449 Rio de Janeiro Relator para o Acórdão Min. Roberto Barroso)

[8]              EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 14.783/2012 DO ESTADO DE SÃO PAULO, QUE CRIA CARGOS EFETIVOS DE ADVOGADOS NO QUADRO ADMINISTRATIVO DO PODER JUDICIÁRIO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO ART. 132, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL  . NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO CONFORME. PRECEDENTES. 1. As Advocacias Públicas de que tratam os arts. 131 e 132 da Constituição Federal são órgãos autônomos vinculados ao Poder Executivo da União ou Estado, o que não obsta a defesa de interesses cotidianos próprios dos demais Poderes do ente federativo a que pertencerem. Excepcionalmente, admite-se a existência de órgão de assessoramento jurídico, com finalidade, inclusive, postulatória, quando o objetivo for zelar pela independência funcional e as prerrogativas inerentes ao Poder. Precedentes: RE 595.176-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa; ADI 94, Rel. Min. Gilmar Mendes; ADI 175, Rel. Min. Octavio Galloti; ADI-MC 825, Rel. Min. Ilmar Galvão. 2. Necessária interpretação conforme a Constituição, com o propósito de permitir a representação judicial somente nos casos em que o Poder Judiciário estadual atuar em nome próprio, na defesa de sua autonomia, prerrogativas e independência em face dos demais Poderes. Nesse sentido: ADI 1.557 DF, Rel. Min. Ellen Gracie. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente, para dar interpretação conforme ao parágrafo único do art. 2º da Lei 14.783/2012 do Estado de São Paulo (STF ADI 5024 / SP -  Relator Min. Roberto Barroso -  20/09/2018)

[9]              https://www.conjur.com.br/2020-jan-22/fux-revoga-liminar-juiz-garantias-atereferendo-plenario

[10]            [10](art. 4º, V, LONDEP)

[11]            [11](art. 4º, XI, LONDEP)

[12]

        Defensoria Pública como Amicus Democratiae Amicus Democratiae reflete o importante papel de viabilizar a participação democrática na formação de políticas públicas e nos projetos legislativos, promovendo a qualificação do diálogo jurídico, cultural e social. ROCHA, Jorge Bheron; CAVALCANTE, Bruno Braga. A atuação defensorial como Amicus Democratiae: fortalecendo as relações interinstitucionais e prevenindo violações a direitos. In: Livro de teses e práticas exitosas: defensoria pública: memória, cenários e desafios. Rio de Janeiro: CONADEP. 2019

 

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