A defesa de T. R. S. Allan pelos direitos não escritos como lei fundamental – Por Paulo Silas Taporosky Filho

09/04/2017

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T. R. S. Allan[2], em seu artigo “In Defence os the Common Law Constitution: Unwritten Rights as Fundamental Law”, expõe que busca argumentar uma ideia diferente de Constituição defendida por Alan Brudner[3]. Enquanto Brudner salienta a necessidade de uma Constituição escrita, a qual serviria, através de seu texto, para regular os poderes do Estado, Allan defende que não é necessária uma Constituição codificada a fim de proteger os regramentos estabelecidos na lei, incluindo a proteção de todos os direitos fundamentais, de modo que bastaria que ocorresse uma aplicação consistente dos princípios constitucionais existentes aos casos particulares. Para Allan, uma interpretação consistente com os princípios constitucionais aplicada ao caso concreto, demanda um agente moral independente que que não ser traduzido numa lei escrita.

Dentre os pontos mencionados no artigo em comento, pode-se destacar que a preocupação de Brudner é para com um governo legítimo, o que, para tanto, demandaria uma divisão clara entre o Judiciário e o Legislativo. O papel do Judiciário estaria adstrito a aplicar na prática (“pure practical reason”) aquilo que a constituição liberal prevê como razão pública. Já ao Legislativo competiria efetivar os princípios da justiça mediante a previsão legal num ordenamento específico, fazendo a própria lei as vezes de “intérprete” dos princípios constitucionais.

O ponto central do pensamento de Brudner reside no fato de que uma lei genuína seria capaz de se impor enquanto sedimentada na ideia de uma razão prática sólida. A estrutura ideal do reconhecimento, formulada por Brudner, prevê que o reconhecimento de autoridade do direito posto deve ser recíproco entre todos aqueles a que são submetidos, ou seja, o que garante a eficácia e a independência da lei, é o fato de todos a aceitarem enquanto confiantes de que os demais também assim farão. Os valores partem assim de uma estrutura impessoal, cujos fatores axiológicos que a regulam estão previamente impressos nesse procedimento estabelecido por normas escritas - o que seria melhor do que depender da vontade pessoal de um agente dotado de um subjetivismo impossível de prever.

Brudner estabelece algumas diretrizes que auxiliam na compreensão do conceito de Direito: a ideia de Estado de Direito estaria sedimentada justamente nas oposições desse ideal, as quais advêm tanto de teorias políticas como teorias morais justificantes[4]. A validade jurídica seria conferida de acordo com uma concepção apropriada de Estado de Direito (advinda de um contraste de teorias fundacionais), devendo esta estar em consonância com as premissas constitucionais relevantes. Daí a ideia de uma lei positivada para cumprir essa função.

Allan deixa claro entender que Brudner confere uma importância em demasia para a existência de Constituições escritas, tecendo algumas manifestações sobre tal posicionamento, como por exemplo quando menciona a transição de um paradigma constitucional liberal (de livre-mercado) para um igualitário (social-democrático), o que para Brudner necessitaria de uma emenda constitucional formal (uma ruptura paradigmática formalista), enquanto para Allan essa seria uma medida muito abrupta, vez que entende que um paradigma poderia se adaptar às exigências do outro através de argumentos morais e políticos.

Enfim, Allan entende que Brudner acaba por ignorar o poder do princípio do Estado de Direito (o qual, para Brudner, se efetivaria tão somente através da lei escrita, autoimpositiva, observada e seguida por todos, cabendo ao Judiciário reafirmar a autoridade da lei quando na resolução de conflitos), vez que esse próprio princípio, enquanto tal, poderia servir como um norte interpretativo para o significado do direito “prático”.

Os direitos atinentes à liberdade, por exemplo, formam um paradigma pré-político. A Constituição toma esses direitos e os tornam um bem público, passando a ser então um valor inviolável a ser observado pela razão púbica. Daí que a reabilitação desse paradigma liberal se trataria de uma correção daquela visão de que todos os direitos seriam apenas o produto de um acordo político, de modo que o Estado de Direito seria apenas o regramento de uma maioria estabelecida. Brudner aponta que liberdades fundamentais (tais como liberdade de consciência, de crença, de propriedade...) que precedem a instituição do Estado, estariam envoltas em sua base fundante, de modo que o poder do governo deveria estar limitado à tais liberdades (contendo uma precisão positivada mais “simples”). Existiriam ainda algumas dessas liberdades mais específicas (tais como imprensa livre, liberdade de expressão política, liberdade de associação...), onde entraria a necessidade de se promulgar e executar o direito positivado de uma maneira ainda mais específica.

De qualquer modo, para Brudner, uma coisa seria a soberania da vontade comum, enquanto outra o método de reforçar essa soberania. A soberania se efetivaria pela vontade comum através do estabelecimento da lei escrita (soberania da vontade comum). Ao Judiciário competiria reforçar essa soberania quando dos conflitos existentes (método de reforçar a soberania). É nesse sentido que Brudner atribui os papeis ao Legislativo e ao Judiciário.

Brudner argumenta ainda que o legislador reconhece um direito que vai além de “suas crenças”, mas que teria o dever de agir em conformidade com este próprio. Se assim não procedesse, estaria contrariando sua própria ideia de “objetivismo” – no sentido de um estabelecimento prévio de regramentos a serem aplicados de igual modo para todos os cidadãos. Sobre esse ponto, T. R. S. Allan questiona se não seria mais prudente admitir que o legislador ignora a sua responsabilidade perante os cidadãos sob o argumento do estrito cumprimento de dever, por mais que esteja, em tese, direcionado para agir de acordo com a justiça.

T.R.S. Allan também indaga de que modo seria possível observar como conceitualmente claro o conteúdo das liberdades fundamentais, já que, muitas vezes, numa questão prática se apresenta uma controvérsia que limitaria o argumento sobre a validade dos estatutos legais. Porém, em alguns casos, as respostas corretas seriam dedutíveis mediante uma análise de acordo com a Constituição, sendo a liberdade de consciência um exemplo certeiro dessa questão: o poder público não pode forçar qualquer pessoa a renunciar ou professar determinada crença religiosa. Esse seria um exemplo de princípio constitucional que possuiria validade incondicional.

Allan aponta também para a necessidade de distinção dos princípios do Direito que decorrem de uma derivação conceitual de um paradigma liberal, daquelas leis positivadas que visam implementar tais princípios por meio de regramentos precisos. Para Brudner, os princípios do Direito extraídos da vontade comum possuiriam caráter de autoimposição, pois ali, na vontade comum, estaria toda a matiz axiológica que dá fundamento para o estabelecimento do Direito, de modo que quando em situações nas quais a lei positivada contrariasse tal matiz, essas leis poderiam ser ignoradas (“desobediência civil”), pois inconsistentes com o sistema primevo estabelecido.  O ignorar de leis ilegítimas nesse sentido, poderia se dar quando o desrespeito se fizesse presente tanto na ordem formal (a previsão de uma lei que não foi submetida ao consentimento do governado ensejaria na liberdade de ignorá-la) como na material (ausência de consistência de conteúdo com relação às bases axiológicas de autoimposição).

Para Brudner, governar por leis gerais e de conhecimento público seria uma condição de autoridade válida. A observância aos requisitos necessários de validade formal da lei ensejariam no reconhecimento legítimo dessa enquanto tal, pois essa possui sua própria forma.

Ainda para Brudner, a ruptura paradigmática da constituição liberal pela constituição igualitária se dá mediante a adoção de um código constitucional escrito. O novo paradigma passa a considerar as condições de autogoverno para todos, incluindo aí a previsão para todos dos bens fundamentalmente necessários para a autonomia individual. É daí que nasce a ideia de cidadania – um tipo de igualdade moral.

A partir desse novo paradigma, é dado o dever aos governantes de efetivar a igualdade defendida também mediante a previsão num direito escrito supremo, de modo que a condição para a autoimposição da nova ordem constitucional seria o enraizamento dessa constituição por meio do direito positivado.

Daí a preocupação de Brudner em se ter uma Constituição escrita, já que tal texto normativo possibilitaria à assembleia eleita recuperar a jurisdição que, em dado momento, teria sido tomada indevidamente pelo Judiciário.

Já a preocupação de Allan reside na limitação conferida pelo texto normativo numa Constituição escrita, vez que os direitos fundamentais não poderiam ser por todos previstos em palavras gerais, visto que suas implicações totais necessárias poderiam acabar deixando de ser consideradas no processo democrático – ensejando assim numa não observância dessa necessidade.

Allan argumenta que ao juiz, na qualidade de intérprete dos valores constitucionais, estaria conferido o papel de se atentar para que quando houvesse uma ameaça aos direitos fundamentais, concluísse que determinada construção previamente estabelecida não estaria atendendo às suas exigências mais amplas.

A pretensão do artigo de T. R. S. Allan é a de esclarecer o papel do Judiciário, tomando como base a Constituição da common law. A função desse poder seria a de mediador entre o Estado e o cidadão. O poder do Judiciário em se fazer valer o Estado de Direito não decorreria do texto previsto numa constituição escrita, mas, antes disso, se estabeleceria nos princípios norteadores que fundam e legitimam a própria ideia de Estado. O Judiciário deveria assim representar o julgamento que o próprio cidadão, de maneira consciente e por meio da razão, também chegaria sobre determinada questão.

Allan interpreta o trabalho de Brudner como apoiando de maneira semelhante às ideias que também defende (critérios axiológicos prévios à Constituição é que dão ensejo à formação do Estado enquanto promulgador dos direitos fundamentais dos cidadãos). A diferença reside no fato da desnecessidade, para Allan, de uma Constituição escrita com o fito de assegurar a efetivação desses direitos fundamentais.

A interação entre o Legislativo e o Judiciário estaria mais para uma questão de elaboração de exigências intrínsecas do Direito do que seguir preceitos prescritivos previstos num texto constitucional. Ao considerar que os textos, principalmente aqueles que contêm expressões abstratas, acabam muitas vezes dando definições e instruções ambíguas ou demasiadamente genéricas, e em sendo a história um processo dialético de contestações e evoluções, a interpretação estaria sempre presente, seja com regramentos escritos ou não.

Allan encerra seu escrito demonstrando que pela independência estreita (presente também no trabalho analisado de Brudner) da teoria política e da prática jurídica, a conclusão que se chega é no sentido de constatar uma permeabilidade da divisão entre o real e o ideal, de modo que o real estaria sempre tateando o ideal num processo de descobrimento de sua própria natureza.


Notas e Referências:

[1] Síntese de Seminário apresentado pelo autor na disciplina “Sistemas Jurisdicionais, Jurisdição Constitucional e Segurança Jurídica”, da professora Estefânia Maria de Queiroz Barboza, no Mestrado em Direito da UNINTER.

[2] Professor da Universidade de Cambridge: https://www.law.cam.ac.uk/people/academic/trs-allan/16

[3] Professor da Universidade de Toronto: http://www.law.utoronto.ca/faculty-staff/full-time-faculty/alan-brudner

[4] Allan cita no texto, a título de exemplo, as teorias de Hayek, Nozick, Dworkin e Rawls.

Allan, T. R. S., In Defence of the Common Law Constitution: Unwritten Rights as Fundamental Law (January 22, 2009). LSE Legal Studies Working Paper No. 5/2009. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1331375 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1331375


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