A decretação da prisão preventiva eo afastamento automático das cautelares: Um equívoco a ser superado

09/02/2015

Por Fabiano Oldoni - 09/02/2015

Um fato corriqueiro que vem ocorrendo nas varas criminais e que, penso, precisa ser discutido, é a decretação da prisão preventiva sem que se fundamente o afastamento das cautelares diversas da prisão.

A regra vista no dia a dia e confirmada pelos nossos tribunais é de que, recebendo o Auto de Prisão em Flagrante, o juiz deverá, fundamentadamente, optar por uma das três medidas previstas no artigo 310 do CPP:

I - relaxar a prisão ilegal;

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Da leitura do inciso II, nos parece que não basta apenas o juiz, após homologar o flagrante, decretar a preventiva fundamentando a existência de algum requisito do artigo 312 (garantia da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria).

Deve ele, expressamente, dizer por que são inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, conforme orientação do inciso II, in fine, do artigo 310.

Penso que a decretação da preventiva não afasta, automaticamente, as cautelares. Ora, se a cautelar é uma medida mais favorável ao detido, evidente que para ser afastada precisa o juiz expor os motivos.

Isso, a meu ver, também está previsto no artigo 282, § 6o, do CPP:

A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).

Vamos imaginar uma escada, onde cada degrau corresponde a uma decisão que o juiz poderia tomar: 1. Relaxar ou homologar o flagrante; 2. Reconhecer a necessidade de se garantir a ordem pública ou econômica, a instrução criminal e a aplicação da lei penal; 3. Afastar as cautelares, fundamentadamente; 4. Decretar a preventiva.

Poderão dizer que já no passo 2 (Reconhecer a necessidade de se garantir a ordem pública ou econômica, a instrução criminal e a aplicação da lei penal), estaria o juiz decretando a preventiva. Discordo.

Se observarmos o disposto no artigo 282, inciso I, do CPP, veremos que os requisitos para a decretação das cautelares são os mesmos da preventiva, apenas numa redação diferente:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;

Então, ao reconhecer que algum requisito está presente (passo 2), o juiz afasta a liberdade provisória, podendo escolher entre conceder as cautelares ou decretar a preventiva. Porém, para decretar a preventiva deverá afastar expressamente as cautelares.

O que quero dizer é que quando o juiz entende que estão presentes os requisitos que autorizam a preventiva, está também dizendo que estão presentes os requisitos que autorizam as cautelares, já que são os mesmos. A partir daí, deve ele, antes de decretar a preventiva, afastar uma a uma as cautelares.

Digo uma a uma, pois as cautelares apresentam os motivos que pretendem acautelar, sendo que as dos incisos I, V, VIII e X relacionam-se com a aplicação da lei penal, as dos incisos II, VI, VII e X com a garantia da ordem pública ou econômica e as dos incisos III e IV, com a garantia da instrução criminal[2].

Assim, se o juiz entende, por exemplo, que está presente, no caso concreto, o perigo da ordem pública, deve, antes de decretar a preventiva, fundamentar porque não são cabíveis as cautelares dos incisos II, VI, VII e X do artigo 319. Afastadas todas estas cautelares, permitido está ao juiz, então, decretar a segregação provisória.

O que não pode, como tem ocorrido, é decretar a preventiva diretamente, sem fundamentar o afastamento das cautelares diversas da prisão.

É bem verdade que o artigo 321 do CPP traz redação que autorizaria esta prática:

Art. 321.  Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.

Pela leitura deste artigo, se ausentes os requisitos da preventiva, poderá o juiz conceder a liberdade provisória e impor, se for o caso, as medidas cautelares.

Penso que este dispositivo está em conflito com os artigos 282 § 6º e 310, inciso II, in fine.

É que pelo artigo 321, subentende-se que estando presentes os requisitos que autorizam a preventiva, automaticamente estão afastadas as cautelares, enquanto nos artigos 282 § 6º e 310, inciso II, a lógica é inversa: somente decreta-se a preventiva se não for cabível as cautelares.

Este paradoxo é perigoso, na medida em que o artigo 321 tem autorizado os juízes criminais a decretar preventiva sem fundamentar o afastamento das cautelares.

Ora, se temos contradição no texto legal, precisamos escolher qual regra prevalece. O que não pode é deixar ao arbítrio de cada juiz a escolha, sob pena do solipsismo judicial.

Para isso, penso que Wittgenstein e Streck oferecem mecanismos apropriados para a solução, já que ambos se complementam.

Seja pelos jogos de linguagem ou pela hermenêutica, o certo é que primeiro precisamos compreender para depois interpretar, afinal, a própria compreensão é um estado, de onde nasce o emprego correto[3].

E esta compreensão não passa pela observação apenas da gramática (escrita), mas do sentido da escrita (linguagem) dentro de um contexto em que emprego a gramática. Isso informa porque a mesma palavra pode designar várias coisas diferentes.

Segundo Wittgenstein, os jogos de linguagem figuram muito mais como objetos de comparação que, através de semelhanças e dissemelhanças, devem lançar luz sobre as relações de nossa linguagem. Segundo o autor, uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão panorâmica do uso de nossas palavras. Falta caráter panorâmico (clareza) à nossa gramática. E é justamente essa visão panorâmica que permite a compreensão[4].

Pela hermenêutica filosófica, não se escolhe uma decisão a ser tomada, mas toma-se a decisão mais adequada constitucionalmente. E esta decisão é aquela que está de acordo com a comunidade política.

Explica Streck[5]:

E esse ponto é absolutamente fundamental! Isso porque é o modo como se compreende esse sentido do direito projetado pela comunidade política (que é uma comunidade – virtuosa – de princípios) que condicionará a forma como a decisão jurídica será realizada de maneira que, somente a partir desse pressuposto, é que podemos falar em respostas corretas ou adequadas.

Ora, e qual foi a intenção da “comunidade política” ao modificar as regras de prisão e liberdade e incluir as medidas cautelares diversas da prisão, com a Lei 12.403/11, senão adequar o CPP à Constituição Federal? Qual foi a intenção do legislador senão evidenciar que a prisão é exceção e a liberdade, mesmo que condicionada a medida cautelar, é a regra?

A partir daí podemos compreender que as mudanças trazidas pela Lei 12.403/11 privilegiam a liberdade e a sua privação exige do juiz uma fundamentação adequada, nos termos do artigo 93 IX da CF.

A hermenêutica tem papel importante nesta nova leitura, já que para ela a aplicação da Constituição representa a concretização do conteúdo substancial e dirigente do texto, apostando realização dos direitos substantivos, que tem caráter cogente, de onde decorre uma maior valorização da jurisdição constitucional[6].

Portanto, não tenho dúvidas de que na contradição aparente entre as regras do jogo, e aqui trabalhando com a ideia de Alexandre Morais da Rosa[7], somos obrigados a aceitar como prevalente aquela que está mais adequada à Constituição Federal e à intenção da comunidade política: necessidade do juiz fundamentar expressamente o afastamento das cautelares, para, só então, decretar a preventiva.

Sem título-3

 Fabiano Oldoni é Doutorando em Ciências Públicas na Escola de Direito da Universidade do Minho-Portugal; Possui mestrado em Ciência Jurídica e Especialização em Direito Penal Empresarial pela Univali. É professor titular das disciplinas de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Processual Penal pela Univali. Coordenador do Projeto de Execução Penal junto ao Sistema Penitenciário de Itajaí (convênio Univali/CNJ). Advogado integrante de Silva & Oldoni Advogados Associados. Blog em www.fabianooldoni.blogspot.com.br

__________________________________________________________________________________________________________________

Imagem ilustrativa do post: Prison Bars

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/5997920696
Sem Alterações
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/legalcode
__________________________________________________________________________________________________________________

[2] Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

IX - monitoração eletrônica. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

[3] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 74.

[4] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 67-68.

[5] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4 ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 108.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 3 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 176.

[7] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura