Por Luiz Ferri de Barros - 24/11/2015
Depois de sucesso no cinema e nas locadoras, em sucessivas exibições na Globo e repetidas reexibições nos canais por assinatura, o filme "O Gladiador", ganhador de cinco Oscars e responsável pela consagração do ator australiano Russel Crowe, transformou-se hoje numa daquelas reprises que quase somente assistimos em noites de insônia.
Quando o cinema retrata a insanidade de imperadores romanos deixa impressão de exagero. Mas nem Hollywood é capaz de exagerar a crueldade dos "césares loucos". Com as naturais deformações da ficção cinematográfica, há muito de verdadeiro no filme.
O gladiador protagonizado por Crowe é desafiado pelo imperador Cômodo (Joaquin Phoenix) para combate mortal. É difícil crer que um césar se lançasse em lutas mortais no circo? No caso de Cômodo é verídico.
Aliás, ele próprio foi conhecido por "Commodus, o Gladiador". Segundo Ribadeaux Dumas ("La folie au pouvoir". Les Productions de Paris, 1966), Cômodo participou de 135 combates vitoriosos na arena. As lutas eram arranjadas mas esse césar era temível lutador. Há uma razão biográfica. Dizia-se que ele era fruto de amores furtivos de sua mãe com um gladiador e não filho de Marco Aurélio. Mas, diferente da ficção do cinema, Cômodo morreu envenenado pela amante, tendo recebido o "coup de grâce" de um gladiador porque de tão forte demorava a sucumbir.
O ensaísta e escritor Gilberto de Mello Kujawski analisa "a loucura dos césares" em capítulo do livro "Império e Terror" (215 páginas; Ibrasa Editora).
Dissecando de forma ampla a questão da ilegitimidade do poder como origem do terror em Roma ao longo da obra, Kujawski apresenta nesse capítulo outras chaves para se entender os imperadores enfurecidos. Por exemplo, informa que Cômodo "gostava de começar o dia degolando pessoalmente um tigre, considerava-se a nova encarnação de Hércules (...) e era tão hábil no tiro de flecha que matou cem leões de uma única vez no anfiteatro, para espanto da multidão ali reunida".
"O Gladiador" mostra o desejo carnal de Cômodo pela irmã e esta, que já era mãe de um filho com outro homem, conspirando por sua morte. As conspirações, as relações incestuosas dos césares com suas irmãs ou mães e os crimes intra-familiares compõem clima verídico nesses filmes. Tudo girava em torno da sucessão no poder.
Por influência da tradição egípcia, a primazia da sucessão era dada pela linha materna. O casamento entre irmãos garantia a permanência da dinastia. A roda de conspirações e crimes girava mais rápida no caso de vários possíveis herdeiros do trono. Mesmo no auge da depravação romana é difícil imaginar que uma criança passasse incólume pelo assassinato de um irmão praticado pela mãe para garantir-lhe o trono. Traumas e modelos de conduta ignominiosos derivados destes fatos contribuíam para a psicopatia dos césares.
Mas Kujawski não aborda esses aspectos; vai além deles, buscando interpretação psicológica e humanista mais aprofundada, ao afirmar: "A loucura dos césares não se explica por desarranjos cerebrais, nem por conflitos emocionais não resolvidos, nem por predisposição genética, e sim pelo caos político e social preexistente em Roma. (...) A demência dos imperadores foi a introjeção, a internalização do terror que estremecia a sociedade romana. O poder ilegítimo devora-se a si mesmo, canibaliza-se na pessoa do príncipe, protagonista de teatro de terror no qual ocupava o lugar central, na figura de uma besta feroz travestida em divindade mitológica."
Em entrevista por e-mail, o escritor sintetiza sua visão sobre os césares loucos, em especial os "césares atletas", como era o caso de Cômodo: "A loucura dos césares é uma loucura política, uma explosão do ego inflado de poder. Um poder subjetivamente ilimitado, imune a toda repressão legal ou moral. A inflação do poder teve nos césares atletas uma demonstração física, feita da tensão máxima da musculatura e dos nervos nas competições circenses, arremesso de dardos e flecha, estrangulamento de feras, lutas corpo-a-corpo, etc. Nessas competições a força sobre-humana exibida pelos césares atletas mimetizava-os com os deuses e semi-deuses, Hércules, por exemplo. Foi o salto da besta ao divino executado pelos césares loucos, que se travestiam de deus. Nesse salto, passavam por cima da dimensão humana. Sem dúvida que intervinham fatores psiquiátricos de ordem geral, mas o ponto central é a loucura derivada da 'hybris', da soberba, da desmedida do poder, à qual não resiste impune a alma humana."
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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