Em 9 de março de 2015, foi sancionada a Lei nº 13.104[1] que definiu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o incluiu no rol dos crimes hediondos, além da previsão de aumento de pena em razão de algumas determinadas circunstâncias, tudo isso com o objetivo de dar maior robustez à repressão à violência doméstica e familiar prevista na Lei Maria da Penha[2]. A partir da perspectiva de que a violência doméstica e familiar é um fenômeno estrutural, complexo, multifatorial e transgeracional, a LMP traz diversos mecanismos não apenas para coibir e prevenir a violência doméstica, mas também para apoiar as mulheres em situação de violência, visando a diminuir as desigualdades (re)produzidas no campo do direito[3]. Dentre eles estão à assistência jurídica qualificada, conforme acertadamente asseguram os artigos 27 e 28. Ao contrário do Código de Processo Penal[4] que para a intervenção de terceiro depende de manifestação prévia do Ministério Público (art. 272 do CPP) e autorização judicial (arts. 269 e 273 do CPP), a LMP estabelece que em “todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado”. Sabe-se que o Código de Processo Penal reconhece a intervenção da vítima através da assistência de acusação na fase processual, consoante o art. 268 do CPP. Os poderes do assistente, assim compreendido como a vítima, seus representantes legais e sucessores (art. 31 do CPP), são aqueles previstos no art. 271 do CPP, lhe sendo possível requerer a produção de provas, participar da instrução processual, interpor recursos, dentre outros. Um aspecto importante da disciplina da assistência qualificada prevista na Lei Maria da Penha que se difere do assistente de acusação para os demais crimes e contravenções, é que a intervenção está assegurada já em sede policial e não somente após o recebimento da denúncia. Em estudos dos mais variados sobre essa violência estrutural de gênero, vale destacar o artigo de Renata Tavares Costa que elenca os quatro pilares da assistência qualificada no crime de feminicídio: “o direito à justiça, à verdade, à memória e à reparação. E estes direitos irão definir o papel do defensor da mulher.”[5] Assim, a assistência qualificada à vítima de feminicídio é a defesa dos direitos da mulher no Tribunal do Júri com vistas a minimizar ou evitar a revitimização. A partir daí é que a advogada criminalista deve atuar. Durante a investigação ou se a atuação se der no curso do processo busca-se entender a história em todos os seus detalhes. Entender o caso, amealhar o maior número de informações e documentos possíveis e compreender as ações tomadas até aquele momento pelas autoridades de investigação e pela Justiça. No entanto, a atuação nesses casos vai muito além da jurídica. A necessidade de se acolher, de se explorar os fatos fora dos limites das informações oficiais, o cuidado no trato com as pessoas envolvidas, isso sim requer habilidade que nem sempre se tem. É importante estreitar o laço com a figura da vítima, com seus familiares e com o contexto anterior ao crime, o que a advogada criminalista tem em sua essência. O diferencial da atuação da advogada criminalista no julgamento de um feminicídio é esse: saber, entender e reconstruir a história da vítima da forma mais fidedigna para levar ao conhecimento das autoridades e do Conselho de Sentença, mostrando quem era a vítima, sem deixar que ocorra a revitimização. A partir do conhecimento de toda essa estrutura de relacionamento, é possível traçar estratégias que subsidiam uma acusação forte. É ideal sempre assumir o caso desde o inquérito, pois assim a assistência vai construindo as estratégias de forma mais robusta e consegue dar o devido acolhimento àquela família, de modo a entender o panorama dos fatos. Claro, nem sempre é possível. Existem situações em que a entrada de uma advogada acontece anos depois do crime. Afinal, a entrada do assistente de acusação pode acontecer em qualquer momento do processo anterior ao trânsito em julgado. A atuação em casos já em andamento, gera um desafio a todos, à advogada, à família por ter que colocar a par de tudo o que foi feito até então e conseguir estabelecer os próximos passos. É importante que se diga que não há um roteiro fixo de estratégias processuais em casos de feminicídio. Cada caso oferece elementos distintos e que possibilitam ou impedem determinadas estratégias. A experiência conta muito, pois se desenvolve um feeling em torno das iniciativas que a advogada deve tomar. Assim com o acolhimento nato que a advogada criminalista possui e precisa ter, a atuação em casos anteriores se soma para fazer justiça. Outro relacionamento importante ao assistente de acusação é junto ao Ministério Público. A atuação pela vítima deve zelar pelo auxílio às autoridades e não o tumulto ou até mesmo fazer às vezes do acusador propriamente dito. A criminalista não é protagonista, ela deve atuar agregando de maneira inteligente ao conjunto probatório da parte acusadora. Assim, a criminalista pode se manifestar ao longo de toda sessão plenária, arguir testemunhas, acusados e informantes, intervir, pedir pela ordem, etc. Durante os debates orais, o tempo dedicado a assistente não é limitado pela Lei e, dentro do tempo permitido ao Ministério Público, é acordado o tempo necessário para cada um. Importante destacar que nos debates orais, a assistência levará aos Jurados informações sobre a vítima, quem era a mulher que faleceu a partir de uma violência no ambiente familiar, sobre a forma como se deu o feminicídio. A honra da vítima deve ser sempre enaltecida e defendida pela advogada ao Conselho de Sentença, e a exemplo disso é a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal que recentemente declarou a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra utilizada por muitos acusados nestes casos de feminicídio, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 779. Vale transcrever a ata de julgamento[6]:
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Notas e referências
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em 22.08.2023
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 22.08.2023
[3] Ver: NOTA TÉCNICA Nº 04/2022/NUDEM/DPE-PR. https://www.defensoriapublica.pr.def.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2022-10/nota_tecnica_no_04_22_-_assistencia_qualificada_vitima_juri.docx.pdf
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em 22.08.2023
[5] COSTA, Renata Tavares. O papel do assistente da mulher previsto no art. 27 da Lei Maria da Penha nos Crimes de Feminicídio no Tribunal do Júri. In: Gênero, sociedade e defesa de direitos: a Defensoria Pública e a atuação na defesa da mulher, fls. 223.
[6] Acesso em 23.08.2023 ainda pendente de juntada o acórdão: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm . Acesso em 22.08.2023 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 22.08.2023 Ver: NOTA TÉCNICA Nº 04/2022/NUDEM/DPE-PR. https://www.defensoriapublica.pr.def.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2022-10/nota_tecnica_no_04_22_-_assistencia_qualificada_vitima_juri.docx.pdf http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em 22.08.2023 COSTA, Renata Tavares. O papel do assistente da mulher previsto no art. 27 da Lei Maria da Penha nos Crimes de Feminicídio no Tribunal do Júri. In: Gênero, sociedade e defesa de direitos: a Defensoria Pública e a atuação na defesa da mulher, fls. 223. Acesso em 23.08.2023 ainda pendente de juntada o acórdão: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690 |
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