A Cosmovisão da Educação

10/03/2017

Por Julia Santi Fischer – 10/03/2017

Os direitos fundamentais são comumente estabelecidos a partir de um agrupamento de categorias de direitos que representaram a consolidação histórica de determinadas reivindicações e conquistas. A partir disso, embora não sem críticas, é possível falar em dimensões de direitos.

Os direitos civis e políticos (de primeira dimensão) podem ser descritos como direitos negativos, ou seja, aqueles em que se pressupõe a não intervenção do Estado na vida e nas relações do cidadão, efetivando a liberdade. Já os direitos econômicos, sociais e culturais (de segunda dimensão) pelo contrário, impõem ao Estado prestações positivas em relação ao indivíduo, operando em favor da igualdade. Os direitos de terceira dimensão alcançam âmbito internacional, tangenciando o campo da solidariedade, meio ambiente, desenvolvimento, comunicação e direitos transindividuais. Ainda, para Paulo Bonavides, a quarta dimensão de direitos se pauta em democracia, informação e pluralismo (2011, p. 570-572) e a quinta, em direitos de paz (2011, p. 579-590).

O objetivo a que ora se propõe é abordar o direito humano à educação, de segunda dimensão, previsto, inicialmente, em nível internacional, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, documento emergente logo após o término da Segunda Guerra Mundial, sendo o Brasil um dos países signatários.

Com efeito, dispõe no artigo 26º, a DUDH:

1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Por outro lado, em nível nacional, o direito à educação está estabelecido no art. 6º da Constituição Federal de 1988, no rol dos direitos sociais. Complementando essa previsão, o texto constitucional estabelece a competência comum dos entes federativos para promover o acesso à educação (art. 23, V) e dedica, dentro do título VIII, relativo à Ordem Social, o Capítulo III, Seção I, para tratar do direito à educação, o qual estabelece, no art. 205, que:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Para além disso, é importante notar também que, conforme o art. 206, incisos II e III, o ensino deve ser prestado de forma que propicie a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e o “pluralismo de ideias”. Ademais, é considerada obrigatória, nos termos do §1 do art. 208.

A problemática que envolve o panorama educacional se dá na antítese entre o caráter obrigatório e as liberdades fundamentais. Isso porque, dentro do contexto educacional atual, parece haver uma ligação automática entre escola e educação, todavia, esse liame não é necessariamente pertinente. Os espaços escolares são entes artificiais, que passaram a existir em determinado contexto, do que se deduz que, por um longo período da humanidade, o sujeito desenvolvia seu aprendizado sozinho ou em um ambiente não hierarquizado nos moldes escolares, sendo o processo de formação intelectual e social dependente de vários outros fatores, não apenas da existência ou inexistência de um espaço escolar.

Historicamente, de acordo com o documentário “La Educación Prohibida”, a escola tem origem no modelo espartano, que se destinava a fins essencialmente militares, sendo que o Estado espartano se desfazia dos cidadãos que não atingissem as expectativas visadas pelas aulas obrigatórias e pelos castigos, tendo a disciplina características sádicas e violentas, afim de que o indivíduo, ao fim do processo, vivesse em função da defesa da pólis.

No mais tardar da evolução histórico-social, do lado ocidental do globo, o controle do ensino era realizado por instituições religiosas - enfaticamente, pela igreja católica - e, ao final do século XVIII e início do século XIX, no período caracterizado pelo despotismo esclarecido, na Prússia, criou-se o conceito de educação que é utilizado ainda nos tempos atuais: pública, gratuita e obrigatória (La Educación Prohibida, 2012).

Como meio de evitar eventuais revoluções, como as que ocorriam em território francês na mesma época, os monarcas prussianos inseriram alguns princípios iluministas no modelo educacional vigente, embora sem excluir o caráter governamental absolutista. Baseada em divisões de classes e castas, fomentando a disciplina e a obediência, resgatadas do modelo espartano de educação, a educação atuara em prol da docilização e obediência do povo, formando não cidadãos, mas súditos desse Estado (La Educación Prohibida, 2012).

Em vista dos resultados positivos obtidos, tal modelo migrou da Prússia às Américas e ao restante da Europa, que o importaram com um discurso de oportunizar o acesso à educação para todos, sob o pretexto de igualdade, para mascarar sua essência despótica, que busca perpetuar a coerção e o controle sobre as massas (La Educación Prohibida, 2012).

Para Foucault, as instituições escolares, assim como os hospitais, as prisões e os quarteis, são consideradas instituições de sequestro, que atuam de forma disciplinadora ao confinarem os corpos de forma compulsória para realizar o adestramento do indivíduo. Utilizando de meios como a vigilância atrelada a hierarquia, a aplicação de sanções normalizadoras – como por exemplo, o controle de horários, dos discursos, do corpo e sexualidade e da maneira de agir – que, caso contrariadas, incorrem em micropenalizações, e do exame, a moldagem docilizante é efetuada (2007, p. 149).

A partir dessa concepção, entende-se que a referida instituição atua de forma mitigante em relação às subjetividades e individualidades, tornando o estudante padronizado, no intento de torna-lo eventualmente útil para o sistema em vigor, colaborando para a perpetuação do mesmo.

O direito à educação também pode ser analisado a partir de outra perspectiva teórica, como no garantismo jurídico desenvolvido por Luigi Ferrajoli, em sua obra “Principia Iuris. Teoria del derecho y de la democrazia”, especialmente no volume II, no qual traz ao debate duas questões bastante pertinentes sobre as dimensões do direito à educação: a) o que quer dizer educação? b) Qual é a natureza e o papel da escola aberta a todos?

Mais tarde, elenca outros três questionamentos: a) deve a escola inculcar certezas ou educar para a dúvida? b) Deve consistir em um simples aprendizado orientador para a inserção dos jovens no mundo do trabalho como produtores ou consumidores ou constituir o espaço de formação do ser como pessoa e para o exercício da cidadania? c) Deve a escola selecionar grupos, diferenciando a elite e a massa, reproduzindo e acentuando as desigualdades e hierarquias presentes na sociedade ou oferecer a todos oportunidades iguais, que atuem como minimizadoras de diferenças socioeconômicas? (2011, p. 399).

A resposta a essas indagações, para Ferrajoli (2011, p. 402), está representada no fato que “la función pública de la escula há consistido siempre y consiste em su papel de espacio público de socialización”, facilitando a existência um espaço de encontro entre jovens de classes sociais/econômicas, culturas e religiões distintas, bem como que “ha sido y debería continuar siendo, tanto más em la actual sociedade multicultural, um lugar de educación para la igualdad, el conocimiento recíproco, la tolerancia y el respeto de los demás y de los diversos”.

Percebe-se, então, que a função pública da escola, para Ferrajoli, transpassa a função de apenas garantir o acesso à educação, exercendo concomitantemente o papel de ponte para a transformação de conceitos e da cultura. Idealiza-se que esta venha a promover a paz, migrando de uma cultura discriminatória para uma cultura respeitosa em relação à diversidade, contribuindo para uma sociedade livre, justa e solidária, que respeite os princípios fundamentais e que venha a alcançar, se transposto para um contexto brasileiro, os objetivos fundamentais elencados constitucionalmente no art. 3º da Constituição Federal.

Ao distinguir o ponto de vista externo, ético-político, do ponto de vista interno, governamental, cujas engrenagens funcionam a favor do zelo às estruturas sociais da forma em que se encontram, percebe-se que, se considerada a liberdade como bem mais importante do sujeito, deve-se impor limites à maneira com que o Estado presta o referido direito-dever.

Limitar o controle das instituições governamentais responsáveis pela educação não excluiria o caráter de importância atinente à educação como direito, tampouco o diálogo sobre conceitos importantes para uma sociedade coexistente, tolerante e pacífica, mas remodelaria o modus operandi do sistema educacional. Isso daria ao indivíduo um espaço horizontal de pensamento e vivência, sem hierarquias ou autoritarismo, o que automaticamente remonta a mais liberdade e autonomia, assim como responsabilidade pelos resultados intelectuais obtidos, respeitando o ritmo e capacidade de cada um.

Portanto, há necessidade de uma reforma no modelo educacional vigente, de modo que se alterem os métodos pedagógicos anacrônicos, obsoletos, que perpetuam uma concepção de sistema. Assim, propiciar-se-ia ao estudante o livre pensamento e a emancipação, ampliando a cosmovisão e as noções de coletividade e convívio social, dentro da ideia de um estado de paz, sem relações de submissão aos poderes e padrões estabelecidos.


Notas e Referências:

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. Teoría de la democracia. Madrid: Editorial Trotta, 2011, v. 2.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.

LA EDUCACÍON PROHIBIDA. Direção: Gérman Doin. Argentina: Eulam Producciones, 2012. 145’19’’. Disponível em: <http://educacionprohibida.com/>. Acesso em fev. 2017.


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Julia Santi Fischer. Julia Santi Fischer é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ e bolsista de Iniciação Científica no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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