A CORTE CONSTITUCIONAL DE COLOMBIA ENVIA LEMBRANÇAS: O NOSSO “ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL” DE TODOS OS DIAS

01/08/2020

Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro de Jesús Lora Alarcón

Há alguns anos a Corte Constitucional colombiana sustentou a existência naquele País de um estado de coisas inconstitucional – ECI -. La contundência da expressão, aliada ao fato de se originar de uma Corte jovem, oriunda da Constituição de 1991, de imediato teve um efeito impactante e gerador de opiniões na doutrina latino-americana, algumas em sentido favorável e outras atacando o “ativismo do tribunal”. O caso é que a sentença T-590 de 1998, que declarou o ECI pela omissão governamental em adotar medidas para garantir a segurança dos defensores de direitos humanos, foi reproduzida amplamente em redes, artigos de jornal e publicações científicas no campo do Direito.  

Vale a  pena hoje sua lembrança, a propósito do que vivenciamos no Brasil - país com uma emergência sanitária de amplo espectro e alastre no tempo, mal tratada desde o começo pelas autoridades em matéria de saúde; de governo “surpreendido” (???) no meio da pandemia, mas que vinha com cerceamentos nos investimentos em pesquisa; de crise  negada sistematicamente pelo Chefe do Executivo, menosprezada e desdenhada em termos terapêuticos desde a “altura e sabedoria” presidencial ao se promover uso de medicamento que não possui comprovação científica para o combate ao vírus que a ocasiona; de isolamento sempre flexível por alguma ou outra causa, seja para participar em aglomerações pro-governo ou para receber o auxílio na fila da Caixa Econômica Federal, dentre outras; de situações que requereram que o próprio STF  determina-se na ADI 6341/DF, em alto e bom tom, aquilo que tinha decidido desde o 2018 na ADI 2303/RS, diante da impossibilidade política de se implementar coerência e consistência unificada às políticas públicas, como é desejável no sistema de federalismo cooperativo instalado em 1988, isto é, que a competência para tratar da política pública de saúde é concorrente. E a lista segue, posto que abrindo o jornal a dois dias desta coluna observamos que a 6 meses do decreto de emergência e sendo o Brasil um dos países que menos faz testes no mundo, o Ministério da Saúde reconhece que tem em estoque 9,85 milhões de testes, adquiridos com recursos públicos, sem a garantia de todos os insumos e reagentes para seu uso. Enquanto isso, o consórcio jornalístico – por sinal, surgido ante a modificação metodológica de entrega de informações realizada em 5 de junho pelo próprio Ministério, alteração alvo de contestação no STF a través da ADPF 690/DF, relatada pelo Min. Alexandre de Moraes, cuja decisão obrigou a que mantivesse, de forma integral e diariamente, a divulgação dos dados epidemiológicos relativos à pandemia – diz que atingimos mais de 90 mil falecimentos no país, sem que exista, de fato, um choque social evidente, senão a constatação de uma espécie de “naturalização” da pandemia. 

Mas, voltando à Corte colombiana, esta determinou que os defensores de direitos humanos se encontravam em grave situação de vulnerabilidade, que os tornava um “grupo em risco permanente” e que “(...) Nesse tema não são possíveis ambiguidades. (...) muito embora as instruções presidenciais continuam os ataques aos defensores (...) e há condutas omissivas do Estado quanto a sua proteção, máxime quando se coloca em seu conhecimento o clima de ameaças contra esses ativistas. Esta é uma situação abertamente inconstitucional, à qual o juiz constitucional não pode ser indiferente”. Destarte, decidiu o Colegiado que a atuação do Presidente era em alguns casos insuficiente e em outros casos simplesmente não existia, enquanto continuavam as ameaças, a natureza e o grau crítico e delicado da situação.

As diretrizes dessa sentença foram ampliadas nos pronunciamentos da Corte referentes às Tutelas 719 de 2003 e 1191 de 2004, na quais para determinar o ECI a Corte definiu: “(...) a proibição de que a Administração adote decisões que criem um risco extraordinário para as pessoas em razão de suas circunstâncias, com o consequente amparo aos afetados. (...) O Estado está obrigado a outorgar e desenvolver ações positivas para assegurar esta proteção especial, mais ainda, está obrigado a evitar qualquer tipo de atividade que possa ampliar o grau de exposição a riscos extraordinários destas pessoas”.

Logo depois a Corte ratificou sua decisão na ação de tutela 025 de 2004, que declarou o ECI da população deslocada. Na oportunidade caracterizou as conjunturas e condições fáticas para a determinação da inconstitucionalidade constatando: “1)A vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetem a um número significativo de pessoas; 2) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento das suas obrigações para garantir os direitos; 3) a adoção reiterada  de ações como a tutela, para garantir o direito quebrantado, advertindo que se cada um dos afetados utiliza-se seu direito de acessar o judiciário, se produziria uma inusitada congestão judicial; 4) a não expedição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a vulneração dos direitos; 5) a existência de um problema social cuja solução compromete a intervenção de várias entidades, requer a adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e exige um nível de recursos que demanda um esforço orçamentário adicional importante(...)” [1]

Na mesma decisão a Corte ordenou um seguimento da atuação do Executivo, questão que despertou uma ampla polêmica porque o Executivo ficaria “sob vigilância”, obrigado a fazer relatórios por meio de servidores públicos que comprovassem ao Tribunal e ao país que a decisão estava sendo efetivamente cumprida, transformando a realidade as pessoas afetadas e vítimas do deslocamento forçado.

A Corte, de maneira antecipada, defendeu as medidas de seguimento, expondo que: “Ao ordenar este tipo de medidas, não está desconhecendo a separação de poderes que estabelece a nossa Constituição, nem deslocando às demais autoridades no cumprimento dos seus deveres. Pelo contrário, a Corte, tendo em vista os instrumentos legais que desenvolvem a política de atenção à população deslocada, assim como o desenho da política e dos compromissos assumidos pelas diversas entidades, está apelando ao princípio constitucional de colaboração harmoniosa entre as diversas ramificações do poder, para assegurar o cumprimento dos deveres de proteção efetiva dos direitos de todos os residentes no território nacional. Essa é a competência do juiz constitucional em um Estado Social de Direito respeito de direitos que tenham uma clara dimensão prestacional”. 

Arrematou o Tribunal decidindo que em situações de grave calamidade o Estado tem dois deveres inocultáveis a aos quais deve dar máximo empenho: a) por uma parte, deve adotar as políticas, programas ou medidas positivas para chegar a uma igualdade real de condições e oportunidade entre os coassociados e ao fazê-lo, dar cumprimento a suas obrigações constitucionais de satisfação progressiva dos direitos económicos, sociais e culturais básicos da população em aplicação daquilo que a jurisprudência constitucional denomina ‘cláusula de erradicação das injustiças presentes’. E, por outra, deve-se abster de adiantar, promover o executar políticas, programas ou medidas ostensivamente regressivas, em matéria de direitos económicos, sociais e culturais, que conduzam clara e diretamente a agravar a situação de injustiça, de exclusão e de marginalização que se pretende corrigir, sem que isso impeça avançar gradual e progressivamente ao desfrute pleno de tais direitos. 

A Corte assumiu, desta maneira, a responsabilidade de interferir em situação extrema, com o objetivo de materializar exigências sociais que caracterizam o ECI, vigiando o cumprimento do decidido e garantindo a proteção das pessoas, isto é, efetivando direitos fundamentais em situação de crise. Esta é talvez a mudança mais significativa como consequência da declaração do ECI, porque a Corte deixa de lado a unilateralidade do papel de coibir abusos no contexto das emergências, questão persistente no contexto da América Latina especialmente quando se outorga às forças armadas e à polícia a tarefa de controlar a ordem pública, e se coloca em sentido positivo, de ordenar cumprimento efetivo do texto constitucional e não permitindo que decisões possam ficar no esquecimento ou ao sabor dos interesses conjunturais de grupos minoritários em número porém de grande peso nas decisões estatais.  

Importante anotar que no Brasil, lembremos também, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) protocolou ADPF 347 no STF, fundando nas considerações dos magistrados de Colômbia a pretensão de caracterizar, a través dessa categoria jurídica, a situação do sistema penitenciário brasileiro.  O processo, relatado pelo Min. Marco Aurélio teve decisão cautelar proferida em 09.09.2015, determinando-se por maioria que estando presente o quadro de superlotação carcerária, condições desumanas de custodia e violação da integridade física e moral dos presos “(...) decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.

É perfeitamente compreensível, e adiciono, desejável, que as decisões de qualquer Corte sejam alvo de juízos críticos. Há uma discussão preliminar, com relação à qual já temos nos posicionado em outras oportunidades e que foi revelada em várias oportunidades pelo saudoso Carlos Nino, que gira em torno a se a ótica do jurista deve ser sempre de segunda mão, recebida dos legisladores ou dos juízes, ou se forja uma perspectiva própria e inédita, uma “construção discursiva independente”[2].  Bastante similar era a apreensão do grande professor L. A. Warat, á qual se refere L. Streck, no sentido de que ainda hoje – ou cada vez mais – a produção doutrinária que se relaciona àquilo que se pode denominar de dogmática jurídica continua caudatória das decisões tribunalícias. Ou seja, a doutrina continua doutrinando pouco. Cada ementário constitui um resto de sentido. Migalhas (des) significativas, coagulações de sentidos que, perigosamente, colocam em constante risco a sobrevivência do direito. [3]

Sem abandonar estes elementos de compreensão, achamos importante lembrar da mensagem da Corte colombiana e refletir sobre o tema. Está claro que o ECI não se presta para caracterizar toda e qualquer situação na qual a realidade não retrata o projeto constitucional, porque então nem sequer seria preciso pensar sobre seu conteúdo jurídico. Antes de que se me acuse de ativista, devo manifestar que também considero que muito embora na atual quadra do Constitucionalismo nos cenários de sociedades periféricas ou semiperiféricas o papel do Judiciário seja especialmente relevante para a efetivação do Estado Social de Direito, não é possível construir a realidade aguardada a partir quase que exclusivamente de decisões judiciais. Há, por outro lado quem opine que tendo em vista a qualidade dos relatórios elaborados, em cumprimento dos autos de seguimento instaurados pela Corte, e a própria situação de país, a decisão faz parte de um imaginário simbólico.[4] 

De fato, muita questão deve mudar na nossa época, inclusive no plano epistemológico, mas antes de concluir se simbólico ou não, é preciso convidar à reflexão. O ECI continua a parecer de extrema importância nestes tempos, nada de mal vai fazer pensar sobre a figura emanada da Corte e, pelo contrário, pode ajudar a iluminar caminhos em perspectiva de efetivação de direitos, por supuesto.

  

Notas e Referências

[1] Corte Constitucional Colombiana. Decisão T-025 de 2004.

[2] Carlos Nino. Introdução à Análise do Direito. Pp. 1-10.

[3] L. Streck. Compreender Direito. Notas Introdutórias. P. 10.

[4] https://revistas.unal.edu.co/index.php/anpol/article/view/49412/60370. Acesso em 27.07.2020.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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