A Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos: avanços e desafios

19/11/2019

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

A Convenção sobre os Direitos da Criança celebra, neste ano de 2019, 30 anos, tendo sido aprovada, por unanimidade, pela Assembleia das Nações Unidas, em sua sessão de 20 de novembro de 1989.

A Convenção sobre os Direitos da Criança[1], em seu preâmbulo, lembra os princípios básicos, tais como a liberdade, a justiça e a paz, os quais reconhecem que toda criatura humana é possuidora de dignidade e de direitos humanos iguais e inalienáveis. De modo que os povos das Nações Unidas, consoante esse entendimento, decidiram priorizar o progresso social, o que implica a elevação do nível de vida dos mesmos.

Na realidade, tal documento ratifica o que as Nações Unidas proclamaram e acordaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos; determina que toda pessoa, sem qualquer tipo de distinção, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição, possui os direitos enunciados nesses documentos.

Acentua o fato de que as crianças, tendo em vista a sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e proteção especiais; e enfatiza a importância da família, para que a criança desenvolva sua personalidade, num ambiente de felicidade, amor e compreensão.

Faz entender que a criança deve estar preparada para poder interagir no meio social e para tanto deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas e, em especial, com dignidade, tolerância, liberdade, igualdade, solidariedade e espírito de paz.

Consolida, entre outros aspectos, a importância do respeito aos valores culturais da comunidade da criança e o papel vital da cooperação internacional para o cumprimento dos Direitos da Criança, o que redunda numa melhoria das condições de vida da população infantoadolescente em todos os países, sobretudo dos que vivem em situação de pobreza.

Diversamente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, que sugere princípios de natureza moral, sem nenhuma obrigação, representando basicamente sugestões de que os Estados poderiam utilizar ou não, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado Parte que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como um conjunto de deveres e obrigações aos que a ela formalmente aderiram, a Convenção tem força de lei internacional e assim, cada Estado Parte não poderá violar seus preceitos, como também deverá tomar as medidas positivas para promovê-los. Há que se colocar, ainda, que a Convenção possui mecanismos de controle que possibilitam a verificação no que tange ao cumprimento de suas disposições e obrigações, sobre cada Estado que a subscreve e a ratifica.

Durante a sua elaboração houve quem indagasse[2] até que ponto seria ou não eficaz um documento que definisse critérios universais, tendo-se em conta a existência de acentuadas diferenças políticas, culturais, religiosas, sociais e econômicas entre os mais diversos povos e países.

De fato, a concepção de regras genéricas de caráter universal representou uma tarefa sem precedentes, neste campo, tanto que foram necessários dez anos de trabalho.

Segundo Tânia da Silva Pereira, “a Convenção representa um consenso de que existem alguns direitos básicos universalmente aceitos e que são essenciais para o desenvolvimento completo e harmonioso de uma criança. Representa em definitivo, o instrumento jurídico internacional mais transcendente para a promoção e o exercício dos Direitos da Criança”.[3]

De acordo com Pereira, esse documento internacional objetiva a modificação e consolidação de padrões existentes, introduzindo uma série de questões do maior interesse, como também, “eleva ainda as obrigações políticas e humanitárias das nações para com suas crianças. Comprometera os assinantes da Convenção com padrões sociais, econômicos e legislativos mais altos, obrigando-os a se reportarem à comunidade internacional sobre o bem-estar de suas crianças”.[4]

Da Convenção sobre os Direitos da Criança consideramos oportuno destacar o seguinte dispositivo:

Artigo 19

Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

 

E desse modo, proclama que a infância tem direito a cuidado e assistência especiais. Reconhece a família como grupo fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos seus membros, e em particular das crianças e adolescentes, que devem receber proteção e assistência necessárias para poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade.

Flávia Piovesan[5] nos informa que a Convenção sobre os Direitos da Criança foi o instrumento jurídico internacional com mais ampla adesão, contando com 196 Estados Partes. Foi assinada por quase a totalidade dos países membros das Nações Unidas com exceção dos Estados Unidos da América. Uma das razões se situa no fato de que a Convenção proíbe a pena de morte à criança e, infelizmente, alguns de seus Estados o permitem[6]. A Convenção não só veio complementar a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 de uma forma mais abrangente, mas outorgou a um documento internacional a sua obrigatoriedade aos que aderirem.

Na compreensão de Miguel C. Bruñol:

A Convenção elevou o interesse superior da criança ao caráter de norma fundamental, com um rol jurídico definido que, portanto, se projeta mais além do fundamento do ordenamento jurídico até as políticas públicas e, inclusive, orienta o desenvolvimento de uma cultura mais igualitária e respeitosa dos direitos de todas as pessoas[7].

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988,  dispõe em seu art. 227, caput: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem[8], com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A Constituição Federal de 1988, portanto, tem essa nova base doutrinária, a qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Claude Lefort: “o direito a ter direitos”[9], ou seja, da dinâmica dos novos direitos que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. Desse ponto de partida o sujeito de direitos seria o indivíduo apreendido do ordenamento jurídico com possibilidades de, efetivamente, ser um sujeito-cidadão.

A construção de um novo ordenamento jurídico que se ocupasse seriamente dos direitos da infância e da adolescência era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de menores, de semi-cidadãos para a de cidadãos e mais, trouxe a grande possibilidade de construirmos o paradigma de sujeitos, em oposição a ideologia e de toda uma práxis que coisificava a infância. Portanto, no âmbito interno, o Estatuto da Criança e do Adolescente ao assegurar em seu art. 1º a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como fundamentação doutrinária o artigo 19 da Convenção. Tal regra, aliás, repetiu o que já havia sido inscrito na Declaração Universal dos Direitos da Criança, que no Princípio 9º dispunha: “A criança gozará proteção contra quaisquer forma de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente teve e continua tendo a relevante função, ao regulamentar o texto constitucional, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. Contudo, a mera existência de leis que proclamem os direitos sociais, por si só não consegue mudar as estruturas, antes há que se conjugar aos direitos uma política pública eficaz, que de fato assegure materialmente os direitos já positivados.

Apreende-se que todos os dispositivos presentes no textos jurídicos, seja em âmbito internacional, em especial com a Convenção sobre os Direitos da Criança, seja no âmbito interno, com a Constituição Federal de 1988, bem como na legislação ordinária,sobretudo a Lei 8.069/1990, pretendem a consolidação de um novo modelo social que priorize o desenvolvimento sadio de seus integrantes. Todavia, a tão difícil realidade que estamos vivendo aponta, infelizmente, um modelo societário no mais das vezes desumano e distante dos ideais da fraternidade e, assim, somos levados a questionar: como desenvolver a personalidade da criança, as suas aptidões e todo o seu potencial? Como suscitar nas crianças e adolescentes o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, ao meio ambiente, ou mesmo, como fomentar ou imbuir na criança e no adolescente o respeito aos seus pais, a sua própria identidade cultural, idioma, valores, se tudo isso lhes é negado?

Gostaria de concluir este artigo com o poema que escrevi para comemorarmos os 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança:

Convenção – a grande orquestra[10]

 

Uma nova civilização constitui-se,

a que vê a criança como sujeito.

Sujeito de amor,

de cuidado,

de respeito,

sujeito de direitos.

A norma que se coloca a serviço da humanidade,

uma humanidade criança

que não pode ser desamparada,

negligenciada,

excluída.

Uma norma que atenta ao cuidado,

que se universaliza,

que sonoriza o respeito à condição de “ser criança”.

A Convenção sobre os Direitos da Criança,

norma maior.

Norma que pede a concretude

como uma grande orquestra,

com os mais variados instrumentos de defesa.

E o adulto o que faz?

É o instrumentista que dá vida

a cada instrumento de proteção.

E quem rege a orquestra?

Eis que lá está ela: a criança!

A criança regente,

Rege a esperança,

bons dias virão!

 

 

Notas e Referências

[1] Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, considera-se como “criança” todo ser humano com idade inferior a 18 anos: “Artigo 1- Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em 12 out. 2019.

[2]Cf. ROSEMBERG, F.; SUSSEL, M. C. L. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança: Debates e tensões. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 141, v. 40, 2010, p. 693-728.

[3]  PEREIRA, Tânia da Silva. A Convenção e o Estatuto: um ideal comum de proteção ao ser humano em vias de desenvolvimento. In: PEREIRA, T. S. (coord.).  Estatuto da Criança e do Adolescente: lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos,  p. 67.

[4]  PEREIRA, T. S. - Idem, ibidem.

[5] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 43.

[6] É o caso da Flórida (sul do país), que só proíbe a pena de morte para menores de 16 anos. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1111199906.htm. Acesso em: 20 out. 2019.

[7] “La Convención ha elevado el interés superior del niño al carácter de norma fundamental, con un rol jurídico definido que, además, se proyecta más allá del ordenamiento jurídico hacia las políticas públicas e, incluso, orienta el desarrollo de una cultura más igualitária y respetuosa de los derechos de todas las personas”. (BRUÑOL, Miguel Cillero. El interés superior del niño en el marco de la Convención Internacional sobre los Derechos del Niño. In: MENDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary (Org.). Infancia, Ley y Democracia en América Latina. 2. ed. Tomo 1. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis, 1999, p. 70).

[8] Conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 65, de 2010.

[9]  LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade, Trad. de Eliane M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991,  p. 58.

[10] VERONESE, Josiane Rose Petry.  Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos – sua incidência sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. p.9.

 

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