A convenção do Belém do Pará, a lei Maria da Penha e o PCL 07/2016

14/08/2016

Por Aicha Eroud - 14/08/2016

O fato ocorrido no dia 9 de junho de 1994, foi determinante para marcar a história dos direitos da mulher, onde a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos - OEA, adotava a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher ou Convenção do Belém do Pará, que é reconhecida internacionalmente pela tentativa de refrear a violência contra a mulher. O Preâmbulo desse tratado diz:

“Reconhecendo que o respeito irrestrito aos direitos humanos foi consagrado na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado em outros instrumentos internacionais e regionais;

Afirmando que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades;

Preocupados por que a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens; 

Recordando a Declaração para a Erradicação da Violência contra a Mulher, aprovada na Vigésima Quinta Assembleia de Delegadas da Comissão Interamericana de Mulheres, e afirmando que a violência contra a mulher permeia todos os setores da sociedade, independentemente de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases;

Convencidos de que a eliminação da violência contra a mulher é condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e sua plena e igualitária participação em todas as esferas de vida; e

Convencidos de que a adoção de uma convenção para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, constitui positiva contribuição no sentido de proteger os direitos da mulher e eliminar as situações de violência contra ela”.

 A Convenção do Belém do Pará, entra então para a história, sendo o primeiro tratado internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres que admitiu expressamente que a violência contra a mulher é uma problemática na sociedade. Eis então uma grande conquista no que diz sobre os direitos das mulheres!

 Uma outra conquista, foi a lei 11.340 de 2006, conhecida com a Lei Maria da Penha, que nasceu de um fato lamentável, que envolveu agressões e duas tentativas de homicídios, de um marido contra sua esposa. Na primeira tentativa ele deu um tiro nas costas enquanto ela dormia, o que a deixou paraplégica, alegando que quem desferiu os tiros foi um assaltante. Na segunda tentativa, ele a empurrou da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. O julgamento somente ocorreu 8 anos após os crimes. Em 1991, o advogado do réu conseguiu a anulação do julgamento, porém em 1996, foi julgado, sendo considerado culpado, o que resultou numa condenação de 10 anos de reclusão, mas conseguiu recorrer, em liberdade.

O Brasil foi condenado pela OEA, com base na omissão à violência doméstica e  negligência. Uma das sanções impostas foi a criação de uma legislação que inibisse esse tipo de violência. Daí surgiu a Lei Maria da Penha, que leva esse nome em homenagem a essa mulher que sofreu duas tentativas contra sua própria vida. A lei entrou em vigor no mês de setembro de 2016.

Para comemorar com “glamour” o décimo aniversário dessa lei, foi dado um “presente” nada constitucional, o PCL 07\2016, que tem como proposta o acréscimo de dispositivos à lei, que está prestes a sofrer sua maior alteração legislativa.

Sob a justificativa da morosidade do nosso sistema judiciário, no que se refere ao artigo 12-B, do PLC 07\2016, prevê o deferimento de medidas protetivas de urgência, que na realidade são medidas cautelares restritivas de direito, tendo como proposta de que a própria autoridade policial disponha sobre o deferimento da medida protetiva de urgência após o registro de ocorrência policial, sendo que o boletim de ocorrência deve ser feito, preferencialmente, por agentes do sexo feminino, tendo assim que ser revisto e aceito por um juiz, no prazo de até 24 horas, com o intuito de proteger a vítima.

Sua inconstitucionalidade se constitui no afrontamento da tripartição dos poderes, previsto no artigo 2º, da Carta Magna, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Aqui a autoridade policial que faz parte do Poder Executivo, estaria exercendo a atividade que é de competência do Poder Judiciário, desempenhando assim de forma indevida, a atividade jurisdicional. Aí troca-se uma medida jurisdicional por uma medida administrativa.

Também afronta o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito da ação, expresso no artigo 5º, inciso XXXV, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Esse princípio afirma que quem detém a reserva indelegável da jurisdição é o órgão julgador. Sendo assim, há uma restrição dos direitos fundamentais no que concerne ao suposto agressor, pois haverá de uma certa forma, a exclusão do Poder Judiciário em relação à apreciação as medidas, o que gera diretamente a inconstitucionalidade, pois há uma evidente violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

Na audiência pública em Brasília sobre o PLC 07\2016, realizada na CCJ do Senado Federal, em Nota Técnica da CNMA, a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Eduarda Mourão, se posicionou da seguinte forma sobre o assunto: “Apesar de bem intencionado e de trazer uma questão de grande importância (proteção rápida e efetiva às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar), acaba por desencadear consequências que se distanciam do seu objetivo, ou seja, acabaria por desproteger ainda mais a vítima, uma vez que aumentaria as atribuições da autoridade policial, gerando um maior desgaste na qualidade dos serviços prestados nas delegacias de polícia”.1

Também na mesma audiência pública, Sandra Lia Barwinsk, que representou a OAB Paraná e é presidente da Comissão de Estudos Sobre Violência de Gênero (CEVIGE), reiterou: “à exceção das associações e órgãos representativos das polícias, todas as autoridades convidadas - representando o Consórcio de ONGs feministas que elaborou o anteprojeto de Lei Maria da Penha, a SPM, a Magistratura, o Ministério Público, as Defensorias Públicas, a Advocacia, dentre outros - se manifestaram pela inconstitucionalidade e pela necessidade de se promover amplo diálogo entre as instituições e organizações de mulheres, vez que sua tramitação, seja na Câmara, seja no Senado, não contou com a devida publicidade e participação democrática”.2

Considera-se então, um verdadeiro retrocesso a aprovação dessa PLC, pois é uma evidente forma de sucatear os direitos já conquistados, tirando das mãos do judiciário, que possui magistrados aptos para analisar a causa e expedir a medida protetiva de urgência de uma forma mais humana e cautelosa, transferindo esse poder para  os delegados. Conforme diz os dados, nem sequer há a existência de preparo nas delegacias para receber a demanda:

“Segundo a CPMI da Violência contra a Mulher em 2013 havia apenas 408 Delegacias da Mulher e 103 Núcleos especializados, ou seja, menos de 10% do total do total de municípios 5.570 do Brasil (IBGE, 2015). A CPMI diagnosticou que muitas delegacias não registram ocorrências de violência doméstica, não solicitam as medidas protetivas, não estão aparelhadas e nem capacitadas, orientam as mulheres a se acertar com os maridos, etc”.3

É notável, que as mulheres do nosso país, não vem atravessando uma fase muito positiva, em relação aos seus direitos conquistados a base de muito esforço e sacrifício. Logo no primeiro dia do governo interino, Michel Temer anunciou a composição ministerial do seu governo, dando posse a 23 ministros, todos homens, não havendo sequer, uma presença feminina. Esse fato que não acontecia desde Geisel (1974-1979), o que é claramente um retrocesso na representatividade feminina e na luta pelos direitos da mulher.

 Existe a sensação de que o passado sombrio está retornando, a luta para impedir isso é grande, principalmente pela parte dos magistrados tem sido intensa. Um dos nomes que tem representado as mulheres nessa luta é a da magistrada Madgéli Frantz Machado, presidente do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (FONAVID), que reforça sobre a inconstitucionalidade e perdas de garantias nas seguintes frases:

“O artigo 12B do PLC, que trata especificamente deste ponto, é inconstitucional, pois fere a prerrogativa da jurisdição, que é exclusiva do juiz, sendo indelegável. A concessão de medidas protetivas, ao mesmo tempo em que protege as vítimas, restringe a liberdade, e o direito de ir e vir do autor do fato. E isso não pode ser aplicado dentro de um sistema inquisitorial desprovido das garantias mínimas de ampla defesa e do devido processo legal”4

”Não haverá condições de intimação do autor do fato, o que inviabiliza, de outra parte, a prisão preventiva por descumprimento da medida protetiva, uma das grandes conquistas da Lei Maria da Penha.”5

Nota-se, a partir dessa premissa, a relevância que essa lei possui, em âmbito nacional e internacional, possuidora de uma elevada importância para a proteção da mulher, garantindo direitos e igualdade de gênero.

Depois de duras batalhas e grandes conquistas, os direitos das mulheres não deve ficar a mercê daqueles que querem o seu retrocesso. Se algum dispositivo tem que ser criado, que seja para beneficiar, não para atrasar ou extinguir direitos já garantidos.


Notas e Referências:

1-2 http://www.oabpr.com.br/Noticias.aspx?id=23186

3 http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/07/11/nao-ao-pcl-072016/

4-5 http://www.amb.com.br/novo/?p=29249 /


Aicha Eroud. . Aicha Eroud é Acadêmica de Direito da FAFIG, Faculdade de Foz de Iguaçu. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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