Por Mariana Pargendler e Bruno Meyerhof Salama – 15/05/2016
As pedaladas fiscais e os escândalos relacionados à Operação Lava-Jato estão no centro da crise por que passa o Brasil. No olho do furacão estão as empresas estatais. No caso das pedaladas, vários bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES) foram utilizados para financiar pagamentos de programas do governo, de forma a artificialmente reduzir o tamanho do déficit, em violação à Lei de Responsabilidade Fiscal. Já no caso da Lava-Jato, a Petrobras, antes elogiada como exemplo de boa governança corporativa, protagoniza um escândalo de corrupção de proporções impressionantes, coroando um período marcado por intervenções políticas na administração da companhia.
Pouca gente percebeu, mas esses problemas estão intimamente ligados a uma regra de natureza contábil, prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO): as contas das referidas empresas estatais não vêm sendo contabilizadas para fins de cálculo do resultado primário (que corresponde à diferença entre receitas e despesas do governo, excluindo-se aquelas com juros). O montante do resultado primário tem importância fundamental para o governo. De um lado, há razões estritamente legais, ligadas à permissibilidade de dispêndios autorizada pela LDO. De outro, há razões de natureza econômica atreladas à sustentabilidade da dívida pública e à sinalização de saúde financeira do país.
No setor privado, a consolidação das demonstrações financeiras de sociedades controladas é prática geral e corriqueira. No setor público, porém, a consideração das empresas estatais na contabilidade do governo variou. E as mudanças no padrão utilizado pelo governo foram um componente importante tanto para permitir as artimanhas contábeis que artificialmente inflaram o superávit (ou reduziram o déficit) primário como para desestimular a boa administração das empresas estatais.
Retirada dos resultados de Petrobras e Eletrobras dos demonstrativos fiscais da União gerou consequências perversas
Vejamos: por um lado, os resultados dos bancos públicos nunca foram considerados para fins de cálculo do superávit (ou déficit) primário, que apenas contempla resultados não financeiros. Por outro, a exclusão de certas empresas estatais não financeiras (notadamente, Petrobras e, logo depois, Eletrobras) é fruto de mudanças legislativas relativamente recentes na Lei de Diretrizes Orçamentárias. A Petrobras deixou de ser considerada pela União para fins de cálculo do resultado primário a partir de 2009 e a Eletrobras, a partir de 2010. A justificativa para a exclusão da Petrobras e da Eletrobras utilizada à época foi a de que seria necessário liberar a capacidade de investimentos dessas companhias para que pudessem dar impulso às suas atividades sem as "amarras" impostas pelas metas de superávit primário do governo. Esse argumento era particularmente sensível com relação à Petrobras em razão dos investimentos reconhecidamente vultosos que seriam necessários para a exploração do pré-sal.
Com o beneplácito do Congresso Nacional, Petrobras e Eletrobras foram retiradas dos demonstrativos fiscais do governo. Tornaram-se, como se costuma dizer, "off balance sheet"; em bom português, é o fenômeno da contabilidade paralela. A despeito de eventuais boas intenções que porventura possam ter motivado os agentes políticos à época, fato é que o fim do cômputo dos resultados da Petrobras e da Eletrobras, para fins de aferição do estado das finanças públicas, geraram três consequências perversas.
Primeiro, foram criadas as condições para a maquiagem dos resultados financeiros do governo por meio de diversas manipulações contábeis. A deterioração da saúde financeira do país foi assim escondida. A Eletrobras, por exemplo, foi usada em uma criativa triangulação. A União captava recursos no mercado e os repassava ao BNDES. Este, por sua vez, repassava o empréstimo à Eletrobras para que esta, então, tivesse caixa suficiente para pagar dividendos aos seus acionistas, inclusive à União e (curiosamente) ao próprio BNDES. Em um passe de mágica, a dívida pública se transformava em receita, inflando artificialmente o superávit primário.
Segundo, reduziu-se a transparência das contas do governo. As velhas bússolas com que se podia navegar os mares da contabilidade estatal foram alteradas. Em particular, o indicador de "dívida líquida do setor público" (DLSP) passou a ser objeto de especulação e debate. A DLSP indica o saldo entre as dívidas e os créditos do setor público não financeiro e do Banco Central. Ou seja, grosso modo, representa a diferença entre as posições do governo como credor e como devedor. Anteriormente, a DLSP era o principal indicador da solvência do país. Porém, com a exclusão das estatais do seu cálculo e a realização de triangulações contábeis como aquela que descrevemos no parágrafo acima, passou a ser legítimo perguntar a cada divulgação de dados: será realmente essa a verdadeira posição financeira do governo? Isso aumentou a insegurança e minou a confiança pública.
Terceiro, distorceram-se os incentivos para a administração das empresas estatais escondidas. Tomando-se o exemplo da Petrobras: no regime anterior, em que a situação patrimonial da empresa refletia-se diretamente no cálculo do resultado primário do governo, encorajava-se uma gestão mais conscienciosa. Com a mudança, como vimos, os resultados da Petrobras deixaram de ser contabilizados pela União. Com isso, os incentivos de curto prazo para o governo zelar pela integridade financeira da Petrobras foram fragilizados (e em época de crise fiscal, quem é que pensa para além do curto prazo?).
Estimulou-se, assim, a perseguição de políticas públicas custosas por meio da Petrobras, cujas receitas minguantes e despesas crescentes (inclusive em razão da corrupção) deixaram de aparecer "na foto" do governo federal. Como se vê, a crise brasileira tem também uma origem numa singela mudança de lei orçamentária. O diabo de fato mora nos detalhes.
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Mariana Pargendler é Professora em período integral na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). Visiting Professor of Law da Stanford Law School (2014-2015). Global Associate Professor of Law na New York University (NYU) School of Law. Doutora e mestre em Direito pela Yale University. Doutora e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bruno Meyerhof Salama é Professor associado da FGV Direito SP. Diretor do Núcleo de Direito, Economia e Governança da mesma instituição. Conselheiro titular do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro nacional (CRSFN). Mestre e doutor em direito pela Universidade da Califórnia em Berkeley e bacharel em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Habilitado em direito pela OAB e pelo New York Bar. Autor de diversas obras publicadas e premiadas no Brasil e no exterior.
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