A construção dos espaços sociais: Hannah Arendt a partir de Pierre Bourdieu (Ato II)

28/12/2018

 

O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

Sándor Márai, no romance “De verdade”, constrói com perfeição as formas pelas quais o habitus de classe estratifica e fragmenta os espaços sociais, ensejando, assim, verdadeiros abismos entre os mundos habitados pelos trabalhadores, pela classe média e pela burguesia[1]. O trecho abaixo reproduzido narra a diferença do habitus conservado entre a classe média e a burguesia.

(...) Sabe, depois que eu saí da escola fui parar no escritório dele. Naquela época nós duas continuamos nos escrevendo por algum tempo, não é? Você logo viajou para os Estados Unidos, mas ainda nos escrevemos, acho que durante uns três ou quatro anos. Lembro que sentíamos uma pela outra aquele amor bobo, adolescente, de que, ao olhar para trás, não me orgulho muito. Parece que não podemos viver sem amor. Pois eu gostava de você. Além disso, sua família era rica, e nós, por outro lado, éramos classe média, três dormitórios, cozinha, entrada pelo corredor. Eu a admirava... e essa espécie de encantamento, entre jovens, é uma forma de ligação amorosa. Nós também tínhamos uma empregada, mas ela usava água do banho de segunda mão, tomava banho depois de mim. Os detalhes são muito importantes. Entre a pobreza e a riqueza existe uma quantidade assustadora de nuances. E na própria pobreza, à medida que descemos de nível, você não sabe quantas nuances existem!... Você é rica, não sabe da imensa diferença entre quatrocentos e seiscentos por mês. Entre dois e dez mil por mês a diferença não é tão grande. Hoje em dia já sei bastante sobre o assunto. Para nós, em casa, entravam oitocentos por mês. Meu marido ganhava seis mil e quinhentos. Fui obrigada a me acostumar. Tudo era apenas um pouco diferente entre a casa dele e a nossa. Nós morávamos num apartamento de aluguel, eles numa mansão alugada. Nós tínhamos um terraço, eles um pequeno jardim, com dois canteiros de flores uma velha nogueira. Nós tínhamos uma geladeira comum e comprávamos gelo para ela no verão, na casa minha sogra havia uma pequena geladeira elétrica que produzia belos cubos de gelo de formas regulares. Nós tínhamos um faz-tudo, eles, um casal, empregado e cozinheira. Nós tínhamos três quartos, eles quatro, na verdade cinco contando com o hall. (...) Eu fui educada para conseguir viver. Ele foi educado para, antes de tudo, viver, com elegância, segundo os costumes e, sobretudo, de maneira regrada e sem sobressaltos. Essas diferenças são enormes. Na época eu não sabia disso. Certa vez, no início do casamento, durante o café-da-manhã ele me disse: “Aquele tecido cor de malva na sala de jantar é um pouco cansativo. É grosseiro, como se alguém tivesse gritando o tempo todo. Dê uma olhada na cidade, querida, procure outro tecido para a primavera.” Eu deveria trocar o estofamento de doze cadeiras por um tecido “um pouco menos cansativo”. Olhei para ele incomodada, pensei que se tratasse de uma brincadeira. Mas ele não estava brincando, lia o jornal e olhava para frente, sério. Via-se que tinha refletido antes de falar comigo, de fato o irritava a cor malva, que – não nego – era um tanto vulgar. Minha mãe a escolhera, as cadeiras eram novas em folha. Quando ele saiu, eu chorei. Não sou completamente estúpida, entendi completamente o que ele quis dizer... Procurou dizer o que jamais pode ser transmitido com palavras simples, verdadeiras e diretas, ou seja, que havia entre nós certa diferença de gosto (...) a meu redor tudo era ligeiramente diferente, havia uma diferença quase insignificante em relação aos hábitos e gostos dele (...) (MÁRAI, 2008).

Trata-se de uma citação de fôlego, mas cada período que constitui a oração está repleto de significados. O tema central do romance é o impedimento da criação de laços afetivos entre agentes alocados em estratos distintos da sociedade. A narrativa constrói uma de suas provas a partir do enlace e posterior ruptura do vínculo estabelecido entre uma mulher nascida na classe média e um homem nascido no solo burguês.

O conjunto de comportamentos e práticas interiorizados a partir da família e da escola forma dois personagens que se aproximam na medida em que “delicadamente” se separam. A discriminação havida na esfera social, nesse ponto, cria verdadeira hierarquia entre os comportamentos, estimulando que as práticas e os espaços sociais burgueses sejam desejados e admirados ainda que desconhecidos pela classe média.

A partir do momento em que determinado grupo social possui o direito de se “preservar”, restringindo os saberes válidos e os benefícios derivados da racialização e da estratificação social aos seus próprios membros, surge o enaltecimento da identidade, negando aos considerados estranhos tudo o que concentra para si.

As castrações criadas pela legitimidade do suposto direito à discriminação ensejam a exclusão de grande parte da população em uma sociedade profundamente racista e desigual como a brasileira, onde, nos termos da denúncia lírica de Baco Exu do Blues (2017), “cidadãos de bem queimam terreiros, espancam mulheres e odeiam os pretos (...)”. No limite, a concentração do poder em torno de grupos identitários contribui para invalidação, criminalização e morte dos comportamentos, ritos e dos próprios grupos historicamente vilipendiados.

O conceito de capital social também ganha relevância quando contraposto ao direito à discriminação. Bourdieu define a noção de capital social como rede de relacionamento recíproco que determinado agente ou grupo mobiliza a favor de si para conquista de objetivos anteriormente traçados (BOURDIEU, 1980). Cada rede de relacionamento, dentro do referido contexto, possui maior ou menor quantidade de capital econômico e cultural[2], demonstrando que os indivíduos vinculados a grupos que titulam maior poder cultural e econômico tendem a possuir maiores somas de capital social. A partir do momento em que o acesso a determinada posição social ou a determinado “direito social” passa a depender das redes de relacionamento mais ou menos efetivas que determinado grupo possui, enxerga-se no exercício e legitimidade do direito à discriminação verdadeiro espaço de segregação e conservação social. No avesso dos termos lançados por Arendt, infere-se que o monopólio das redes de relacionamento é alimentado por meio da seletividade legitimada em postulados “naturais” como raça, aptidão, dom e gosto, ocultando, ao fim, que as referidas formas de associação se expressam a partir da história, hierarquizando os espaços de trânsito e o acesso a direitos fundamentais entre agentes provenientes de determinada raça e classe social.

A hierarquia superior e a origem do gosto que constitui o referencial simbólico de pertencimento à classe dominante advêm dos recursos econômicos extraídos das colônias europeias a partir da pilhagem e da expropriação colonial e escravista (MBEMBE, 2017). Desta forma, o mesmo apreço à arte, aos cafés e à cultura que forjavam a civilidade no século XVIII (MBEMBE, 2017) é utilizado como ferramenta de seleção no âmbito nos espaços sociais contemporâneos (BOURDIEU, 1966), excluindo, em total ironia, justamente os descendentes dos povos que foram sacrificados para a construção dos ritos e objetos que constituíram o senso moderno de civilidade.

Tem-se, assim, que a humanidade jamais experimentou o gozo da victa activa, fixando-se, ao longo da história, na acumulação dos meios voltados para sobrevivência, ou seja, na atividade do labor. Com o advento das técnicas mais avançadas de produção a escassez de produtos destinados à sobrevivência é suprida, desvencilhando-se a produção do consumo, ou seja, da sobrevivência, e alocando-a no “desejo”. O consumismo, produção ligada ao impulso e ao gozo, é a marca do homo faber, observando-se, assim, que os comandos provenientes do labor são transportados e inscritos na atividade-trabalho. O humano, sujeito relacional, nada mais fez do que construir formas mais sofisticadas de alcançar a acumulação experimentada pelo animal laborans.

No íntimo, o humano passa a se justificar na acumulação voltada ao preenchimento das suas necessidades. No objetivo, contudo, o humano é orientado a consumir a produção superavitária de mercadorias criadas no sucesso da produção industrial, transformando-se, em última análise, em mercadoria das próprias mercadorias. A face predatória do mundo industrial nada mais é que o sucesso da forma de reprodução da espécie humana.

A prisão construída pela sobrevivência impede que a ação política seja desinteressada e voltada ao bem-comum. Em verdade, o bem-comum da forma social moderna e contemporânea não passa do sucesso colocado sobre a acumulação privada de recursos para sobrevivência e da socialização das despesas derivadas da produção corpórea, incorpórea e fictícia desses mesmos recursos. O Homem Público e relacional exaltado na clássica polis grega não passa de uma criança preocupada com o gozo ilimitado de todos os estímulos que a rodeiam.

Dentro do referido contexto, os grupos constituídos no ambiente social favorecem a identidade, negando a todos que julgam diferentes de si quaisquer possibilidades, acessos e experiências que acumulam. Acumulação. Eis a palavra que conduz ao fechamento. As distorções dos modelos de conjuração dos grupos sociais privilegiam a acumulação das experiências, autorizando, com base nos processos históricos que os criaram, intervenções para promoção de espaços heterogêneos.

 

Notas e Referências

ANTUNES, Marco António, 2004, O público e o privado em Hannah Arendt, Universidade da Beira Interior, BOCC, disponível em http://www.bocc.uff.br/pag/antunes-marco-publico-privado.pdf

ANTUNES, Ricardo. A fábrica da educação: da especialização taylorista à flexibilização fordista. Ricardo Antunes, Geraldo Augusto Pinto. São Paulo: Cortez, 2017.

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BACO, Exu do Blues. Álbum Esú. Ano: 2017. Selo: Independente. Produção: NansySilvvs, Scooby& ÀTTØØXXÁ. Faixas: 10. Estilos: Hi'p Hop. Duração: 36:00

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre. L’école conservatrice. Les inégalités devant l’école et la culture (1966). In. Escritos de educação. Organização Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Le capital social (1980). In. Escritos de educação. Organização Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MÁRAI, Sándor. De verdade. Tradução do húngaro Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 445.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. 1ª ed. Portugal: Antígona, 2017.

SETTON, Maria da Graça. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação (Impresso), São Paulo, n.maio/ago, p. 60-70, 2002.

SAFATLE, Vladimir Pinheiro. A forma institucional da negacão: Hegel, liberdade e os fundamentos do Estado moderno. Kriterion (UFMG. Impresso), v. 125, p. 149-178, 2012.

WINCKLER, Silvana Terezinha. Igualdade e cidadania em Hannah Arendt. Direito em Debate, Ijuí/RS, v. 1, n.22, p. 7-22, 2004.

 

[1] Utilizo como referência de pertencimento à determinada classe social a propriedade sobre os meios de produção e a quantidade de capital cultural incorporado. No referido contexto, a burguesia possui a propriedade dos meios de produção de riquezas materiais e imateriais, adquirindo força de trabalho em troca do pagamento de salários. A classe média, por sua vez, possui acesso a índices de capital cultural que lhe permitem ocupar vagas de gerência no processo produtivo, o exercício de profissões liberais em espaço muito próximo às necessidades da burguesia ou, ao fim, a nomeação, através de concursos, em altos cargos públicos. Os trabalhadores possuem, em geral, baixa incorporação de capital cultural, ocupando vagas de trabalho formais mais desprotegidas e pior remuneradas ou, na contemporaneidade, exercendo trabalhos informais ou profissões liberais de forma totalmente precária.

[2] O conceito de Capital Cultural foi desenvolvido por Pierre Bourdieu para explicar os diferentes níveis de êxito que crianças de estratos sociais distintos obtinham no percurso escolar. Embora possa soar como uma obviedade, a ideia de capital cultural constrange o mito do dom ou da aptidão natural, indicando que crianças expostas a maiores quantidades de informações válidas dentro do ambiente familiar – saberes válidos são aqueles reconhecidos pelo sistema escolar, ou seja, que estão em harmonia com o positivismo conservador ou crítico discutido na academia – terão condições de extrair maior êxito no percurso escolar. O Capital Cultural, neste contexto, subdivide-se nas formas objetivada, incorporada e institucionalizada, representando a primeira a informação contida em determinado objeto, instituição ou função (por isso capital cultural objetivado). Verifica-se, por exemplo, a forma objetivada do capital cultural na técnica necessária à operacionalização das profissões jurídicas ou científico-jurídicas, de forma que as IES do Direito propiciam aos estudantes mecanismos de incorporação do capital cultural jurídico. Logo, o processo de graduação em Direito estará baseado em transmissões e avaliações que investigam a quantidade de incorporação do capital cultural dos alunos ou candidatos a bacharéis em Direito. Alcança-se, assim, a segunda forma do capital cultura, a saber, incorporada, traduzindo-se, basicamente, em apropriação do capital cultural objetivado nos ritos institucionais e/ou objetos. O sistema escolar, através de medida pré-estabelecida, avalia a quantidade de capital cultural incorporado pelos estudantes, ou seja, caso o pretendente a bacharel prove à instituição que incorporou parcela mínima de capital cultural objetivado, surge a forma institucionalizada do capital cultural, isto é, o diploma.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Here comes the sun // Foto de: knnth andrade // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kntr/4069775279/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura