A construção dos espaços sociais: Hannah Arendt a partir de Pierre Bourdieu (Ato I)

21/12/2018

 

O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A base das construções teóricas de Hannah Arendt está nas formulações da Grécia Clássica, onde a satisfação das necessidades básicas de existência era condição indispensável à ocupação e ao exercício ativo no espaço público (ANTUNES, 2004). No âmbito da família, local de produção dos recursos indispensáveis à vida, não era permitida qualquer intervenção, repousando todos que ali viviam sob as regras do proprietário. Ao privado, neste contexto, era entregue a função de diferenciação, possibilitando que aquele cidadão que estivesse em condições de ocupar o espaço público pudesse apresentar diversidade de opinião e posicionamento em relação aos demais (ANTUNES, 2004).

A chave para compreensão das distinções operadas entre a esfera pública e a esfera privada surge nas reflexões lançadas na obra “A condição humana”. Ao debruçar-se sobre as atividades humanas que constituem a vita activa Arendt identifica as noções de labor, trabalho e ação, utilizando-as para distinguir a esfera pública da esfera privada.

O labor, noção que se conecta ao instinto, se define enquanto ação voltada à sobrevivência por meio da satisfação das necessidades mais prementes ou biológicas. O labor é compartilhado entre os seres vivos, conceituando-se, portanto, o agente que o executa como animal laboran. Em outros termos: o exercício do labor não é particular à espécie humana. O trabalho, no entanto, exprime a ideia de produção, caracterizando-se pela manipulação de recursos naturais por via do acúmulo e emprego da linguagem complexa própria da espécie humana. A articulação e a transmissão geracional da linguagem foram capazes de propiciar a criação de ferramentas e métodos hábeis à sofisticação do modelo de reprodução social humano, mostrando, ao fim, que a centelha que informa o conceito de trabalho em Arendt está vinculada à complexidade relacional do humano. Por esta razão o agente do trabalho é definido como homo faber. Tem-se, assim, que labor e trabalho são formas de prover a existência ou a reprodução da espécie, encontrando-se, pois, dentro da esfera privada.

Antes de adentrar a esfera pública convém lembrar as motivações que levaram Arendt a se distanciar da busca pela essência humana. A expressão animal político, utilizada por Aristóteles, contempla a espécie humana ao vinculá-la ao uso da retórica e do discurso para solução de quaisquer conflitos. A política – a enquanto ação e discurso – orienta a visão aristotélica que Arendt utiliza para ignorar a busca pela essência humana, concentrando-se, por outro lado, na existência de uma capacidade relacional típica do ser humano.

A esfera pública, no referido contexto, é composta ou habitada pelo conceito de Ação, encontrando significado na interação dos homens organizados em grupo a partir do exercício da retórica e do discurso. A ação, portanto, performa a ideia de política, constituindo-se como ferramenta hábil à solução dos conflitos engendrados pelo convívio entre seres dotados de linguagem complexa.

A justificativa para total liberdade conferida à esfera política reside na necessidade de profusão das discussões propostas no campo público. Nos mesmos termos da polis grega, Arendt entende que a liberdade de exposição política em prol do bem da cidade – polis – é condição para fuga da uniformização e do conformismo.

Surge, assim, a noção de bem-público e virtude. Na medida em que na atividade do labor o homem extrai os recursos necessários à sobrevivência, e na atividade do trabalho o homem produz bens e serviços que facilitam à reprodução humana, na ação política a atividade rompe com a sistemática do meio e fim. A ação política, na filosofia de Arendt, pertence ao campo da transcendência e está – ou deveria estar – imune às comezinhas atribuições da esfera privada. O Homem público deve possuir a virtude necessária para se libertar das necessidades básicas trazidas pelo labor e pelo trabalho, engajando-se na ação política para verdadeiramente gozar da boa-vida.

Ao lado do animal político, caminha a noção de animal social. Em Arendt a expressão animal social não passa de em equívoco contido na tradução e compreensão do termo animal político, explicado parágrafos acima. O equívoco em riste deriva do sentido aplicado pelas línguas latinas ao termo social, qualificado como experiência exclusiva da construção de um ou mais grupos pela espécie humana. Em outras palavras: ao avesso da concepção latina, a sociedade abrange organizações sociais não humanas (ANTUNES, 2004). A partir daqui é preciso avançar. Se o social não está necessariamente vinculado à capacidade relacional do humano, infere-se que o social também não reside na esfera política. A esfera ou espaço social, no referido azimute, não se constrange pelo dever de igualdade, ou seja, o social dispensa a regulação do Estado, aliando-se, em maior medida, à esfera privada na luta pela manutenção da identidade, conceito que Arendt utiliza enquanto sinônimo de pluralidade ou diferença.

Preocupada com a emergência de qualquer forma de totalitarismo Hannah Arendt apresenta as controvertidas “Reflexões sobre Little Rock”. Publicado dentro da coletânea “Responsabilidade e Julgamento”, o artigo coloca em xeque a intervenção do Estado nas esferas privada e social, defendendo a existência de um legítimo direito de discriminação orientado à defesa da pluralidade. Embora seja controverso, o direito à discriminação pensando por Arendt está preocupado em garantir a pluralidade de opiniões no espaço público, ou seja, dentro da atividade da ação (WINCKLER, 2004).

O argumento, neste contexto, surge como defesa ao totalitarismo derivado do consenso, apontando que a proteção da esfera privada e da esfera social é indispensável à formulação de distintas formas de pensar. A defesa da esfera social, pois, será exercida com base na consagração do direito de cristalizar o fechamento e a segregação de grupos homogêneos, os quais, no âmbito dos espaços privado-sociais, podem impedir a entrada de pessoas que não partilhem do seu habitus, exaltando, de maneira no mínimo polêmica, a manutenção da pluralidade a partir da segregação dos espaços (ARENDT, 2004).

Enfim emerge a esfera social de Arendt. Construída em contraposição à ideia de liberdade pública, ou seja, através da segunda natureza (SAFATLE, 2011) onde a todos é conferido o direito histórico à manutenção de suas próprias diferenças no espaço político, a esfera social trazida por Hannah Arendt pressupõe a harmonia entre o habitus e determinado campo. Os conceitos de habitus e campo, extraídos de Pierre Bourdieu, significam, respectivamente, a bagagem cultural interiorizada por um agente ao longo da história e o espaço de combate – ou assimilação harmônica – onde grupos distintos entram em choque pelo domínio das práticas que regem as relações em determinado ambiente (BOURDIEU, 1989; SETTON, 2002). Tal esfera, entretanto, não está aberta a qualquer disputa pelo campo, limitando-se a identificar os agentes que conservam o habitus comum a determinado campo social, excluindo aqueles não o possuem. Assim, pois, verifica-se que o direito à discriminação em Hannah Arendt não age em favor da pluralidade. Muito antes pelo contrário. O direito à discriminação age em favor do enaltecimento e da constituição de identidades.

 

Continua ...

 

Notas e Referências

ANTUNES, Marco António, 2004, O público e o privado em Hannah Arendt, Universidade da Beira Interior, BOCC, disponível em http://www.bocc.uff.br/pag/antunes-marco-publico-privado.pdf

ANTUNES, Ricardo. A fábrica da educação: da especialização taylorista à flexibilização fordista. Ricardo Antunes, Geraldo Augusto Pinto. São Paulo: Cortez, 2017.

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BACO, Exu do Blues. Álbum Esú. Ano: 2017. Selo: Independente. Produção: NansySilvvs, Scooby& ÀTTØØXXÁ. Faixas: 10. Estilos: Hi'p Hop. Duração: 36:00

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre. L’école conservatrice. Les inégalités devant l’école et la culture (1966). In. Escritos de educação. Organização Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Le capital social (1980). In. Escritos de educação. Organização Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MÁRAI, Sándor. De verdade. Tradução do húngaro Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 445.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. 1ª ed. Portugal: Antígona, 2017.

SETTON, Maria da Graça. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação (Impresso), São Paulo, n.maio/ago, p. 60-70, 2002.

SAFATLE, Vladimir Pinheiro. A forma institucional da negacão: Hegel, liberdade e os fundamentos do Estado moderno. Kriterion (UFMG. Impresso), v. 125, p. 149-178, 2012.

WINCKLER, Silvana Terezinha. Igualdade e cidadania em Hannah Arendt. Direito em Debate, Ijuí/RS, v. 1, n.22, p. 7-22, 2004.  

 

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