Introdução.
Tramita na Câmara dos Deputados Federais o Projeto de Lei n.º 6268/2018, com o codinome de “PL da Caça”. O PL da Caça, segundo texto publicado[1], autoriza o abate de animais silvestre (inclusive os ameaçados de extinção); legaliza o comércio de animais silvestre e exóticos; autoriza a erradicação de espécies exóticas quando consideradas nocivas; autoriza a constituição de campos de caça em propriedades privadas e a criação e a manutenção de animais silvestres em criadouros comerciais. Consta do texto do projeto, ainda, a autorização de destinação dos animais recebidos em centros de triagem para campos de caça e a possibilidade de os zoológicos venderem animais silvestres para criadouros.
O projeto consta da pauta da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Social da Câmara dos Deputados Federais e tem recebido inúmeras manifestações contrárias da sociedade civil organizada e do Ministério Público. Dentre os inúmeros problemas envolvendo a tramitação do projeto, há solicitações da sociedade civil para que a Comissão de Meio Ambiente promova audiências públicas em diversos Estados da Federação[2] para debater o projeto.
Discute-se, no presente ensaio, em que medida o Projeto de Lei n.º 6268/2016 é compatível com o regime constitucional e legal vigente no Brasil.
A conservação da fauna.
A fauna silvestre é tutelada e definida no direito através da Lei Federal n.º 5.197/1967, cujo art. 1º caracterizou a fauna silvestre como animais que vivem naturalmente fora do cativeiro. Atualmente, segundo a Constituição Federal de 1988, a fauna é um tema de competência concorrente, art. 24, inciso VI, podendo ser tutelada, legalmente, por normas Federais e Estaduais.
Entretanto, a questão elementar não é a legitimação do processo legislativo ou a tutela de proteção, pois a Constituição e as leis infraconstitucionais são claras. O problema circunda a definição sobre a titularidade da propriedade da fauna silvestre.
Explica do Prof. Paulo Affonso Leme Machado[3] que diferentemente do Direito Romano, a fauna silvestre no Brasil é um bem público. Aduz, que os Romanos, antes de tudo estavam preocupados com os eventuais conflitos decorrentes do modo de aquisição da propriedade dos animais e não sobre a conservação das espécies e dos respectivos habitats. A lógica Romana decorre da distinção entre res nullius, res derelictae e res communes omnium. O Professor esclarece que a Res nullius são coisas sem dono e que nunca foram apropriadas; a res derelictae são as coisas que o proprietário abandonou ou praticou renuncia e, a res communes omnium são as coisas comuns que são suscetíveis de apropriação parcial, como quando alguém apenha um pouco d’agua de um rio público.
A máxima do Direito Romano alcançou as Institutas Justinianas, chegando ao Código Civil do Brasil de 1916, cujo art. 1.263 estatuía: quem se assenhorar de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei.
A transição entre o Código Civil de 1916, a Lei Federal n.º 5.197/1967 e a Constituição Federal de 1988 – neste particular, com destaque para a constitucionalização da legislação civil; resultou em ganho ambiental quanto à proteção da fauna silvestre, pois, a matéria passou a ser analisada sob o enfoque do Estado Constitucional Ecológico, com a revogação legal do conceito de que a fauna silvestre era coisa sem dono para a inclusão da fauna silvestre como bem público, cuja intervenção passou a depender de procedimentos formais de licenciamento, permissão e autorização. Ademais, com a Edição da Lei de Crimes Ambientais, a fauna silvestre passou a ser tutelada com tipos penais e recebeu conceito mais amplo, sendo compreendida como todos aqueles pertencentes a espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentre dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.
A fauna silvestre como bem público.
A evolução legislativa, em especial pela disposição constitucional do art. 225, aliada a moderna doutrina acerca do tema fauna silvestre, deslocou o debate do universo privado, transportando-o para a ecológico e para o direito público.
Sob o ponto de vista ecológico, François Ramade, citado por Paulo Affonso Leme Machado ensina que “seja qual for a intensidade dos danos infligidos à vegetação e aos solos por uma exploração irracional, esta ainda é inferior às destruições que assolam a vida animal desde as longínquas épocas ...” Já Eugene P. Odum, também citado por Paulo Affonso Leme Machado, salienta que “acima de tudo, o estudo da ecologia sugere o dever de um sadio respeito por todas as formas de vida ... Muitos organismos, aparentemente inúteis podem tornar-se úteis. O home deve pensar mais em termos de controle e utilização da natureza...“
Quanto ao aspecto de direito público, já em 1967, quando da exposição de motivos da Lei n.º 5.197, a proteção da fauna foi tratada como um bem de Estado e um fator de bem estar do homem na biosfera. Adrede, contudo, que a fauna silvestre não foi transformada em bem particular da administração, disponível para atos de comércio como se fosse um patrimônio. Ao contrário, a fauna silvestre passou à categoria de bem público essencial para a proteção do equilíbrio ambiental. Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado leciona[4]:
O fundamento da submissão dos bens ao regime do domínio púbico é a utilidade pública. Não foi pela vontade de aumentar o seu patrimônio que a União procurou tornar-se proprietária da fauna silvestre; razões de proteção do equilíbrio ecológico ditaram essa transformação da lei brasileira. Tanto que o domínio não se restringe só aos animais, mas ao seu habitat. Isto é, aos criadores naturais e ninhos. Passam a ser preservadas as espécies sem exceção, independentemente de serem vulneráveis, raras ou ameaçadas de extinção.
A fauna silvestre, em razão de imiscuir-se diretamente no equilíbrio da qualidade de vida, seja por fornecer material genético que pode ser utilizado pelas gerações futuras ou seja por razões de equilíbrio do meio ambiente, alcançou o patamar de bem de uso comum do povo, alterando a natureza jurídica da proteção legal e determinando que o Estado e a Comunidade passassem a defende-la e a preserva-la.
Portanto, por questões de ordem ambiental e ecológica, aliadas à Constituição Federal, transmutaram a proteção da fauna silvestre bem público para bem público de uso comum do povo a saber:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O Projeto de Lei n.º 6268/2106 – PL da Caça, portanto, ao pretender criar uma ilha de legalidade para realizar crueldade e extermino da fauna silvestre, acabou por contrariar frontalmente as disposições do art. 225 da Constituição Federal de 1988.
Conclusão.
A pretensão contida no PL da Caça é, por um lado, inconstitucional por ofender o art. 225 e, por outro lado, ultrajante por violar a matriz da virtude ambiental. A virtude ambiental pressupõe a exigência da superação do conceito raso de solidariedade ambiental.
Em princípio, o leitor desatento pode acreditar e compreender que o art. 225 da Constituição Federal, na expressão todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, refira-se apenas ao Ser Humano. Ocorrem, porém, que a expressão todos deve ser lida e absorvida como todos os seres viventes tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Resulta que o PL da Caça viola a virtude ambiental na medida em que impõe ao Ser Humano a cultura da crueldade e do extermino de outras seres viventes por meio de práticas que favorecem o sentimento egoísta em detrimento da solidariedade.
O Ser Humano Solidário, sob o ponto de vista ambiental, não caça por jogo ou por prazer, ao contrário, ama, protege, cuida, preserva e sofre diante do sofrimento dos seres que vivem no planeta, sejam Seres Humanos ou não. Eis a solidariedade profunda, uma comunhão entre todos os seres viventes.
Notas E Referências
[1] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2113552. Acesso em 14 de jun. 2018.
[2] Disponível em https://www.wwf.org.br/informacoes/noticias_meio_ambiente_e_natureza/?66003/ministerio-pblico-sao-paulo-condena-pl-da-Caca. Acesso em 14 de jun. 2018.
[3] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, pg. 937.
[4] DCN 31.8.1966, Seção I, p. 5.515. Citado por MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, pg. 967.
Imagem Ilustrativa do Post: DSC_1163a // Foto de: Maria Savenko // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/aellin/8205502463
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/