A conquista do presente: uma obviedade nunca desvelada – nem entendida – pelo Direito

08/12/2016

Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino – 08/12/2016

Se pudéssemos perguntar ao Direito, qual seria a maior incógnita, o maior mistério ainda não compreendido, não desvelado a partir de sua racionalidade científica, seria, talvez, o momento presente. Qualquer entendimento acerca do Direito, seja na sua perspectiva cultural ou normativa, se refere às conquistas do passado com vistas ao cumprimento das promessas [de amor[1]] edificadas pelo futuro. No entanto, o que se pode traduzir como uma “conquista do momento presente”? Quem, hoje, se debruça a compreender o Direito no momento presente? Esclareço, e deixo bem claro, que não faço qualquer apologia à eliminação do passado, ao contrário, o que desejo saber é qual é o significado do momento presente para a produção, interpretação e aplicação do Direito.

Essa é uma tarefa da qual tenho dedicado algumas pesquisas nos últimos nove anos. Entender o que é o Direito no momento presente significa não apenas rasgar o “Véu de Ísis” sobre um tempo e espaço nos quais tende a ser desprezado pela sua efemeridade, pela sua fugacidade, mas que, contudo, traduzem o sentido central dos devires que somente se manifestam nesse momento e local para constituir as vias de uma convivência sadia, duradoura pela repetição [perpétua] dos dias, das noites, dos convites, dos amores, dos esclarecimentos, das amizades, das desavenças, ou seja, é o anódino que constitui essa potência subterrânea chamada Socialidade[2] e que, habitualmente, é o “ponto cego” de um Direito cuja fonte, paradoxalmente, está aí.

Nesse caso, o desprezo pelo momento presente decorre da sua banalidade, da sua frivolidade de ações, aparentemente, sem importância, conduzidas [ou não] pelo Homo sapiens [ou seria o Homo demens? Homo economicus?]. Não há nada, aqui e agora, o qual justifique entender esse “ser” chamado momento presente, especialmente para se elaborar as finas e sutis costuras temporais do Direito como expressão do próprio aperfeiçoamento de nossa humanidade.

A pergunta, no entanto, ainda “permanece no ar”: o que significa a conquista do momento presente ao Direito? Parmênides[3], talvez, traga uma pista para se entender essa condição: “[...] sem o ser – [...] – não acharás o pensar”. E acrescento: sem o ser, não acharás o sentir, não acharás a existência e sequer compreenderás quem é [ou são] o[s] existente[s]. Cada local, cada espaço dentro desse tempo, sempre fugaz, possuem uma energia própria, a qual convida todos para conhecer seus mistérios.

A beleza dos cafés [e sua função intelectiva pela proxemia], os Tribunais de Justiça com seus adornos e símbolos, a poesia da vida cotidiana, sentida como obra de arte, quando se senta no banco da praça XV de novembro em Florianópolis perto da velha figueira, a roda de mate com os amigos nas praças de Passo Fundo, todos esses momentos ocorrem em espaços frívolos das quais emanam não apenas nossa humanidade [escondida no Outro], mas, também, as próprias fontes do Direito. Quando se conquista o presente, vivendo seu intenso movimento nas galerias subterrâneas, sabe-se que o seu segredo[4], aquele “Véu de Ísis”, aos poucos, se rasgas e, imediatamente, outro se constitui.

A repetição[5], nesse caso, é uma atitude astuta do ser humano para negar, de um certo modo, o movimento do tempo. Representa, sim, o viver de novo, eternamente, ainda que por um instante, ou seja, um instante eterno. É esse caráter trágico de nossa vida a qual esclarece os limites de um Direito que se fundamenta exclusivamente no dever-ser[6].

A importância do momento presente não é algo que deva ser negado, tampouco esquecido [de modo habitual]. O passado e o futuro somente têm significado por causa do que se vive e sente – especialmente junto com o Outro – nesse tempo que constantemente muda e foge. Esse é o espaço e tempo das epifanias, dos matizes da convivência, do reconhecimento acerca da importância do Outro. Todos esses fatores são, sim, fontes do Direito, seja para a sua produção, interpretação e/ou aplicação. É necessário o compromisso dos profissionais do Direito, principalmente os acadêmicos, se debruçarem mais sobre a pergunta: O que é o Direito no momento presente? E já inicio essa atitude com um desafio: qual é o valor próprio que descreve, hoje, o século XXI, sem que haja uma referência aos séculos anteriores?

O esclarecimento acerca de nossa humanidade e o modo como se expressa por meio do Direito, daquelas conquistas históricas sempre sintetizadas por meio das suas “gerações”, se iniciam e terminam no único momento que se vive não apenas a priori, mas, especialmente, a posteriori. É o mistério, o trágico, o frívolo, que nos convida a entender esse caleidoscópio de emoções, de pensamentos, de atitudes as quais estão sempre em movimento.

É aqui que as utopias[7] se sobressaem às distopias. É aqui que se produzem as esperanças sensatas[8]. É aqui que, talvez, as palavras de Hume[9] tenham sentido: “[...] Ao ver que atingimos o limite máximo de nossa razão humana, sossegamos, satisfeitos, ainda que, no essencial, estejamos totalmente convencidos de nossa ignorância, e percebamos que não somos capazes de indicar nenhuma razão para os nossos princípios mais gerais e sutis, além de nossa experiência de sua realidade – experiência que é a razão do vulgo, e que inicialmente não requereu nenhum estudo para ser descoberta, mesmo no caso dos fenômenos mais particulares e extraordinários”.

Eis a necessidade de um Direito que seja a manifestação do momento presente, cujo desvelo, permanente, de nosso dia-a-dia, não ocorra apenas por meio de uma Razão Lógica ou Razão Instrumental, porém a partir de uma Razão Sensível, capaz de permitir ao ser humano entender as possibilidades e os limites de sua humanidade. De identificar que existem vários momentos históricos, sentidos no aqui e agora, repletos de incertezas e inseguranças. Não obstante essa é uma atitude de dificílima viabilidade, o ser humano, diante do medo, não pode agir pelo impulso de, imediatamente, eliminar o medo.

A vida de todos os dias e sua perpétua repetição, demonstram como esse agir mais sereno evita genuínos desastres políticos, sejam os cotidianos ou institucionais, e de como o Direito, na sua acepção normativa, precisa se manifestar. Nada disso é novidade, mas apenas uma condição de se permitir ouvir, de outros lugares, com sensibilidade, como a grama cresce. Eis a conquista do presente. Por esse motivo, devemos ouvir, com atenção, as palavras do Abujamra sobre essa maravilhosa invenção do eterno mudar pela repetição.

https://www.youtube.com/watch?v=WLyVsHMg_EE

Notas e Referências:

[1] Expressão retirada de Warat na qual o autor assemelha os fenômenos que ocorrem em ramos do conhecimento como as promessas que os amantes fazem a si, sabendo que não poderão cumpri-las. WARAT, Luis Alberto. Apresentação fora das rotinas. In: ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material. Florianópolis: Habitus, 2002, p. 13-14.

[2] “[...] A socialidade é a capacidade de convivência, mas também de participar da construção de uma sociedade justa, na qual os cidadãos possam desenvolver as suas qualidades e adquirir virtudes”. CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 37.

[3] PARMÊNIDES. Da natureza. Tradução de José Trindade dos Santos. São Paulo: Loyola, 2002, p. 17.

[4] “O ato de descobrir o segredo do cotidiano, mesclado pelo aspecto teatral e trágico, revela a diferença entre se querer construir a unidade social e se descobrir a unicidade que permeia o estar-junto”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pós-modernidade. Itajaí, (SC): UNIVALI, 2016, p. 56.

[5] “[...] a repetição é uma técnica eficiente do ritual, que permite, ao mesmo tempo, o controle do tempo e a manutenção contrastada da harmonia social, numa arquitetônica das paixões e dos papéis, que permite a coincidência dos opostos”.  MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente: por uma sociologia da vida cotidiana. Tradução de Alípio de Souza Filho. Natal, (RN): Argos, 2001, p. 116.

[6] “[...] a vida trágica não funciona baseada no ‘dever-ser’, no ‘projeto’ (os amanhãs que cantam ou outras formas de paraíso), ela é inteiramente ancorada no presente e nele se esgota como tal”. MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente: por uma sociologia da vida cotidiana. p. 125.

[7] “[...] Ao se questionar o real (a sociedade, o poder, seus valores e instituições) e abrir um espaço ideal, irreal ou futuro, a utopia é subversiva. Subverte o real e abre uma janela para o possível. Há, pois, uma incongruência entre utopia e topia, entre o possível e o real, que se tenta superar transcendendo o real, transformando-o, para que o possível encontre seu lugar na realidade. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Entre a realidade e a utopia: ensaios sobre política, moral e socialismo. Tradução de Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 317.

[8] “[...] As esperanças não são algo assegurado já de início. Não são suportadas por uma Grande Esperança que as torna sensatas. Somente algumas conjecturas as tornam sensatas. E as conjecturas são suposições: não são garantidas por nenhuma fé no Caminho da História. Assemelham-se às razões abrigadas no ânimo de Cristóvão Colombo quanto estava para iniciar uma viagem aventurosa em frágeis caravelas”. ROSSI, Paolo. Esperanças. Tradução de Cristina Sarteschi. São Paulo: Editora da UNESP, 2013, p. 84.

[9] HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2009, par. 9.


Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.


Imagem Ilustrativa do Post: 15/52³: Tiempo / Time // Foto de: Andrés Nieto Porras // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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