A confiabilidade dos elementos informáticos em processos judiciais

24/07/2020

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Não há dúvida de que a vida cotidiana envolve, de forma crescente, a interação com dispositivos informáticos, seja smarthphone, computador, tablet, gadgets pessoais ou outros. Isso acarreta uma quantidade de dados, muitas vezes relevantes, tanto para o seu detentor, quanto para terceiros.

É neste sentido que é cada vez mais comum encontrar em processos judiciais, sejam penais, cíveis ou administrativos, documentos eletrônicos como elementos de prova. Sejam e-mails, mensagens instantâneas de aplicativos de comunicação, publicações de redes socais, entre outros.

Uma questão imprescindível na análise quanto a estes elementos é a confiabilidade deste elemento. Isso porque, os processos judiciais físicos e eletrônicos, em regra, tratam a prova proveniente de dados informáticos como outra qualquer. Basta a transformação do documento em imagem ou PDF (Portable Document Format) para que aquele elemento seja admitido no processo, muitas vezes com a presunção de legitimidade e verdade.

Acontece que todos os dados informáticos (aqueles que são interpretados por um dispositivo informático) são, na verdade, uma sequência binária de números 0 e 1, que formam o seu conteúdo, seja um arquivo de texto, um e-mail, uma mensagem, uma foto, uma página de internet ou qualquer outro.

Em processos físicos, é comum a impressão de um documento informático e sua juntada no processo. Porém, é necessário ter garantia de que esta impressão corresponde, efetivamente, ao documento eletrônico que se afirma. Ou seja, em uma situação hipotética, na qual uma parte junta a cópia impressa de um e-mail, é necessário ter métodos que garantam que aquela impressão reflete, efetivamente, o documento eletrônico. Esta correspondência somente pode ser verificada pelas partes com a juntada do arquivo em uma mídia.

Em processos eletrônicos, a situação é mais delicada, na medida em que todos os arquivos que compõem os autos digitais correspondem a documentos informáticos. Porém, da mesma forma que no processo físico, é necessária que se garantam métodos procedimentais para verificar a correspondência do que foi juntado à realidade.

Explica-se: uma das partes pode transformar uma página de internet em um arquivo PDF e fazer sua juntada no processo eletrônico. Isso não significa, todavia, que aquele arquivo PDF corresponda, automática e efetivamente, àquela página da web.

Obviamente, em questões éticas, imagina-se que uma parte não juntará um documento com falsa correspondência à realidade. Por outro lado, nenhuma parte deve gozar de credibilidade ilimitada em relação a um documento que não possa ter sua veracidade (ou correspondência) atestada por terceiros.

O arquivo PDF é um exemplo disso. Apesar da impressão de idoneidade deste formato, trata-se de uma espécie de arquivo facilmente editável. Estão disponíveis para acesso livre e gratuito diversos tipos de editores de PDF, nos quais alguns cliques tornam possível a alteração de qualquer elemento do documento, seja excluindo, modificando ou incluindo informações.

A título de exemplo, abaixo temos duas telas extraídas de um arquivo em PDF gerado a partir de pesquisa no google pelo termo “empório do direito” em 17/07/2020. À esquerda, temos a página original, com o primeiro resultado sendo o website do empório do direito com o título “Empório do Direito: Página inicial”. Ao lado direito tem-se a mesma tela, do mesmo arquivo, após edição removendo este título e substituindo-o pela expressão “qualquer informação pode ser facilmente alterada”:

As páginas de internet apresentam, ainda, uma especificidade, já que sua impressão (ou transformação em PDF) trazem uma presunção de que aquele conteúdo existe ou existiu. É muito comum, por exemplo, em processos envolvendo ofensas à honra ou à dignidade, que a parte apresente cópia impressa ou PDF de determinada página da web.O exemplo acima foi elaborado a partir do emprego de um simples software de edição de arquivos PDF, e demonstra não ser possível dar credibilidade ilimitada a qualquer informação proveniente de dispositivos informáticos. O exemplo foi feito em um arquivo PDF, mas a mesma lógica e facilidade de edição também se aplicam em arquivos DOC (extensão para documentos de processamento de texto do programa Microsoft Word), já que se trata de um arquivo sabidamente editável no mais popular editor de textos.

Mais uma vez, o problema da ausência de garantia de correspondência é que páginas de internet (em sua maioria) são arquivos extensão HTML ou HTM (Hypertext Markup Language), cuja edição é acessível a quem tem conhecimento desta linguagem de marcação.[i]

Note-se que, ao lado esquerdo da imagem acima, há um código que pode ser editado como o autor queira, e, ao lado direito, há o mesmo código escrito em HTML já interpretado por um navegador de internet (Google Chrome, Internet Explorer, Mozilla Firefox, Safari, etc.). Podemos perceber, desta forma, a fragilidade de uma informação que esteja em arquivo HTML, diante da facilidade de alteração do seu conteúdo.

Reprodução de e-mails também demandam especial atenção. Isso porque, um e-mail transformado em PDF ou impresso a partir de um software leitor de e-mail (como o Outlook) ou pelo chamado Webmail (como Gmail, Hotmail ou Yahoo) também podem ser alterados, seja após a conversão para PDF ou antes, exportando a mensagem para formato HTML, que, como foi exposto, é editável.

Portanto, se uma informação admite manipulação, alteração ou ainda, pode ser criada, não deve ser utilizada como critério de decisão. Assim, para que uma informação proveniente de dados informáticos possa ser válida no processo decisório, é imprescindível que as partes possam aferir a idoneidade deste elemento, garantindo assim o contraditório e o controle epistêmico sobre a autenticidade da prova, como leciona Geraldo Prado[ii].

A garantia do contraditório inclui o direito de informação sobre o documento, que somente será exercido de forma efetiva e eficaz se for possível atestar a veracidade e integridade daquilo que é apresentado no processo. O direito as partes de refutarem a prova, como consequência da ampla defesa e contraditório, é absolutamente necessário, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no HC 160.662/RJ.[iii]

Na alteração do Código de Processo Penal efetivada pela Lei 13.964/19, houve a expressa previsão da cadeia de custódia da prova, determinada no artigo 158-A e seguintes. Leonardo Marcondes Machado assim definiu a importância da cadeia de custódia da prova, citando Urazán Bautista:

“[A] cadeia de custodia é um sistema baseado em um princípio universal de autenticidade da prova, a chamada “lei da mesmidade” (“ley de la mismidad”), pela qual se determina que o “mesmo” (“lo mismo”) que se encontrou no local de crime é “o mesmo” (“lo mismo”) que se está utilizando para a tomada de uma decisão judicial.”[iv]

Gustavo Badaró[v] ressalta que a cadeia de custódia deve ser observada também em elementos e comunicação telemática, como os aqui citados, garantindo que se possa atestar a sua idoneidade e correspondência com o que efetivamente existiu.

Vale dizer que a representação de um e-mail, mensagem, fotografia, etc., somente pode servir como elemento de decisão se houver preservação do arquivo original de onde este novo documento foi gerado, de modo que as partes possam atestar sua idoneidade. Um arquivo eletrônico, da mesma forma, deve ser disponibilizado às partes para que se confirme a veracidade da representação impressa ou digitalizada quanto a origem daquele documento.

Esta discussão já existe em outros países há alguns anos, uma vez que todos precisamos nos adequar aos avanços tecnológicos e ao uso de provas advindas de meios virtuais.

A imprestabilidade destes elementos juntados aos autos, dissociados de meios que possibilitem comprovar sua confiabilidade, foi inclusive objeto de decisão pela Corte de Apelação do estado de Illinois, nos Estados Unidos[vi]:

“State failed to lay adquate foudation for past recollection recorded, business records, or computer-generated documents for admission of computer-generated transcript os online chat between officer and defendant. In the case of computer-generated records, a proper foundation requires a showing that (1) standard equipment was used, (2) the particular computer generates accurate records when used appropriately, (3) the computer was used appropriately, and (4) the sources of the information, the method os recording utilizes, and the time of preparation indicate that the record is trustworthy and should be admitted into evidente.”

Além de mera questão técnica quanto a elementos informáticos, o que se exige para um mínimo de segurança jurídica em casos análogos, é que o elemento apresentado possa ter sua integridade, veracidade e confiabilidade atestada para que ele seja considerado elemento de convicção da prestação jurisdicional.

 

Notas e Referências

[i] Para detalhes sobre a Linguagem de Marcação de Hipertexto , veja-se: https://developer.mozilla.org/pt-BR/docs/Web/HTML. Acesso em 13 jul. 2020.

[ii] Geraldo Prado: A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal. São Paulo. Ed. Marcial Pons, 2019, p. 96/97

[iii] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-fev-25/pf-deleta-provas-acao-penal-stj-anula-grampos-telefone-mail. Acesso em 13 jul. 2020.

[iv] DIpsonível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/academia-policia-aplicacao-cadeia-custodia-prova-digital. Acesso em 13 jul. 2020.

[v] BADARÓ, Gustavo. A Cadeia de Custódia e sua Relevância para a Prova Penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra. Temas Atuais da Investigação Preliminar no Processo Penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 520.

[vi] People v. Johnson, 875 N.E.2d 1256 (Ill. App. Ct. 2007). Appellate Court of Illinois, First DistrictSep 28, 2007.

 

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