Rafael Braga foi o único brasileiro condenado pelos protestos de junho de 2013. Acredito que todo mundo saiba o absurdo que ele fez: portou um frasco de desinfetante Pinho Sol.
Agora, foi condenado à pena de 11 anos e 3 meses de reclusão, além do pagamento de multa, pelo crime de tráfico de drogas. Alega ter sido o flagrante forjado por policiais, que o abordaram quando cumpria sua pena em regime aberto, com tornozeleira eletrônica.
Além da plausível alegação de Rafael – vivemos uma lamentável realidade, em que existem kits flagrante sempre aptos a legitimar atos ilegais –, a quantidade de droga encontrada foi irrisória: 0,6 grama de maconha e 9,3 gramas de cocaína. Se fosse branco em bairro rico, seria considerado usuário. Mas é preto e pobre. É traficante.
A lei de drogas, longe de ser um mecanismo de pacificação social, é um instrumento de controle das periferias, de segregação racial. Serve à perpetuação e à acentuação das diferenças já tão marcantes, decorrentes da cor da pele e da situação econômica.
É gritante que a guerra às drogas não passa de uma forma de dizimar os indesejados, de excluir da sociedade “de bem” (ainda pretendo descobrir quem define o que é “bem”...) aqueles inconvenientes. Sob o pretexto de beneficiar os cidadãos, tolhem-se direitos de uma parcela da população que não se quer ver. Essa parcela da população fica à mercê da arbitrariedade dos agentes estatais e à margem de qualquer lei e da Constituição. São denominados marginais, mas são, na verdade, marginalizados. Pessoas sem representatividade, muitas vezes sem perspectiva, absolutamente excluídas daquilo que se entende por sociedade.
E o Estado, que lhes nega os direitos à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer, ao convívio com a família, é o primeiro a usar a falta dessas “qualidades” para cercear ainda mais qualquer espécie de cidadania. Já que é justamente por não ter casa, por ser viciado em substâncias consideradas ilegais, por não ter estudado e/ou por não trabalhar que é considerado uma pessoa mais “perigosa” que as outras. E disso decorre a presunção de que a mesma quantidade de droga, nas suas mãos, caracterize o tráfico, enquanto serviria apenas à configuração do porte para consumo caso estivesse nas mãos de alguém privilegiado.
Porque, infelizmente, na realidade brasileira, quem tem seus direitos respeitados é considerado privilegiado. É quase como se a inviolabilidade ao domicílio, a impossibilidade de se arguir fundada suspeita indiscriminadamente para realizar revista pessoal, a integridade física ou a própria presunção de inocência fossem favores que o Estado nos faz. E o Estado concede tais benesses apenas a quem merece: por ter nascido branco e por ter condições financeiras favoráveis.
Rafael Braga não se enquadrava em nenhum desses requisitos. Por isso, seus direitos não têm o mesmo valor. Sua palavra não tem o mesmo valor. Sua dor não tem o mesmo valor.
Aliás, a dor do preto tem um histórico de menosprezo que não se restringiu ao período de escravidão. Ainda hoje, verifica-se a negativa em aplicar anestesia em mulheres pretas durante o parto ao argumento de que sentem menos dor, por exemplo. A dor do outro é sempre menor. E o preto é sempre o outro.
Rafael Braga é o outro. O outro condenado por portar Pinho Sol. O outro condenado por ser pobre. O outro condenado por ser o outro.
Isso é algo que não se pode admitir em um Estado que se pretende Democrático de Direito. Por isso, sejamos todos Rafael Braga, sintamos todos a sua dor, lutemos todos a sua luta. Porque não pode haver privilégios, mas respeito aos direitos de todos, não importa a cor da pele, onde mora ou quanto ganha. Porque, onde há igualdade, não pode haver “outros”.
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