A concessão e a estabilização da tutela antecipada em face da Fazenda Pública: notas sobre a remessa necessária como condição suspensiva de eficácia da decisão em face da Fazenda Pública nos termos do artigo 496 do CPC/15 – Por Paulo Ricardo Stipsky

27/06/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

1. Introdução

Em recente artigo[1], manifestamos nosso pensamento sobre o cabimento e o processamento da remessa necessária na decisão parcial de mérito. Na ocasião, afirmamos que o legislador incorreu em evidente falta de técnica na interpretação sistemática do CPC/15, razão pela qual é de direito, na decisão parcial, o processamento da remessa necessária, como condição de eficácia em face da Fazenda Pública.

A partir daquele pensamento, passamos, aqui, a discutir sobre o cabimento da remessa necessária, nos casos de deferimento de tutela antecipada antecedente em face da Fazenda Pública, e considerando a possível estabilização da decisão (304, § 6º., CPC/15).

É que, como sabemos, nos termos da regra do artigo 303 do CPC/15, nos casos de urgência contemporânea à propositura da ação, o legislador concedeu à parte o benefício de apresentar pela inicial simplificada[2], apenas para o fim de requerer a tutela antecipada considerada necessária. Nesse sentido, indicando também o pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou risco.

Concedida a tutela pleiteada, o autor deverá aditar a peça exordial (303, § 1º., I, CPC/15), e o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação (303, § 1º., II, CPC/15). Em relação à tutela antecipada antecedente concedida, se não interposto recurso pela parte contrária, torna-se a decisão estável (304, CPC/15).

E aqui surge já um primeiro ponto a ser analisado. É possível a concessão e a estabilização da decisão que defere a tutela antecipada em face da Fazenda Pública, já que não é possível, nesse caso, a aplicação dos efeitos da revelia (345, II, CPC/15)?

Ainda mais, com a estabilização da decisão deferida, o processo deverá ser extinto, podendo a decisão ser revista, reformada ou invalidada nos termos do artigo 304, §§ 2º.-4º., do CPC/15. Essa possibilidade deve ser exercida no prazo de 2 (dois) anos.

Enfim, chegamos ao ponto em que é necessário analisar o possível cabimento da remessa necessária, como condição de suspensão de eficácia da decisão[3] proferida em face da Fazenda Pública, nos termos do que consta do artigo 496 do CPC/15.

2. A concessão e a estabilização da tutela antecipada antecedente em face da Fazenda Pública (artigo 304, § 1º., do CPC/15)

A análise da questão preliminar de possibilidade de tutela antecipada em face da Fazenda Pública é relevante, já que, nos termos do artigo 1.059 do CPC/15, à tutela provisória requerida contra a Fazenda Pública aplica-se o disposto nos artigos 1º. a 4º. da Lei n. 8.437/92, bem como o disposto no artigo 7º., § 2º. da Lei 12.016/09.[4]

Essa impossibilidade por suposta irreversibilidade não é absoluta, já que a vedação legal deve ser ponderada, por exemplo, nos casos de irreversibilidade recíproca.[5]

Dessa forma, é plenamente possível a concessão de tutela provisória de urgência antecipada contra a Fazenda Pública. Essa possibilidade, conforme aqui apontado, é inclusive, amplamente aceita no âmbito do STJ para os fins de direito.[6]

Sendo, portanto, possível a concessão da tutela antecipada em face da Fazenda Pública, surge a relevante questão no que diz respeito à possibilidade de estabilização da tutela antecipada antecedente, em face dessa mesma Fazenda Pública. E isso porque, como sabemos, não são aplicáveis os efeitos da revelia no caso de direitos indisponíveis.

Como já exposto, e com apoio na doutrina, a estabilização da tutela antecipada antecedente exige duas situações complementares. É dizer, a conduta comissiva do autor em aditar o pleito inicial (artigo 303, § 1º., I, CPC/15) e a conduta omissiva do réu em não manifestar oposição ao deferimento (artigo 304, § 1º., CPC/15).[7]

De fato, o efeito processual da estabilização da tutela antecipada antecedente está intimamente ligado com a conduta omissiva do réu, razão pela qual pode-se pretender invocar o artigo 345, II, do CPC/15, para afastar os efeitos da revelia. No entanto, não se deve confundir os efeitos da revelia com a estabilização da tutela antecipada.

Os efeitos da revelia são: i) a presunção de veracidade das alegações de fato feitas pelo demandante (artigo 344, CPC/15); ii) os prazos contra o réu revel que não tenha Advogado fluem a partir da publicação do ato decisório e o réu revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar (artigo 346, § único, CPC/15); iii) e a possibilidade de julgamento antecipado do mérito da causa, na hipótese de não existir outras provas a serem produzidas (artigo 355, II, CPC/15).

Já a estabilização da tutela produz efeito específico de conservação da decisão em relação à qual não foi manifestada oposição pela parte contrária.

Não se deve interpretar os institutos em questão de forma a emprestar características de efeito da revelia ao efeito específico da estabilização da tutela antecipada. De fato, trata-se de regime específico para o fim de impor segurança jurídica à decisão.

A isso, vale ressaltar que o presente tema em questão já foi matéria do enunciado 582 do FPPC - Fórum Permanente de Processualistas Civis.[8] Sendo assim afirmada a possibilidade de estabilização da tutela antecipada em face da Fazenda Pública.

3. A eficácia da tutela antecipada antecedente não revista, reformada ou invalidada, em face da Fazenda Pública (artigo 304, §§ 5º. e 6º., do CPC/15)

A partir de então, tecemos breves considerações sobre a eficácia da decisão estabilizada, caso não seja aquela revista, reformada ou invalidada no prazo legal de 2 (dois) anos.

É que, conforme §§ 5º. e 6º., do artigo 304 do CPC/15, a estabilidade dos efeitos da decisão não poderá, nesse caso, ser afastada, não se falando em coisa julgada. A inexistência de coisa julgada na hipótese tem previsão no artigo 304, § 6º., CPC/15.

É importante compreender a essência do dispositivo legal, sendo relevante, portanto, considerar que apesar do efeito específico de conservação de efeitos, não se trata de decisão com efeito de coisa julgada, como o próprio dispositivo legal assegura. Nesse sentido, inclusive, sendo afastada a possibilidade de ação rescisória.[9]

E com isso, podemos analisar o suposto direito de processamento da remessa necessária, como condição suspensiva de eficácia da decisão que defere tutela antecipada antecedente contra a Fazenda Pública, ao final estabilizada nos termos do artigo 304, § 6º., do CPC/15.

Desde logo, deve ser observado que a decisão que defere tutela antecipada antecedente em face da Fazenda Pública não se releva como decisão de mérito, de cognição exauriente, mas sim, de decisão provisória, de cognição sumária. Já a remessa necessária é devida nos casos de sentenças de mérito[10] (ou decisões parciais de mérito[11]) em face da Fazenda Pública, nos termos da regra do artigo 496 do CPC/15.

A doutrina já se posicionava sobre o não cabimento da remessa necessária em caso de decisão liminar ou tutela antecipada, a teor do dispositivo do artigo 475 do CPC/73. Assim sendo, já no âmbito do CPC/73, restou evidente que apenas as sentenças de mérito, desde que enquadradas nas hipóteses legais[12], estariam sujeitas à remessa necessária.[13]

O atual artigo 496 do Código de Processo Civil ratificou a essência do antigo dispositivo legal, estabelecendo que as sentenças na oportunidade especificadas estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeitos senão depois de confirmadas. É, evidentemente, impossível interpretar o dispositivo de forma tão ampla, para albergar, nas hipóteses legais, também as tutelas antecipadas definitivamente estabilizadas.

Nesse sentido, pensamos, portanto, que não é possível a interpretação do dispositivo do artigo 496 do CPC/15 para albergar, também, as hipóteses de estabilização definitiva da tutela antecipada concedida, nos termos dos §§ 5º. e 6º., do artigo 304 do mesmo CPC/15.

4. Considerações finais

É certo que a Fazenda Pública possui, ainda hoje, inúmeras prerrogativas processuais, perfeitamente válidas em nosso sistema jurídico, tendo em vista não apenas o interesse público, mas também as dificuldades na defesa da Fazenda Pública em juízo.

A remessa necessária, na qualidade de condição suspensiva de eficácia da sentença de mérito proferida nos termos legais, é uma dessas prerrogativas, apesar de bastante criticada, já desde o advento do CPC/73.[14] Naquela oportunidade, já havia sido dito que a remessa necessária não mais faria sentido no ordenamento jurídico, caracterizando efetivo benefício inconstitucional em face da Fazenda Pública em juízo.

A melhor doutrina já vem se posicionando sobre a questão, pelo que vale o destaque:

“Uma realidade preocupante no direito infraconstitucional brasileiro e em várias linhas da orientação constante dos tribunais são os privilégios de que gozam os entes estatais e seus agentes quando partes no processo civil. Às disposições legais que instituem situações de desequilibrada vantagem ao Estado e ao Ministério Público acrescem-se certas tendências dos juízes a privilegiá-los ainda mais, o que eles fazem ao conferir a essas entidades tratamentos incompatíveis com a garantia constitucional da isonomia processual. Compreende-se o zelo pelas coisas do Estado e do interesse público, sendo legítimas as medidas destinadas a evitar malversações ou omissões lesivas aos bens e aos interesses geridos pelos agentes do Estado; mas o que preocupa é o exagerado desequilíbrio anti-isonômico instituído em nome desse zelo e desse interesse geral, que vem conduzindo o sistema processual a deixar os adversários da Fazenda ou do Ministério Público em situação inferiorizada no processo.”[15]

De qualquer modo, o legislador entendeu por bem manter a remessa necessária, como condição suspensiva de eficácia da sentença em face da Fazenda Pública, conforme destacado na regra do artigo 496 do CPC/15.

É bem verdade que o legislador ocorreu em evidente falta de técnica legislativa no que diz respeito à redação do artigo 496 do CPC/15, já que, conforme pensamos ter sido evidenciado, deixou de reconhecer o cabimento da remessa necessária também nos casos de julgamento antecipado parcial de mérito proferidas em face da Fazenda Pública.

A evidência do exposto decorre da necessidade de interpretação sistemática do CPC/15 que, aqui, reconhece que a decisão de mérito pode ser fragmentada[16], nas hipóteses do artigo 356 do CPC/15, mediante o julgamento antecipado parcial de mérito.

A estabilização da tutela antecipada antecedente, por outro lado, não deve ser confundida com efeito da revelia da parte, mas de efeito específico da não interposição de recurso na hipótese. De outro lado, a estabilidade dos efeitos da decisão interlocutória de cognição sumária, conforme artigo 304, § 6º. do CPC/15, não impõe o efeito da coisa julgada à decisão que deferiu a tutela antecipada antecedente, conforme expressa previsão legal.

É, portanto, a síntese do necessário sobre o nosso pensamento sobre o tema, razão pela qual ratificamos não ser possível o cabimento da remessa necessária do artigo 496 do CPC/15, no caso de deferimento de tutela antecipada antecedente em face da Fazenda Pública, ainda que em vista da estabilização do artigo 304, § 6º., do CPC/15.


Notas e Referências:

[1] BARROS NETO, Geraldo Fonseca de; STIPSKY, Paulo Ricardo. Remessa necessária na decisão parcial de mérito. Empório do Direito, [s.l]: 21 abr. 2017. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/remessa-necessaria-na-decisao-parcial-de-merito/. Acesso em: 21 maio 2017, às 19:10.

[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 318.

[3]FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001. pp. 781-783.

[4] A proibição de concessão de tutela antecipada com efeitos irreversíveis já consta da disciplina do artigo 300, § 3º., do CPC/15, sendo, portanto, regra geral e não apenas de particularidade no caso da Fazenda Pública.

[5] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2017. p. 161.

[6] STJ, REsp.1.070.897/SP, Min. Luiz Fux, j. 3 dez. 2009. "É possível a concessão de antecipação dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pública, como instrumento de efetividade e celeridade da prestação jurisdicional, sendo certo que a regra proibitiva, encartada no art. 1º, da Lei 9.494 /97, reclama exegese estrita, por isso que, onde não há limitação não é lícito ao magistrado entrevê-la."

[7] BUENO, opus citatum, p. 322.

[8]Enunciado n. 582, FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Cabe estabilização da tutela antecipada antecedente contra a Fazenda Pública.”

[9] BUENO, opus citatum, p. 323. O autor chama a atenção para o enunciado n. 33, FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Não cabe ação rescisória nos casos de estabilização da tutela antecipada de urgência.” No mesmo sentido, o enunciado n. 27, ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados: “Não é cabível ação rescisória contra decisão estabilizada na forma do CPC/2015.”

[10] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 712.

[11] BARROS NETO; STIPSKY, opus citatum.

[12] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1173.

[13] Nesse sentido: STJ, REsp. 688.931/PB, Min. Franciulli Netto, j. 14 dez. 2004.

[14] MOLLICA, Rogerio. A remessa necessária e o novo Código de Processo Civil. DIDIER JR., Fredie (coord.); MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). In: Coleção NOVO CPC: Doutrina Selecionada 6. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 102.

[15] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 60 – grifos no original.

[16] SIQUEIRA, Thiago Ferreira. A fragmentação do julgamento de mérito no novo Código de Processo Civil. RePro - Revista de Processo, vol. 229, ano 39, p. 121-167: São Paulo. Revista dos Tribunais, mar. 2014. p. 136.


 

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