A CONCEPÇÃO DE SOBERANIA DE GROTIUS, HOBBES E LOCKE NA ERA DO ABSOLUTISMO  

21/12/2021

Coluna Direito Negocial em Debate

Nesse artigo apresentar-se-á as principais reflexões realizadas por Luigi Ferrajoli no livro “La sovranità nel mondo moderno: nascita e crisi dello Stato nazionale[1], referentes ao capítulo “o aperfeiçoamento da ideia de soberania na época do Absolutismo: Grotius, Hobbes e Locke”.

Inicialmente, cumpre esclarecer que o presente estudo é desenvolvido em complemento ao artigo: “MUSTAFÁ, Rennan Herbert. As origens jusnaturalistas da concepção de soberania sobe a perspectiva de Luigi Ferrajoli: sociedade de estados soberanos no pensamento de Francisco de Vitória”[2].

Com o surgimento do Estado absolutista, no século XVII, há uma ruptura do Estado com todos os vínculos ideológicos e religiosos, aniquilando qualquer limite imposto à soberania estatal, refletindo, assim, a transformação para uma plena secularização e absolutização.

Leciona Ferrajoli que:

Estes dois processos – secularização e absolutização – envolvem ambas as dimensões da soberania, a externa e a interna, e compõem um todo com a formação da ideia moderna do Estado como pessoa artificial, fonte exclusiva do direito e, ao mesmo tempo, livre do direito[3].

Importa evidenciar que o Estado absolutista se caracteriza por um regime político que concentra o poder e a autoridade na monarquia, vinculando totalmente a identidade do Estado à pessoa do rei ou da rainha.

 Tem-se, inicialmente, a absolutização do princípio da soberania externa, por meio da reformulação da ideia vitoriana de uma universalis societas gentium[4] proposta por Hugo Grotius, na qual “torna o direito das gentes autônomo não apenas em relação à moral e à teologia, mas também em relação ao direito natural”[5].

Assim, afasta-se de uma concepção puramente jusnaturalista de “direito das gentes” – supra-estatal – definindo-o como id quod Gentium omnium aut multarum voluntate vim obligandi accepit[6]. Por conseguinte, Grotius alerta que essa força obrigatória que deveria depender do consenso de todos ou da maioria dos Estados, de fato, advém daqueles, que o autor denomina, de moratiores[7], isto é, o direito deriva do fato e da vontade e dos interesses dos sujeitos mais fortes da comunidade internacional[8].      

Completado o processo de secularização dos novos Estados nacionais, há uma liberação de todos os limites da soberania estatal, mediante a teorização explícita do caráter absoluto da soberania interna, “com os únicos limites, para Bodin, das leis divinas e naturais e, para Hobbes, da lei natural vista como princípio de razão, além do limite do vínculo contratual da tutela da vida dos súditos”[9].

Conforme descreve Ferrajoli, é a Hobbes que se atribui a primeira concepção do Estado-pessoa e da personalidade do Estado, servindo como fundamento basilar ao atributo de soberania. Ao desenvolver o paradigma contratualista, Hobbes, ao definir Estado em sua obra De cive, descreve que:

Devemos dizer que este é uma única pessoa, cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos, deve ser considerada como vontade de todos aqueles indivíduos, e, portanto, pode servir-se das forças e dos haveres individuais para a paz e para a defesa comum[10].

Essa fonte suprema se torna a base de toda a fundamentação do positivismo jurídico, essencialmente no que se refere ao princípio da legalidade e convencionalidade do direito, ao compreender que auctoristas, non veritas facit legem[11]. Ademais, soma-se o fundamento formalista e voluntarista da validade das normas, assim como, o monopólio estatal da produção jurídica e sua independência de fontes jurídicas extra ou supra-estatais[12].

Por conseguinte, se internamente não há fontes normativas superiores ao poder soberano, por necessidade, externamente também. Contudo, a soberania externa de um Estado se junta à soberania de outros, reproduzindo na comunidade internacional o equivalente a uma liberdade selvagem. Logo, no mesmo tempo que se cria um Estado soberano capaz de trazer paz interna e a superação da guerra entre as pessoas físicas, concebe-se um cenário de estado de natureza, em fatores de guerra externa, quanto aos próprios Estados. Hobbes expressa que:

Embora jamais tenha existido uma época na qual todo homem estivesse em guerra contra outro homem, em todos os tempos, os reis e as pessoas detentoras de autoridade soberana sentem-se continuamente enciumadas da sua independência e se encontram no estado e na posição de gladiadores, com as armas apontadas e com os olhos fixos um no outro; isto é, com seus fortes, suas guarnições e seus fuzis nas fronteiras dos seus próprios reinos, e com espiões constantemente infiltrados nos Estados circunvizinhos: o que representa uma posição belicosa[13].

Desse contraponto entre uma sociedade que internamente supera o estado de natureza e que externamente conserva tal condição, resulta, de acordo com Ferrajoli, um “Estado moderno como sujeito soberano, que é fundado, laica e racionalmente”, internamente, enquanto “estado civil” e, “paradoxalmente artificial porque produzido pelo mesmo artifício do qual nasce o Estado: a sociedade selvagem, mas artificial, dos Estados soberanos, virtualmente em estado de guerra entre si, mas também coligados, como ‘mundo civil’, pelo direito-dever de civilizar o resto do mundo ainda não civilizado”[14].  

Vislumbra-se, ante o exposto, que no período dos Estados absolutistas, a compreensão da soberania estatal não sofria qualquer tipo de limitação. Afasta-se de dogmas extra ou supra-estatais, para uma visão normativa, na qual o Estado possui o monopólio da produção das leis.

Não obstante, no cenário internacional surge uma intensa apreensão entre os próprios Estados-pessoa, dado o fato de que em uma comunidade de entes soberanos, na qual não há normas que possam restringir suas atuações, cria-se certa insegurança, análoga ao “estado de natureza” de pessoas de carne e osso.  

 

Notas e Referências

[1] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional / Luigi Ferrajoli; tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho; revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[2] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/as-origens-jusnaturalistas-da-concepcao-de-soberania-sob-a-perspectiva-de-luigi-ferrajoli-sociedade-de-estados-soberanos-no-pensamento-de-francisco-de-vitoria

[3] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 17.

[4] “Comunidade universal das gentes”.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 17.

[6] “O que por vontade de todas ou de muitas gentes assume força de obrigação”.

[7] “Mais civis”.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 18.

[9] Ibidem, p. 19.

[10] HOBBES apud FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 19.

[11] “A autoridade, e não a verdade, faz a lei”.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit.

[13] HOBBES apud FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 21.

[14] Ibidem, p. 25.

 

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