A competência dos TCs para expedição de medidas cautelares

24/09/2022

A medida cautelar vem, de forma provisória, amparar direito ameaçado que, se não resguardado com urgência, pode se perder em decorrência de acometimento de dano grave de difícil reparação. Com base em requisitos consubstanciados no fumus boni juris e periculum in mora, o entendimento não só abarca as demandas de competência judiciária como também tem se estendido à aplicação das medidas cautelares pelos Tribunais de Contas.

O Supremo Tribunal Federal, nos últimos 5 anos reconheceu a competência do Tribunal de Contas do Estado para proceder com o bloqueio de bens no curso de seus processos. No total, foram 6 decisões favoráveis na Suprema Corte, relativas também a outros temas, além da indisponibilidade de bens, que fortalecem a atuação da Corte de Contas, desde 2017.

O Brasil conta com 33 Tribunais de Contas, divididos em três níveis: União (TCU), Estados (nas 26 capitais e Distrito Federal), dos Municípios do Estado (Bahia, Goiás e Pará) e Tribunais de Contas do Município (São Paulo e Rio de Janeiro).

Esta pesquisa justifica-se pela extrema relevância do controle externo exercido pelos diversos Tribunais de Contas pelo Brasil afora.

Em 2017, a então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, deferiu medida liminar em favor do TCE/RN no sentido de manter o bloqueio de valores de empresa envolvida no processo que identificou pagamentos irregulares da ordem de R$ 34,9 milhões no Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (IDEMA), conforme decidido no acórdão nº 411/2016:

DECISÃO SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. TOMADA DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS DO RIO GRANDE DO NORTE. PODER GERAL DE CAUTELA. BLOQUEIO DE BENS DA INTERESSADA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SEGURANÇA CONCEDIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA PARA ANULAR ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO RIO GRANDE DO NORTE. RISCOS DE LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS CONFIGURADOS. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. PROVIDÊNCIAS PROCESSUAIS. Relatório 1. Suspensão de segurança, com requerimento de medida liminar, ajuizada pelo Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte para serem suspensos os efeitos do acórdão proferido “pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, nos autos do Mandado de Segurança nº 2016.016466-4, que concedeu a segurança para decretar a nulidade do Acórdão nº 441/2016 proferido pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte e determinar o desbloqueio de bens/valores do impetrante DH CONSTRUÇÃO, SERVIÇOS E LOCAÇÕES LTDA-EPP, por, através de interpretação conforme a Constituição, entender que o Tribunal de Contas Estadual não teria poderes nem competência para impor medida cautelar de indisponibilidade de bens de pessoas físicas e jurídicas de direito privado” (sic).

A anulação do Acórdão do Tribunal de Contas n. 441/2016 (Processo n. 012520/2015-TC), além de representar a negativa da atribuição constitucionalmente atribuída aos Tribunais de Contas estaduais, a demonstrar possível lesão à ordem pública, pode causar lesão à economia pública por importar em potencial inutilidade do processo administrativo instaurado contra os beneficiários de recursos públicos indicados na referida tomada de contas, cujo desvio total estimado é de trinta e quatro milhões de reais. Considerando-se que, na mesma tomada de contas estadual, constam aproximadamente cento e seis supostos beneficiários de transferências indevidas de recursos públicos titularizados pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente – IDEMA/RN (Relatório de (Auditoria n. 116/2016 – DAI, fl. 95, doc. 6), parece certo o efeito multiplicador do acórdão impugnado. 15. Pelo exposto, defiro a medida liminar para suspender o acórdão proferido no Mandado de Segurança n. 2016.016466-4 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, mantendo a determinação de bloqueio de valores discriminados no Acórdão n. 411/2016 do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte. (STF - SS: 5205 RN - RIO GRANDE DO NORTE XXXXX-81.2017.1.00.0000, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 02/04/2018, Data de Publicação: DJe-069 11/04/2018)

Em 2020, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, restabeleceu ato em que o Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte (TCE-RN), havia determinado a indisponibilidade dos bens de um advogado por supostas irregularidades em contrato com o Município de Monte Alegre (RN) para recebimento de royalties provenientes da extração de gás natural na cidade.

A decisão, proferida na Suspensão de Segurança (SS) 5335, suspende decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ-RN) que, segundo o ministro Dias Toffoli, inibiu a atuação do TCE-RN e representa grave risco de lesão à ordem pública e econômica do estado.

O então presidente destacou que, de acordo com o entendimento do Supremo, as cortes de contas podem decretar a indisponibilidade de bens de pessoas relacionadas a casos sob investigação. Assim, suspendeu a decisão do TJ-RN até o trânsito em julgado do mandado de segurança em trâmite naquele tribunal:

SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. FINANCEIRO. CONTRATAÇÃO DIRETA DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS PELO MUNICÍPIO DE MONTE ALEGRE/RN. PROVIMENTO JURISDICIONAL. CASSAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR DECRETADA PELO TRIBUNAL DE CONTAS. LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS. DEFERIMENTO DA CONTRACAUTELA. 1. O Tribunal de Contas tem legitimidade ativa para o incidente suspensivo na defesa de suas prerrogativas constitucionais e legais. 2. Importa grave dano à ordem pública, na acepção jurídico-constitucional, a decisão judicial que cassa a medida cautelar deferida pelo Tribunal de Contas do Estado, por vulnerar as prerrogativas constitucionais do Tribunal de Contas e inviabilizar a efetividade da fiscalização dos contratos administrativos e das medidas que asseguram o ressarcimento ao erário. 3. Importa grave dano à ordem administrativa a decisão judicial que, ao cassar a medida cautelar deferida pela Corte de Contas, deixa de assegurar o ressarcimento ao erário por pagamento de honorários advocatícios decorrentes de contratação sem observância de normas administrativas e financeiras. 4. A possibilidade de concretização do efeito multiplicador da decisão de cassação de medida cautelar deferida pela Corte de Contas demonstra risco grave de lesão à economia pública, apto a ensejar o deferimento da contracautela. — Parecer pelo deferimento do pedido de suspensão. (STF – SS: 5335 - DJE, 07/07/2020)

Por unanimidade, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) negou recurso interposto contra decisão que assegurou o poder geral de cautela do Tribunal de Contas de Mato Grosso (TCE-MT) e reafirmou a competência constitucional do órgão de controle externo para determinar medidas cautelares.

A decisão do Pleno do STF manteve suspensos os efeitos de decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) que limitavam, indevidamente, o escopo do poder geral de cautela exercido pelo Tribunal de Contas:

SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE CONTAS DO MATO GROSSO. PODER GERAL DE CAUTELA. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE CONTRATOS. DECISÃO JUDICIAL QUE SUSPENDE MEDIDA DETERMINADA PELA CORTE DE CONTAS. ALEGAÇÃO DE RISCO DE GRAVE DANO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS. OCORRÊNCIA. JURISPRUDÊNCIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDAS QUE VISAM A PRESERVAÇÃO DO ERÁRIO. PEDIDO DE SUSPENSÃO QUE SE JULGA PROCEDENTE. Decisão: Trata-se de pedido de suspensão de segurança ajuizado pelo Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso contra decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, nos autos dos Mandados de Segurança nºs XXXXX-52.2020.8.11.0000 e XXXXX-08.2019.811.0000, através das quais foram suspensas medidas cautelares determinadas por aquela Corte de Contas. Relata o requerente terem sido ajuizados pela empresa Saga Comércio e Serviço Tecnologia e Informática Ltda. os mencionados mandados de segurança contra medidas cautelares determinadas no âmbito de processos de fiscalização em curso no TCE/MT, tendo, em ambos, o TJ/MT deferido liminares determinando a suspensão das medidas, ao entendimento de que as mesmas deveriam ter sido precedidas de contraditório e ampla defesa. Sustenta que referidas decisões importariam o “ceifamento do poder geral de cautela do tribunal” e gerariam “gravíssimo e irreversível prejuízo”, ofendendo a autonomia daquela Corte de Contas e a “seriedade do controle externo”. Alega que as decisões impugnadas contrariariam a jurisprudência desta Corte, que admitiria inclusive o deferimento de medidas cautelares sem prévia oitiva da parte interessada, e que o poder geral de cautela do Tribunal de Contas do Mato Grosso já teria sido afirmada no julgamento da SL 1.420. Argumenta a inocorrência de ofensa a regras da lei orgânica ou do regimento interno daquela corte, as quais trariam a previsão de um contraditório “postecipado”. Aduz que o risco à ordem pública existente na manutenção das decisões impugnadas reside também em seu potencial efeito multiplicador. Requer, por estes fundamentos, a concessão de liminar, para a suspensão das decisões proferidas nos Mandados de Segurança nºs XXXXX-52.2020.8.11.0000 e XXXXX-08.2019.811.0000, e, posteriormente, a confirmação da liminar, a fim de que referidas decisões restem suspensas até o trânsito em julgado dos processos. A empresa Saga Comércio e Serviço de Tecnologia e Informática Ltda. apresentou contrariedade ao pedido de suspensão, sustentando, em síntese (doc. 17): a) a incompetência deste Supremo Tribunal Federal para o presente incidente de contracautela, ante a natureza infraconstitucional da controvérsia na origem; b) falta de documento essencial para o conhecimento deste feito; c) ser a única empresa do ramo sediada no Estado do Mato Grosso, razão pela qual seria inexigível a licitação para sua contratação, nos termos do art. 25 da Lei 8.666/93; d) ausência de “fundamento jurídico lógico capaz de comprovar a urgência” das decisões cautelares; e) que as decisões cautelares teriam inobservado o direito ao contraditório, na medida em que “a concessão da cautelar, sem a ouvida dos gestores responsáveis (inaudita altera pars) só deve acontecer, excepcionalmente, quando restar inviabilizada a notificação prévia do administrador responsável”; g) que referidas medidas cautelares teriam prejudicado os municípios contratantes; h) que referidas decisões do TCE/MT não observaram regras regimentais, configurando, assim, “abuso em sua atuação”; i) que o exercício das competências constitucionais dos Tribunais de Contas não afasta a possibilidade de controle da legalidade, razoabilidade, moralidade pelo Poder Judiciário; j) a inexistência de similitude entre o caso concreto e a SL 1.420; l) que o presente incidente estaria sendo utilizado como sucedâneo recursal, o que não se admite. A Procuradoria-Geral da República se manifestou pelo deferimento do pedido de suspensão, em parecer que restou assim ementado (doc.31): “SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÕES DIRETAS. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. IRREGULARIDADES. MEDIDAS CAUTELARES DECRETADAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS SEM PRÉVIA OITIVA DA PARTE INTERESSADA. CASSAÇÃO. LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS. DEFERIMENTO DA CONTRACAUTELA. 1. É competente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar pedido de suspensão de segurança ajuizado por Tribunal de Contas estadual contra decisão mediante a qual o Tribunal de Justiça local suspende decisão cautelar daquela corte de contas. 2. O Tribunal de Contas tem legitimidade ativa para o incidente suspensivo na defesa de suas prerrogativas constitucionais e legais. 3. Importa grave risco de dano à ordem pública, na acepção jurídico-constitucional, a cassação de medidas cautelares deferidas por Tribunal de Contas quando ausentes ilegalidades ou teratologia nas decisões, por vulnerar as prerrogativas constitucionais da Corte de Contas e inviabilizar a efetividade da fiscalização dos procedimentos licitatórios e das medidas que asseguram o ressarcimento ao erário. 4. A possibilidade de concretização do efeito multiplicador da decisão de cassação de medida cautelar deferida pela Corte de Contas demonstra o grave risco de lesão à ordem e à economia públicas, a ensejar o deferimento da contracautela. — Parecer pelo deferimento do pedido de suspensão”. É o relatório. DECIDO. Ab initio, consigno que legislação prevê o incidente de contracautela como meio processual autônomo de impugnação de decisões judiciais, franqueado ao Ministério Público ou à pessoa jurídica de direito público interessada, nas causas movidas contra o Poder Público ou seus agentes, exclusivamente quando se verifique risco de grave lesão à ordem, à saúde, segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada (art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992; art. 15 da Lei 12.016/2009 e art. 297 do RISTF). Com efeito, ao indicar tais circunstâncias como fundamentos dos incidentes de suspensão, a própria lei indica causas de pedir de natureza eminentemente política e extrajurídica, diferenciando-se das causas que geralmente justificam outros meios de impugnação de decisões judiciais e que se revelam como conceitos jurídicos indeterminados, a serem apreciados pelo julgador perante o caso concreto. Nesse sentido, também aponta a clássica jurisprudência desta Corte, in verbis: “Suspensão de segurança: natureza cautelar e pressuposto de viabilidade do recurso cabível contra a decisão concessiva da ordem. A suspensão de segurança, concedida liminar ou definitivamente, é contracautela que visa à salvaguarda da eficácia pleno do recurso que contra ela se possa manifestar, quando a execução imediata da decisão, posto que provisória, sujeita a riscos graves de lesão interesses públicos privilegiados - a ordem, a saúde, a segurança e a economia pública: sendo medida cautelar, não há regra nem princípio segundo os quais a suspensão da segurança devesse dispensar o pressuposto do fumus boni juris que, no particular, se substantiva na probabilidade de que, mediante o futuro provimento do recurso, venha a prevalecer a resistência oposta pela entidade estatal à pretensão do impetrante. […]”. ( SS 846/DF-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 8/11/1996). À luz da natureza do instituto, a cognição do Presidente do Tribunal a quem compete a análise do incidente de contracautela deve se limitar à aferição da existência de risco de grave lesão ao interesse público, além de um juízo mínimo de plausibilidade do fundamento jurídico invocado, não cabendo-lhe a manifestação quanto ao mérito propriamente dito do que discutido no processo originário, eis que o mérito deverá ser oportunamente apreciado pelo Tribunal competente na via recursal própria. Nesse sentido é a jurisprudência desta Suprema Corte, ao afirmar que “a natureza excepcional da contracautela permite tão somente juízo mínimo de delibação sobre a matéria de fundo e análise do risco de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (SS 5.049-AgR-ED, rel. Min. Presidente Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe de 16/5/2016). Na mesma linha, é o seguinte precedente: “Agravo regimental na suspensão de liminar. Decisão na origem em que se determinou a ampliação da distância até a qual veículos particulares podem trafegar em corredores exclusivos de ônibus para acessar vias transversais. Não comprovação de lesão à ordem social e administrativa. Agravo regimental a que se nega provimento. 1. Na estreita via de pedidos de suspensão como o presente, não se procede a uma detida análise do mérito da ação principal, tampouco se permite revolvimento do respectivo quadro fático-probatório, mas apenas a análise dos requisitos elencados pela legislação de regência. 2. É inadmissível, ademais, o uso da suspensão como sucedâneo recursal. 3. Agravo regimental ao qual se nega provimento”. ( SL 1.165 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Presidente, Tribunal Pleno, DJe 13/02/2020). Anote-se ademais que, além da potencialidade do ato questionado em causar lesão ao interesse público, o conhecimento do incidente de suspensão dos efeitos das decisões provisórias pelo Presidente deste Supremo Tribunal Federal está condicionado à demonstração de que a decisão foi proferida por Tribunal e de que a controvérsia instaurada na ação originária esteja fundada em matéria de natureza constitucional (STA 782 AgR/SP, Relator Min. Dias Toffoli; SS 5112 AgR/SC, Relatora Min. Cármen Lúcia; STA 729-AgR/SC, Relator Min. Ricardo Lewandowski, e STA 152-AgR/PE, Relatora Min. Ellen Gracie). Trata-se de interpretação que deflui, a contrario sensu, também da disposição do art. 25, caput, da Lei n. 8.038/1990. In casu, o pedido de suspensão se volta contra acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, por meio dos quais foram suspensas medidas cautelares determinadas pelo Tribunal de Contas daquele Estado de suspensão de contratos administrativos firmados pela empresa Saga Comércio e Serviço Tecnologia e Informática Ltda ME com diversos municípios mato-grossenses. Considerando que as decisões impugnadas foram proferidas por Tribunal e que há natureza constitucional na matéria controvertida, relacionada aos limites das atribuições constitucionais de controle externo dos tribunais de contas (artigo 71, da CF), verifica-se cabível o presente incidente perante este Supremo Tribunal Federal. A leitura das decisões cuja suspensão se requer revelam que o Tribunal de Justiça do Mato Grosso veiculou entendimento no sentido de que o exercício do poder cautelar pela Corte de Contas estadual dependeria de prévio exercício do contraditório e da ampla defesa pela parte afetada. É o que se depreende das ementas abaixo transcritas (doc.5): “MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO - REPRESENTAÇÃO DE NATUREZA EXTERNA – MEDIDA CAUTELAR – VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, E AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – CARACTERIZADA – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 70, INCISO IV, DA LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL DE CONTAS C/C ARTIGO 229 DO REGIMENTO INTERNO DA CORTE DE CONTAS – OFENSA A DIREITO LÍQUIDO E CERTO – SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. O Tribunal de Contas no exercício das suas funções pode utilizar-se de medidas cautelares para assegurar a eficácia das suas decisões. 2. A decretação de medidas cautelares sem possibilitar a manifestação da parte interessada, ofende o disposto no art. 70, IV da Lei Orgânica do Tribunal de Contas c/c art. 229 do Regimento Interno daquela Corte, que asseguram o devido processo legal e observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa em todas as fases do processo de representação. 3. Violação a direito líquido e certo caracterizada. 4. Segurança concedida”. “MANDADO DE SEGURANÇA E AGRAVO REGIMENTAL – TRIBUNAL DE CONTAS – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL PLENO – CONFIRMAÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR – VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO – INFRINGÊNCIA AOS ARTS. 70, IV DA LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL DE CONTAS E ART. 229 DO REGIMENTO INTERNO DO TCE – SEGURANÇA CONCEDIDA – AGRAVO PREJUDICADO. 1. Constata-se que a empresa Impetrante, em nenhum momento do trâmite para análise da cautelar pleiteada, fora notificada para se manifestar, tendo conhecimento da decisão do Tribunal Pleno somente por meio do Ofício n. 1.295/2019/GCI/ILC, encaminhado quase dois meses após o julgamento. 2. Nesse contexto, constata-se que somente após a homologação pelo Pleno do TCE fora oportunizada manifestação da empresa ora Impetrante para o exercício de sua defesa, o que afronta o art. 229 do Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado. 3. É nítida a inobservância, no caso em comento, do disposto no art. 70, IV da Lei Orgânica do Tribunal de Contas c/c art. 229 do Regimento Interno daquela Corte, já que não foram observados os princípios do contraditório e ampla defesa em todas as fases do processo de representação. 4. Segurança concedida. Agravo prejudicado”. Nada obstante os fundamentos que embasaram as decisões impugnadas e os argumentos expendidos pela empresa interessada, entendo existente risco de lesão ao interesse público na manutenção da decisão que se pretende suspender, à luz da jurisprudência desta Suprema Corte. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal assentou entendimento de que os Tribunais de Contas possuem competência constitucional para determinar medidas cautelares necessárias à garantia da efetividade de suas decisões e à prevenção grave lesões ao erário, nos seus processos de fiscalização. Nesse sentido, os seguintes julgados: “Agravos regimentais em Suspensão de Segurança. Embargos de declaração convertidos em agravo. Fiscalização do Tribunal de Contas estadual em procedimento licitatório. Grave lesão à ordem pública demonstrada. Concessão parcial da contracautela. Agravos não providos. 1. Em razão dos fundamentos de mérito apresentados nos embargos de declaração, devem eles ser recebidos como agravo regimental, do qual se deve conhecer. 2. Os argumentos utilizados pelos agravantes não se mostram aptos a modificar a decisão recorrida, revelando, em verdade, mera insatisfação com as razões adotadas. 3. No exercício do poder geral de cautela, os tribunais de contas podem determinar medidas em caráter precário que visem assegurar o resultado final dos processos administrativos. O exame realizado pelas cortes de contas ultrapassa a análise meramente burocrática, porque abarca não apenas os elementos formais que norteiam o processo de despesa, mas também a relação custo-benefício, a aferição de quão ótimas são as ações administrativas, que devem ser as mais rentáveis possíveis, tendo em vista o interesse público envolvido, a legitimidade do ato e a consequente relação de adequação de seu conteúdo. 4. A decisão da Presidência do Supremo Tribunal Federal mostra-se acertada e provida de razoabilidade, pois, de um lado, autoriza a continuidade das apurações no âmbito do Tribunal de Contas estadual reconhecendo e legitimando a função constitucional do órgão e, de outro, possibilita o prosseguimento da execução do contrato objeto da licitação em causa, impedindo que haja suspensão da prestação de serviço público essencial, de forma a evitar prejuízos à população envolvida. 5. Agravos regimentais não providos”. ( SS 5.179 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 27/11/2019). “Mandado de Segurança. 2. Tribunal de Contas da União. Tomada de contas especial. 3. Dano ao patrimônio da Petrobras. Medida cautelar de indisponibilidade de bens dos responsáveis. 4. Poder geral de cautela reconhecido ao TCU como decorrência de suas atribuições constitucionais. 5. Observância dos requisitos legais para decretação da indisponibilidade de bens. 6. Medida que se impõe pela excepcional gravidade dos fatos apurados. Segurança denegada”. (MS 33.092, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 17/8/2015). Fixada a premissa, verifico que, no caso sub examine, a ordem de suspensão da execução dos contratos administrativos firmados pela empresa interessada se deu com fundamento na aparente irregularidade da contratação direta, por inexigibilidade de licitação, de modo que as medidas cautelares impugnadas na origem visam a preservação do erário em caso de confirmação das irregularidades aventadas. Haja vista a necessidade de preservação das competências constitucionais das Cortes de Contas e a finalidade da medida cautelar deferida na origem, vislumbra-se que a manutenção da decisão impugnada causa grave lesão à ordem e à economia públicas, obstando a preservação do erário. Neste sentido, decisão monocrática da Ministra Carmén Lúcia, quando do exercício da presidência desta Corte, in verbis: “SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. TOMADA DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS DO RIO GRANDE DO NORTE. PODER GERAL DE CAUTELA. BLOQUEIO DE BENS DA INTERESSADA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SEGURANÇA CONCEDIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA PARA ANULAR ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO RIO GRANDE DO NORTE. RISCOS DE LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS CONFIGURADOS. SUSPENSÃO DEFERIDA”. (SS 5205, Rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, DJe de 11/04/2018). O cotejo analítico entre a decisão cuja suspensão se requer e os precedentes mencionados revela, portanto, que a decisão impugnada está em descompasso com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal sobre o tema e que sua manutenção tem o condão gerar risco à ordem e à economia públicas, sobretudo considerada a possibilidade de frustração da utilidade do resultado final da fiscalização da Corte de Contas Estadual. Assim, verifica-se a necessidade de acolhimento do pedido de suspensão formulado, completando-se a presença de todos os requisitos legais que ensejam o deferimento da presente medida de contracautelaa, até que ocorra o trânsito em julgado na ação principal (art. 15 da Lei nº 12.016/2009; art. 4º da Lei nº 8.437/1992 e art. 297 do Regimento Interno do STF). Ex positis, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO DE SUSPENSÃO, para suspender as decisões proferidas nos autos dos Mandados de Segurança nº XXXXX-52.2020.8.11.0000 e XXXXX-08.2019.811.0000, em trâmite no Tribunal de Justiça do Mato Grosso, até o seu trânsito em julgado. Publique-se. Int. Brasília, 21 de setembro de 2021. Ministro Luiz Fux Presidente Documento assinado digitalmente (STF - SS: 5505 MT XXXXX-51.2021.1.00.0000, Relator: PRESIDENTE, Data de Julgamento: 21/09/2021, Data de Publicação: 23/09/2021)   

A nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/21), notadamente pela regra do §1º do artigo 171, reconhece aos Tribunais de Contas a prerrogativa de determinarem a suspensão cautelar de procedimentos licitatórios realizados pela administração pública de todos os poderes. O dispositivo guarda alguma afinidade com o artigo 113, caput e §2º, da Lei 8.666/93, porém o legislador agora foi explícito quanto ao poder de suspensão cautelar de procedimentos licitatórios (não dos contratos) pelos Tribunais de Contas.

O artigo 71, IX, da Constituição Federal atribui aos Tribunais de Contas, segundo compreensão do STF, a competência para sustar atos administrativos. Os tribunais de contas possuem competência constitucional para determinar medidas cautelares, inclusive a indisponibilidade de bens, necessárias à garantia da efetividade de suas decisões e à prevenção de graves lesões ao erário, nos seus processos de fiscalização.

O Supremo Tribunal Federal possui entendimento consolidado no sentido de que os TCs em situação de urgência na qual haja fundado receio de grave lesão ao erário, ao interesse público ou de risco de ineficiência da decisão de mérito, podem impor medidas cautelares, entre as quais as de indisponibilidade de bens, com vistas ao adequado funcionamento da Corte e ao alcance de suas finalidades.

 

Notas e Referências   

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

STF. Suspensão de Segurança 5205, Mandado de Segurança n. 2016.016466-4, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, mantendo a determinação de bloqueio de valores discriminados no Acórdão n. 411/2016 do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte. Disponível em: <http://www.tce.rn.gov.br/as/NoticiasTCE/3538/Decis%C3%A3o_STF_Idema.pdf>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

STF. Suspensão de Segurança 5335, Mandado de Segurança nº 0804438-43.2019.8.20.0000, e pelo qual foram suspensos os efeitos de acórdão proferido por aquela Corte de Contas, o qual determinara a indisponibilidade patrimonial do autor da impetração. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343666639&ext=.pdf>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

STF. Suspensão de Segurança 5505, Mandados de Segurança nºs XXXXX-52.2020.8.11.0000 e XXXXX-08.2019.811.0000 através das quais foram suspensas medidas cautelares determinadas por aquela Corte de Contas. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1288030070>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

TCE/PI. Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado do Piauí. Disponível em: <https://www.tce.pi.gov.br/wp-content/uploads/2022/01/REGIMENTO_INTERNO_WORD-atualizado-ate-05-01-2022-.pdf>. Acesso em: 29 de ago. de 2022.

 

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